Ainda são muitos os desafios cotidianos vividos pelas mulheres pesquisadoras e com carreiras científicas. A reflexão da professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Christine Ruta também reconhece os avanços, sobretudo de políticas públicas recentes que tentam amenizar os desafios que perpassam não só a questão de gênero, mas também de classe e raça.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) abordou os direitos das mulheres na ciência, a atuação do Fórum em diálogo com a sociedade e como sua gestão à frente do órgão reflete a trajetória como professora universitária e pesquisadora das ciências biológicas marinhas.
“Posso afirmar que para nós mulheres, pesquisadoras, todo dia é um campo de batalha”, disse Ruta. A professora também ressaltou que o objetivo do Fórum é aproximar a universidade da sociedade, garantindo que a produção acadêmica não fique apenas fechada em espaços elitizados. Mas sim que possa estar em constante diálogo com a diversidade de saberes e as demandas sociais.
“Nossa finalidade é articular não somente na transversalidade das áreas de conhecimento na universidade, mas também na disputa de narrativas e no diálogo sobre essas outras dimensões que compõem a sociedade brasileira, como as questões de gênero, as questões étnicos-raciais, as questões que influenciam na vida de pessoas com deficiência, nos povos e comunidades de saberes tradicionais que possuem outras cosmovisões”, afirma Ruta.
No mês de luta das mulheres, por exemplo, uma programação gratuita organizada pelo Fórum debate temas como gênero, memória, democracia, aquilombamento e direitos humanos. Nesta sexta-feira (21), acontece a mesa “Mulheres na Política e na Ciência, direitos adquiridos e direitos a serem conquistados” na Casa da Ciência, a partir das 18h.
O Fórum de Ciência e Cultura é um órgão colegiado que coordena as políticas de difusão cultural e de divulgação científica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fazem parte do Fórum o Museu Nacional, Sistema de Bibliotecas e Informações da UFRJ (SIBI-UFRJ), Casa da Ciência, Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE), Universidade da Cidadania, Núcleo de Rádio e TV, Sistema de Museus, Acervos e Patrimônio Cultural da UFRJ (SIMAP-UFRJ) e Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi).
Leia a entrevista com a coordenadora do FCC/UFRJ Christine Ruta:
Brasil de Fato: Quais conquistas relacionadas aos direitos das mulheres na ciência considera fundamentais? E como o Fórum pode contribuir nesse sentido?
Christine Ruta: Mesmo com muitos desafios e barreiras que perduram até os dias atuais, sabemos que as mulheres têm um papel fundamental no desenvolvimento do planeta e das sociedades. Mulheres como Bertha Lutz, Marie Curie, Ada Lovelace, Rosalind Franklin, Nise da Silveira, Joan Murrell Owens [mulher negra norte-americana estudiosa de corais marinhos], Alice Ball [cientista negra pioneira no tratamento da hanseníase] são alguns nomes de mulheres pioneiras que posso citar.
Essas e outras milhares de mulheres desafiaram estereótipos e abriram portas para que nós estejamos ocupando espaço na ciência e tecnologia. Dentre as conquistas relacionadas aos direitos das mulheres na ciência, destaco duas conquistas mais recentes que considero fundamentais.
Uma é a Lei nº 13.536 de 2017, que estende o prazo de licença maternidade com direito à bolsa para pós-graduandas, assegurando de certo modo a essas mulheres, mães, tenham recursos financeiros e possam continuar em seus trabalhos de pesquisa posteriormente a licença; e a Lei 14.611/2023, infelizmente sancionada somente em 2023, também conhecida como a Lei da Igualdade Salarial, da qual determina que homens e mulheres devem receber salários iguais ao exercerem a mesma função.
Mesmo com essas e outras conquistas alcançadas, ainda não muitos os desafios vividos, e não posso deixar de mencionar que esses desafios e barreiras também perpassam não só por um recorte de gênero, mas também étnico-racial.
Quando fazemos esse recorte, observamos que ainda são profundas as desigualdades neste país. Então a luta é diária para que os direitos das mulheres sejam garantidos com equidade para todas.
Acredito que o Fórum de Ciência e Cultura contribui e pode continuar contribuindo muito para os avanços de direitos de mulheres na ciência e na cultura, seja na valorização do fazer cultural ou na divulgação científica por meio de suas ações e projetos. Obviamente, essa luta não se faz sozinha, então o Fórum pode ser um Centro importante de articulação dentro da UFRJ para continuarmos com avanços na ciência e no campo cultural.
Como pesquisadora, o que marcou sua trajetória considerando as barreiras históricas das mulheres na carreira acadêmica?
São muitos os desafios não só como pesquisadora e professora universitária, mas também como gestora de um Centro. Acredito que as mulheres e meninas desde muito cedo se deparam e acabam tendo que se preparar para lidar com essas barreiras de um mundo que ainda é muito patriarcal.
