“Foi um trauma para mim”, relatou Larissa Xavier, que ficou internada por 38 dias no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), instituição psiquiátrica do Distrito Federal (DF) onde uma paciente de 24 anos foi encontrada morta em dezembro do ano passado. “É uma situação de morte mesmo, vai te destruindo, sabe? Eu percebi que quando eu saí do hospital eu estava mais envelhecida, pela tortura”, contou. O depoimento foi dado nesta quinta-feira (20), durante reunião da Frente Parlamentar de Luta Antimanicomial, na Câmara Legislativa do DF (CLDF).
O encontro foi marcado pela apresentação do relatório de inspeção realizada no HSVP em janeiro deste ano para averiguar as circunstâncias em torno da morte de Raquel Franca. O documento aponta que há “fortes indícios” de que a jovem foi vítima de “condutas prejudiciais e desassistência” e recomenda à Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) o fechamento imediato da porta de entrada do hospital. “[A morte da Raquel] não é um caso isolado. Esse é o fluxo do hospital. É isso que o manicômio: prende, amarra, dopa, tortura e mata”, afirmou a presidenta do Conselho Regional de Psicologia do DF (CRP-DF), Thessa Guimarães.
A diligência no HSVP, localizado em Taguatinga (DF), feita no dia 6 de janeiro deste ano, foi acompanhada pelos deputados distritais Gabriel Magno (PT-DF), presidente da Frente Parlamentar Antimanicomial, e Fábio Felix (Psol-DF); e pela deputada federal Erika Kokay (PT-DF), além de representantes do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura (MNPCT), do Ministério de direitos Humanos e Cidadania, do Conselho de Saúde do DF, do Conselho Distrital de Direitos Humanos, da Comissão de Direitos Humanos da CLDF, do Conselho Regional de Serviço Social (Cress-DF), do CRP-DF e do Observatório de Saúde Mental da Universidade de Brasília (UnB).
Na avaliação das condições estruturais e de funcionamento do HSVP, o relatório destaca que a instituição sequer deveria existir, tendo em vista as legislações que determinam a substituição do atendimento à saúde mental no modelo asilar-manicomial por serviços baseados na concepção do cuidado em liberdade, a exemplo do que acontece nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e nas Residências Terapêuticas (RTs).
Uma das normas é a lei distrital nº 975/95. Promulgado em dezembro 1995, o texto previa a “redução progressiva da utilização de leitos psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados”, que deveriam ser extintos em um prazo de quatro anos, ou seja, até 1999. Há um atraso de mais de 24 anos no cumprimento da norma. Por isso, o relatório conclui que o funcionamento do HSVP é ilegal.
“Essa denúncia vem sendo feita desde 1999, por outros parlamentares e por movimentos sociais. É um marco da ilegalidade que o DF vive de ainda ter um manicômio público em funcionamento na capital, ao arrepio da lei, mas também de uma série de denúncias de violações de direitos humanos”, alertou Magno durante a aberta da reunião desta quinta-feira (20).
Pior cobertura de Caps
A Reforma Psiquiátrica, instituída pela lei 10.216 de 2001, preconiza uma política de tratamento humanizado para pacientes com transtornos mentais, visando a integração à sociedade. Uma das principais diretrizes da Reforma é a desinstitucionalização e o fechamento de manicômios e hospícios, locais de internação prolongada e, portanto, de isolamento dos pacientes.
A Rede de Atenção Psicossocial (Raps), da qual os Caps fazem parte, é a alternativa para esse modelo manicomial. A política propõe outras modalidades de assistência, por meio, por exemplo, de equipes multidisciplinares e da participação comunitária no tratamento. Já o atendimento de emergências em saúde mental deve ser feito em leitos psiquiátricos de hospitais gerais.

O DF, no entanto, tem uma das piores coberturas de Caps do país, contando com apenas 18 serviços desse tipo. Segundo a 13ª edição do relatório Saúde Mental em Dados, divulgado pelo Ministério da Saúde neste ano, o indicador de cobertura de Caps por 100 mil habitantes no Brasil é de 1,17, enquanto no DF esse índice é de 0,55, o segundo pior do país, ficando atrás apenas do Amazonas (0,49). Além disso, o DF conta com apenas uma Residência Terapêutica – moradia destinada ao tratamento assistido de pacientes que necessitam de suporte contínuo à saúde mental, para onde, segundo o relatório de diligência do HSVP, Raquel Franca deveria ter sido redirecionada.
