Nos últimos anos o debate sobre a crise das democracias liberais vem se aprofundando. O crescimento eleitoral e a chegada ao governo de forças de extrema direita no mundo inteiro são sintomas de um processo de desmoralização e falta de legitimidade de nossas instituições democráticas. Trump, nos Estados Unidos, Milei na Argentina, Orban na Hungria, Meloni na Itália são apenas alguns exemplos mais dramáticos de uma tendência à ascensão de um conjunto de forças políticas autoritárias e radicalizadas. E a tendência de médio prazo é de que este grupo se amplie, haja visto os resultados da AfD na Alemanha e do partido de Marine Le Pen, na França. O que todas estas forças têm em comum, para além da defesa do livre mercado, da apologia da força bruta e do discurso polarizador? Talvez esta pergunta nos ajude a compreender melhor a complexidade deste fenômeno global que é o da ascensão da extrema direita.
Esta compreensão é fundamental para que se possa defender a democracia. Isto porque, em muitos casos, análises superficiais e apressadas podem levar à busca de soluções que ao invés de contribuir para conter a direita, podem ampliar o seu sucesso. Entender de forma incorreta as causas do crescimento do populismo de direita pode conduzir a estratégias equivocadas. Este é o caso daquelas avaliações de que o crescimento da direita reflete uma mudança de posicionamento do conjunto da cidadania na direção do conservadorismo. Para estes analistas, a população estaria aderindo ideologicamente aos valores da direita. E isto explicaria o sucesso das forças mais autoritárias.

A partir deste diagnóstico há uma tendência a defender uma maior moderação por parte da esquerda, como forma de “não perder eleitores”. Neste caso, o caminho da resistência ao fascismo passaria por uma convergência programática ao centro do espectro político, buscando se aproximar das forças democráticas mais moderadas como uma forma de isolar e barrar a extrema direita. Por conta disso seria necessário evitar a chamada “batalha cultural”, o questionamento dos valores do sistema. Nesta ótica, as lutas em torno dos temas de gênero, da opressão racial e dos valores culturais precisariam ser secundarizadas, pois espantariam o eleitorado mais conservador. Todos os enfrentamentos mais radicais, greves e manifestações, precisariam ser evitados, pois poderiam intimidar os aliados moderados.
A estratégia derivada desta abordagem é de buscar alinhar as propostas da esquerda com o que seriam as expectativas da população, que teria se tornado mais conservadora. Uma ideia um tanto fatalista, que tem como pressuposto uma visão de que a ação política deve se submeter ao senso comum. As expectativas utópicas de transformação da sociedade deveriam ser arquivadas, uma vez que não estariam sintonizadas com os valores da população. Esta é uma visão equivocada, pois ignora que os grandes avanços sociais e políticos na direção da democratização quase sempre partiram de processos de luta que justamente desafiavam os valores do senso comum vigentes até então.
Um estudo mais aprofundado da política mostra uma realidade totalmente distinta, que nos autorizaria sem muitas dúvidas, a postular uma alternativa distinta. Por um lado, é inegável que a extrema direita tem ampliado o seu apelo eleitoral. Os resultados pelo mundo afora mostram isso de forma muito clara. Por outro lado, um olhar mais cuidadoso destes próprios resultados eleitorais pode nos mostrar que a realidade é muito mais complexa. Nem sempre os resultados eleitorais expressam, de fato, uma hegemonia ideológica consistente. Isto pode ser visto no caso do Brasil. Nesta abordagem convencional teríamos que concordar que o conservadorismo é hegemônico pois, ainda que Lula tenha sido eleito presidente, a maioria do congresso eleito foi de centro, direita e extrema direita. Se, para efeitos de nossa discussão, considerarmos apenas os partidos mais à direita (PL, Republicanos e PP), constataremos que estes partidos representam 36,4% do total de deputados eleitos. A partir desta métrica, portanto, mais de um terço dos eleitores se alinha com a extrema direita.