No meu caso, construir uma carreira acadêmica, de pesquisa no campo das ciências biológicas marinhas não foi fácil, a gente se depara com todo tipo de situação. Nós, das Ciências Biológicas, temos muito trabalho de campo, né? Usamos muito essa expressão: “Ah, hoje tem campo, vamos para campo”.
Posso afirmar que para nós mulheres, pesquisadoras, todo dia é um campo de batalha.
Eu e muita das minhas alunas, por exemplo, já passamos por diversas situações de deslegitimação do nosso trabalho, de ouvir que não iríamos conseguir desenvolver tal pesquisa ou porque não saberíamos lidar ou carregar determinado equipamento pesado, ou que seria muito perigoso estarmos em alto mar, lidando com pescadores, marisqueiros, etc.
Como essas experiências influenciam sua atuação à frente do Fórum?
Acho que influencia no sentido de trabalharmos para quebrar ainda mais essas barreiras e garantirmos mais direitos à mulheres diversas. Hoje temos um quadro de servidores formado majoritariamente por mulheres, em sua maioria assumindo cargo de liderança. Isso é um diferencial se compararmos a outras instâncias da universidade, e acredito que ter uma diversidade de pessoas, fortalece a nossa institucionalidade.
Nossa finalidade é articular com outras instâncias da universidade na promoção de ações transversais do conhecimento, mas não somente das áreas de conhecimento que estão na universidade, mas também no debate, na disputa de narrativas e no diálogo sobre essas outras dimensões que compõem a sociedade brasileira, como as questões de gênero, as questões étnicos-raciais, as questões que influenciam na vida de pessoas com deficiência, nos povos e comunidades de saberes tradicionais que possuem outras cosmovisões.
Acredito que o Fórum esteja trabalhando para que essas questões sejam emergidas, pautadas dentro da universidade e em diálogo com a sociedade.
Quais entraves ainda persistem para as mulheres na ciência?
A participação das mulheres na ciência tem aumentado ao longo dos anos, mas ainda são muitos os entraves que dificultam a plena equidade de gênero. Apesar de estarmos em grande número nas universidades, poucas mulheres chegam a cargos como chefes de laboratório, diretoras de institutos ou como reitoras.
Ainda nos deparamos com pouco incentivo de políticas para mulheres na maternidade, que muitas vezes dificulta a continuidade ou até o reingresso ao mercado de trabalho e ao campo da pesquisa, isso também se relaciona com a sobrecarga com tarefas domésticas e de cuidado que ainda recai desproporcionalmente sobre as mulheres. Em algumas pesquisas que estão sendo realizadas com esse recorte, por exemplo, nota-se que há um crescimento da formação de doutoras, mas a persistência e dificuldades de progressão dessas mulheres na carreira científica, como docentes permanentes.
E volto a dizer, quando vemos esses entraves de gênero e relacionamos outros recortes, como de raça, de pessoas com deficiência, de pessoas que vivem em zonas rurais, esses entraves são ainda mais evidentes. Acredito que para superar essas barreiras, são necessárias políticas institucionais, maior conscientização sobre a equidade de gênero, direcionar mais programas de mentoria, de incentivo financeiro específico para mulheres considerando as interseccionalidade de fatores sociais.
Como o Fórum articula projetos para democratizar o acesso ao conhecimento?
A articulação dos projetos e ações com o intuito de democratizar o acesso ao conhecimento exige planejamento, parcerias estratégicas e metodologias que garantam a inclusão de diferentes públicos em nossas ações. Além da articulação entre os Centros e institutos da própria UFRJ, buscamos parcerias com outras instituições de ensino e também instituições públicas e privadas, como o Ministério da Cultura, o Ministério da Igualdade Racial, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação bem como outros agentes públicos importantes que apoiam a cultura e a ciência, de forma que nossas ações possam chegar a diferentes setores e sujeitos da sociedade.
O nosso intuito é que, por meio da pesquisa científica, da produção de saberes, arte e cultura, possamos beneficiar e transformar a realidade das pessoas, da nossa cidade, do estado e país.
Um exemplo disso, é o recente Acordo de cooperação técnico-científico que firmamos entre a UFRJ, através do FCC, a Prefeitura de Salitre, município do Oeste do Cariri (CE) e a Associação Comunitária dos Artistas e Artesãs da Comunidade de Salitre, Ceará, mantenedora do Museu de Geodiversidade de Salitre Elói Francisco da Silva.
Com esse acordo, temos como objetivo promover a investigação científica, a educação ambiental e a preservação dos sítios de geoconservação da região, buscando fortalecer e fomentar práticas associadas à agroecologia, ao ecoturismo, ao turismo científico, à geoeducação e à valorização das expressões culturais locais, contemplando os saberes e as tradições das comunidades quilombolas e dos povos Kariri. É maravilhoso!
É um projeto que beneficia o território, a população, mas que também dialoga, a inclui, a envolve na construção e desenvolvimento do projeto. Não é a universidade levando conhecimento ou usufruindo do território, mas construindo caminhos de partilhas com a sociedade. Penso que esse é o tipo de democratização de acesso que também precisamos fortalecer.