Nasci em Salvador e vivo a contradição eterna de escutar elogios rasgados sobre a nossa suposta alegria contagiante e sinto o pior que essa cidade tem para oferecer. O Carnaval é um desses momentos. Cidade em festa, muito riso e felicidade e, ao mesmo tempo, muita exploração, choro e cansaço. Denunciar exploração é difícil no Brasil. Os centros de poder continuam intactos mesmo após as diversas denúncias que são veiculadas nos jornais, ministérios e delegacias do trabalho. O silêncio, a inércia e o descaso são resposta porque, geralmente, os explorados compartilham o mesmo elemento unificador que o meu: somos pretos.
Sou uma trabalhadora que vê o Carnaval como meio de tirar uma grana para pagar as suas contas. O meu relato começa no Subúrbio, mas poderia começar a partir de qualquer quebrada de Salvador. A rotina de trabalho começa a partir do momento em que eu saía de casa às 13h, chegava no circuito às 15h, trabalhava até às 5h para, ao final, aventurar um transporte de aplicativo para casa. Até chegar em casa, são quase 20h entre trajeto e trabalho e o dia seguinte era logo ali.
Ser parte da mão de obra do maior Carnaval de rua do mundo é uma experiência de moer qualquer um. Trabalhei no bar de um camarote que não tinha descanso programado para seus funcionários, tampouco alimentação. Vou repetir: sem descanso, sem alimentação. No primeiro dia, o lanche foi feito em pé, todos virados de costas para os clientes do camarote, comendo rápido porque o ato de se alimentar foi feito às escondidas. O lanche? Metade de um dogão para cada um.
No segundo dia, o dogão que salvou não apareceu. O nosso alimento veio da subversão. Um copo do energético do nosso bar era trocado por mini coxinhas que estavam sendo servidas para os clientes. A troca era feita entre os trabalhadores. Tudo passado por debaixo dos panos, na correria para ninguém ver e tomar reclamação. Comemos agachados, enfiando as mini coxinhas rápido na boca. O elemento que nos une foi o que nos alimentou: todos os funcionários eram pretos, todos. Pelo olhar, a gente sabia de tudo. Alguns clientes também perguntaram se estávamos alimentados e dissemos que não. Então, alguns deles trouxeram mini coxinhas para que servisse de alento pro nosso estômago. Ou seja, se não houvesse essa cooperação, nós não comeríamos nada durante as horas trabalhadas.
A explicação da empresa terceirizada que nos contratou para o trabalho sem alimentação é que o cachê cobriria esse custo. O valor do cachê por diária: R$ 170,00.
Ao mesmo tempo, em outro camarote igualmente grande, o meu companheiro, que também estava trabalhando em um bar, tinha uma marmita com comida azeda em suas mãos. Para ele, existia 1h de descanso, mas, desse tempo, levava-se 30min para chegar até a área de descanso. Nesse mesmo camarote, numa rotina genuinamente brasileira, os trabalhadores foram obrigados a abrir as suas bolsas e mostrar os seus pertences na saída, e ainda tiveram que jogar fora o biscoito que receberam como lanche no final do expediente com a justificativa de que “não poderiam sair com nada de lá”. Mas eu posso garantir que saíram com remorso, dor e ódio.
E talvez seja esse último sentimento o que me faz parar pra escrever esse relato. Nós, eu e meu companheiro, não voltamos para terminar os 7 dias acordados previamente. É impossível, humilhante e odioso. Fomos embora com a promessa de nunca mais voltar para esse lugar.
No meu último dia, após ter ficado tonta de fome e já ter cumprido 14h de trabalho em pé, meu corpo mal reagia. Foram três dias nessa rotina, meus colegas completaram os 7 dias e hoje, 13 de março, ainda não receberam todo o pagamento, inclusive eu. Escrever sobre o que aconteceu no Carnaval de 2025 só me parece interessante se esse relato servir de munição para mudança.
Contudo, as práticas deploráveis das empresas que prestam serviço para os camarotes não são casos isolados. Os camarotes têm ciência das condições, os ambulantes que ficam espalhados nas ruas são vistos por todos. Os artistas que se apresentam em lugares que permitem que seus funcionários sejam explorados precisam ser responsabilizados também. As auxiliares de serviços gerais, carregadores, cozinheiras são contratados com um cachê de R$ 100,00 por dia para fazer um serviço de 14h, 15h. Saindo dos mesmos lugares que eu, voltando em ônibus lotados para dormir 4h e voltar no dia seguinte.
Vale dizer, ainda há quem trabalhe com integridade, quem crie oportunidades dignas de trabalho. Essas empresas geralmente são geridas por pessoas que sabem o valor do trabalho. E essas empresas precisam de espaço para promover a diversidade e inclusão de quem faz a folia acontecer e inovar dentro desse ambiente hostil que, a cada ano, suga a energia da força de trabalho que emprega temporariamente. Sabemos que as dinâmicas da indústria do entretenimento às quais essas empresas/produtoras estão submetidas são violentas, racistas e oferecem condições de trabalho que remetem ao colonialismo. Já passou da hora de fazer a diferença. O problema é que essas empresas que ousam ser diferentes e furam a bolha acabam excluídas do mercado, estando sempre submetidas a poucos ou nenhum contrato. Já passou da hora de ser diferente.
Não há necessidade de apelar para o senso moral de qualquer um. Todos sabem, ou deveriam saber, quais as condições de trabalho durante o Carnaval de Salvador. O que nos resta saber é: quando é que nós, pretos e trabalhadores, vamos retomar a nossa dignidade?
*Desirée Idaliette Oliveira é mulher preta, soteropolitana e suburbana, mestranda em História pela UFBA. Professora e educadora, se dedica a inspirar e empoderar jovens mentes negras, fortalecendo a resistência e a luta contra todas as formas de violência.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.