No entanto, os números, analisados desta forma, podem ser enganosos. A começar pelo significado dos resultados eleitorais. Isto porque os resultados das eleições em termos do número de deputados eleitos se referem apenas aos votos válidos e não a totalidade dos eleitores. Se considerarmos que nesta eleição 20,9% dos eleitores se abstiveram e outros 4,4% votaram nulo ou em branco este peso da extrema direita pode ser redimensionado. Mais de um quarto dos eleitores não se mobilizou para votar. Neste caso, calculando os votos para deputados federais à luz desta realidade, o peso da extrema direita cai de 36,5% para 24,5% do total do eleitorado. O invés de representar um terço, os deputados da direita expressam, de fato, um quarto do eleitorado. Sem dúvida um contingente de peso, mas longe de se constituir em uma maioria.
Além disso é importante considerar que o voto para deputado no Brasil via de regra tem pouca relação com definições ideológicas. Tanto que há muitos eleitores que votaram em partidos de centro e de direita para deputado e em Lula para presidente. Há uma farta literatura que mostra o quanto as relações de natureza clientelista e personalista predominam na definição do voto proporcional no Brasil. Não são os programas nem a ideologia que norteiam o voto da maioria. E com as emendas parlamentares esta característica fisiológica do voto proporcional se torna ainda mais intensa. O voto para deputado tende a reproduzir muito mais este tipo de relação pragmática do que em uma opção ideológica. Portanto aquele peso de 25% de votos na extrema direita no total do eleitorado, se pensado do ponto de vista da adesão ideológica, tende a ser ainda menor.
Todas as pesquisas mostram que o interesse por política entre os cidadãos brasileiros é pequeno, e isto se reflete na natureza das escolhas de voto, especialmente no caso das eleições proporcionais. Mas também nas eleições majoritárias. Portanto é importante constatar que para o cidadão comum o voto em um ou outro candidato muitas vezes não reflete exatamente um posicionamento ideológico, mas muitas variáveis de natureza conjuntural. Um voto em Bolsonaro não representa necessariamente uma adesão à extrema direita, assim como um voto em Lula não representa necessariamente um posicionamento de esquerda. Não é difícil encontrar eleitores que votaram em Lula em 2002 e 2004 e que votaram em Bolsonaro em 2018. Em outras palavras, o fato de que a extrema direita tem cerca de 1/3 dos deputados no congresso está muito longe de significar que um terço dos brasileiros aderiu à extrema direita.
Portanto, não é correto fazer inferências de que há um crescimento do conservadorismo apenas a partir dos resultados eleitorais. Como vimos, cerca de um quarto dos eleitores sequer se dá ao trabalho de comparecer às urnas, ou se comparece não vota em ninguém. Estes eleitores normalmente são vistos como despolitizados, apolíticos. Mas é possível também que um importante contingente destes eleitores esteja expressando um repúdio político, uma posição crítica em relação à falta de representatividade dos atores políticos tradicionais. Não votar representa, de certo modo, um protesto contra a política tal como ela é exercida nos dias de hoje.
Se considerarmos os estudos mais recentes sobre o perfil da opinião política dos eleitores é possível reforçar esta hipótese de que a vida é mais complexa do que parece, e que este movimento de fortalecimento da extrema direita não é tão profundo nem tão consistente. O Latino barômetro é uma iniciativa apoiada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que realiza anualmente pesquisas sobre a percepção dos eleitores em 17 países da América Latina. Estas pesquisas nos dão um quadro muito detalhado da visão dos cidadãos de todos os países do continente sobre a política. E os resultados, mais uma vez, apontam na direção de que esta ideia acerca do conservadorismo do eleitorado não se sustenta.
Na sua versão de 2024 a pesquisa nos aponta muitos elementos que ajudam a compreender o pensamento político dos cidadãos na América Latina (e do Brasil). E ali, examinando os resultados, é possível perceber com mais precisão a complexidade do momento em que estamos vivendo. A pesquisa é extensa e abarca múltiplas dimensões da opinião política dos entrevistados. Selecionamos algumas respostas que apontam no sentido de que a atitude política dos cidadãos do continente está muito longe de se alinhar com posturas autoritárias ou de extrema direita. E que o desgaste da democracia pode representar, de fato, de uma percepção crítica dos cidadãos em relação ao sistema político que não se alinha com o autoritarismo de direita. Nesta análise utilizaremos os resultados gerais no continente, que são muito semelhantes aos resultados para o Brasil.
Em primeiro lugar se pode analisar as questões que dizem respeito às atitudes frente à democracia e ao autoritarismo. A pesquisa mostra que a maioria das pessoas (52%) afirma que a democracia é o modo de governo preferido, enquanto apenas 16% afirmam que “em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser preferível”. No entanto, ainda que a maioria das pessoas pesquisadas afirmem apoiar a democracia, quando questionados se estão satisfeitos com o funcionamento da democracia, apenas 33% dos entrevistados afirmam estar satisfeitos, enquanto 65% afirmam estar insatisfeitos com o funcionamento da democracia no seu país. Ainda assim, mesmo com esta insatisfação, 62% discordaram quando foram questionados se “está bem que o presidente passe por cima das leis, do parlamento e/ou as instituições com o objetivo de resolver os problemas”.
No entanto é importante considerar que este apoio à democracia tem limites, pois 53% dos entrevistados afirmaram também que não se importariam que “um governo não democrático chegasse ao poder se resolve os problemas do país”. Isto revela que a erosão do apoio à democracia está relacionada à incapacidade da democracia atual em resolver os problemas. Isto fica ainda mais claro quando se pergunta aos entrevistados acerca de para quem o país é governado. 72% dos entrevistados consideram que o seu país está governado por alguns grupos poderosos que governam em seu próprio benefício, enquanto apenas 24% afirmam que o país é governado para o bem de todo o povo. Além disso 76% dos entrevistados afirmam que a distribuição de renda no país é “injusta ou muito injusta”. Quando perguntados acerca que quem tem mais poder no país 60% afirmam que é o governo, 49% que são as grandes empresas e 38% que são os partidos políticos. Apenas 16% dos entrevistados afirmam que os cidadãos são quem tem mais poder.
Na pesquisa se identifica também uma demanda por mudança na sociedade. Do total de pessoas entrevistadas 55% afirma que a sociedade necessita de reformas profundas (29%) ou que precisa mudar radicalmente (26%). Ao mesmo tempo 75% dos entrevistados não se sentem representados pelo parlamento. Os resultados, portanto, dão conta de uma percepção por parte dos cidadãos de que a realidade econômica atual dos países do continente é injusta e que o sistema político tal como existe hoje não dá conta de atender as necessidades da maioria do povo. Assim, paralelamente a uma adesão à democracia como um valor a ser defendido, há uma compreensão de que a maneira como nossa democracia funciona não beneficia o povo.
Resumindo esta visão panorâmica da opinião política na América Latina é possível compreender melhor a natureza da insatisfação política dos cidadãos. Em sua maioria, as pessoas tendem a apoiar a democracia e rejeitar o autoritarismo. No entanto, há uma clara percepção de que o funcionamento da democracia é precário e que nossos governos não respondem às demandas da população nem se mostram capazes de resolver os problemas mais importantes relativos ao bem-estar do povo. As pessoas percebem que o poder econômico predomina na política e que a democracia tal como a vivemos hoje não atende às demandas dos cidadãos. Isso corrobora a ideia de que a extrema direita ganha audiência justamente por se apresentar como aqueles que tem como objetivo representar os interesses das pessoas comuns contra um sistema que as oprimem.
O que é importante ter em conta é que vivemos em um momento de profunda crise de legitimidade de nossos sistemas político e econômico. E é isto que dá combustível para a extrema direita, uma vez que ela se apresenta, via de regra, como uma força política antissistêmica. Desde Bolsonaro, cujo discurso se baseia em ser “contra tudo que está aí”, passando por Trump que constrói um discurso de ser o representante dos cidadãos comuns contra o “Deep State”, até chegar a Milei com seu discurso contra “a Casta”, o centro do discurso da extrema direita se estrutura em torno de capitalizar a insatisfação do cidadão comum contra o status quo. Para além do conservadorismo e do fundamentalismo religioso, o que move uma grande parte dos eleitores para a extrema direita é uma revolta contra o sistema.
É evidente que existe um núcleo duro, ideológico, de suporte à extrema direita, mas este contingente é minoritário. Este extremismo mais orgânico é o fator que mobiliza uma vanguarda muito atuante, uma militância agressiva que potencializa a eficácia política da extrema direita. E isto dá uma impressão de que as teses da direita mais radical têm um apoio político mais amplo do que de fato tem. Mas no conjunto da sociedade a adesão ao discurso populista de direita reflete muito mais uma desilusão com as forças políticas tradicionais (entre elas a esquerda) do que um projeto ideologicamente muito claro.
Minha hipótese é de que o crescimento da extrema direita vem muito mais desta sua capacidade de se posicionar como representante dos “cidadãos comuns” contra um status quo que a maioria das pessoas percebe como injusto e antidemocrático. E as forças democráticas e progressistas se limitam a “defender a democracia”, sem se dar conta de que a percepção dos cidadãos (correta, aliás) é a de que não vivemos uma democracia plena. Para piorar, os políticos, via de regra, estabelecem uma relação muito fluida com seus eleitores. Buscar o voto dos cidadãos em campanhas eleitorais a cada dois anos tende a ser o máximo de esforço dos defensores da democracia liberal. Há muito pouco esforço de construção orgânica, de educação política, de debate consistente,de reflexão coletiva. Os políticos da esquerda são cada vez mais parecidos com os políticos tradicionais. E esta percepção de que “eles são todos iguais” é que abre caminho para os “outsiders” que se apresentam como anti-políticos.
Esta capacidade de capitalizar a insatisfação contra o sistema é que vem proporcionando uma vantagem competitiva enorme para a extrema direita. E a esquerda, que por contraste se apresenta como defensora das instituições democráticas, não percebe que estas instituições todas (parlamento, governos, judiciário, partidos) não tem mais legitimidade entre os cidadãos. As pessoas valorizam a democracia, mas não acreditam mais nas instituições e nas forças políticas que operam no sistema. Ao terminar posicionada, por um excesso de realismo político, como defensora do status quo, a esquerda perde muito de sua legitimidade junto aos cidadãos comuns. Neste contexto, a estratégia convencional adotada defendida por alguns setores, de moderação, de convergência para o centro, pode resultar exatamente no oposto do que se pretende. Diluir uma visão crítica acerca do sistema, das desigualdades sociais e das instituições representativas, buscando um alinhamento com as forças de centro deixa o caminho aberto para que a profunda insatisfação popular siga sendo capitalizada pela direita.
É verdade que o conservadorismo ideológico tem crescido. As mudanças sociais e econômicas das últimas décadas vêm colocando as pessoas em uma situação de fragilidade e incerteza. Neste contexto, a busca pela segurança pode se converter em um apelo por uma mítica volta aos bons tempos de antigamente. Mas é verdade também que esta tendência só se consolida porque uma parte importante da crítica aos problemas de nossa sociedade foram sendo pouco a pouco abandonada pelas forças da esquerda. Em muitos casos é possível constatar que o público eleitor da extrema direita, como em algumas regiões da França ou mesmo nos Estados Unidos, era originalmente eleitor da esquerda. É preciso se perguntar até que ponto mudaram os eleitores ou mudaram as forças da esquerda.
A esquerda precisa recuperar seu horizonte utópico e transformador. Não estou dizendo com isso que uma ampla frente contra o fascismo não seja importante. Mas até mesmo para a construção e fortalecimento de uma frente desta natureza é necessário ter um projeto político claro capaz de interessar e mobilizar os cidadãos. Não é reproduzindo as formulas tradicionais e adotando uma moderação programática que as esquerdas vão recuperar o protagonismo. Hegemonia não se conquista aderindo ao senso comum, pelo contrário, é preciso ser capaz de apontar um projeto claro de transformação que seja capaz de capitalizar a insatisfação popular. Esta nitidez programática não significa a adoção de um discurso estreito, sectário, de conflito com as forças de centro. Significa, isto sim, ser capaz de formular propostas claras, relacionadas aos problemas do dia-a-dia das pessoas comuns.
Mais do que retoricamente defender as instituições democráticas, a esquerda precisa implementar práticas democráticas. Exercer a democracia na prática é o melhor caminho para fortalecê-la. Para isto é preciso qualificar o debate político, construir solidariedade, fortalecer a organização popular, O discurso abstrato em defesa da democracia não convence mais os eleitores, até porque eles não identificam a realidade que vivemos com uma democracia. Para as esquerdas se coloca o desafio de mudar suas práticas políticas, deixar a ênfase atual da política institucional e voltar a se enraizar na sociedade. Sair dos gabinetes, conhecer as pessoas, ouvir as pessoas, construir práticas inclusivas e democratizantes, este é o melhor caminho para enfrentar o crescimento da extrema direita.
* Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