De acordo com especialistas, a existência do HSVP é um obstáculo para a ampliação da Raps no DF, tendo em vista o aporte de recursos direcionados para a manutenção da instituição. Segundo informações da Secretária de Saúde do DF (SES-DF), em agosto de 2023, o custo mensal médio do HSVP era de mais de R$ 5,7 milhões, chegando ao valor anual de R$ 69,3 milhões. Já para a manutenção de dois Caps do tipo 3, que possuem leitos para acolhimento noturno e oferecem atendimento 24 horas, a média mensal é de R$ 640 mil. Portanto, o recurso gasto para manter o HSVP seria suficiente para custear nove Caps 3.
Os serviços de atendimento à saúde mental no DF também sofrem com falta de pessoal. De acordo com dados apresentados pelo professor do Instituto de Psicologia da UnB Pedro Costa, o DF ocupa a 20ª posição entre as 27 unidades federativas no que se refere ao número de psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos alocados em Caps, com apenas 290 profissionais nesses serviços.
“O custo do [Hospital] São Vicente de Paulo é financeiro, econômico e político, mas é, sobretudo, ético. Ele não onera apenas o Estado, a sociedade, mas custa vidas”, concluiu o professor. Segundo Costa, de 2018 a 2024, quatro profissionais do HSVP suicidaram. “É um custo humano, custa a vida de Raquel, custa a vida inclusive dos profissionais que são desumanizados ao serem colocados lá. O manicômio é mortificador para quem é depositado, para quem trabalha, ele depende disso, é da natureza dele”, destacou.
Tragédia anunciada
Raquel Franca de Andrade, de 24 anos, morreu no HSVP em 25 de dezembro de 2025. No prontuário daquela noite, há o registro de que a paciente apresentou uma “crise convulsiva, simulando??”. A suposta simulação foi avaliada pela plantonista do hospital, que informou no documento que aplicou medicação de acordo com a prescrição médica da interna.
A hipótese diagnóstica de simulação da convulsão foi questionada pelo grupo que realizou a diligência no hospital em janeiro. Segundo o relatório, há divergências entre as informações prestadas pela equipe de saúde no momento da diligência e o relato dado pelo médico do hospital a um familiar adotivo de Raquel. Segundo este, a paciente morreu “na hora da medicação”.
O relatório também aponta que diante da crise convulsiva e do histórico clínico de Raquel, ela deveria ter sido encaminhada para serviço de emergência de um hospital geral, o que não aconteceu. “De outra parte, ultrapassado o debate do não encaminhamento da Raquel para um Hospital Geral ou o pronto acionamento do SAMU, o diretor não conseguiu negar o fato de que a interna, após ser medicada, ficou sem monitoramento, vindo a óbito nesse período”, afirma trecho do documento.
Além disso, a diligência identificou que Raquel sequer deveria estar internada no HSVP, já que por se tratar de internação de longa permanência e atender aos critérios estabelecidos para a desinstitucionalização, ela deveria ser atendida em Residência Terapêutica (RT).

Os relatos das internas, ouvidos durante a diligência, indicam que a rotina no hospital é de ócio e hipermedicalização. Violência verbal e contenções mecânicas também fazem parte do dia a dia do HSVP, segundo o relatório, o que também já foi apontado em documentos de vistorias do MNPCT.
“Na Ala Feminina da Enfermaria, constataram-se mulheres em sono profundo, que mesmo diante do movimento e barulho gerado pela diligência, permaneceram imóveis, como se nada estivesse ocorrendo, dando indícios de hipermedicalização e da contenção química também como normalidade
institucional”, afirma o relatório. Os relatos coletados durante a diligência indicam que o HSVP apresenta características típicas de instituições asilares-manicomiais, conclui o grupo.
“Nós fomos no São Vicente, o número de pessoas que estavam dopadas em cima de camas era imenso. E o que é isso? É uma medicalização excessiva, é a transformação das camisas de força que eram físicas em camisas de força químicas?”, questionou a deputada Erika Kokay durante a reunião desta quinta-feira (20).
Recomendações à secretaria de Saúde
Além das denúncias de violações, o relatório da diligência no HSVP traz uma série de recomendações à SES-DF. Dentre elas, estão o afastamento imediato da direção do hospital, considerado essencial para garantir a investigação imparcial das circunstâncias da morte de Raquel, e a implementação de medidas para a desativação definitiva da instituição psiquiátrica, com o fechamento imediato da porta de entrada do pronto atendimento (PA) do HSVP. “Não dá mais para o São Vicente receber gente como se aquela prática fosse a prática correta de atendimento à saúde mental”, avaliou Fábio Felix.
O documento também recomenda o redirecionamento dos trabalhadores do HSVP para os outros serviços da rede do SUS, “garantindo a escuta e protagonismo deles nesse processo de transição”, e a otimização do processo de desinstitucionalização dos usuários, garantindo a continuidade da assistência em serviços que priorizem o reestabelecimento de vínculos familiares e comunitários.
“A secretaria não compactua com nenhum tipo de violação de direitos”, afirmou a subsecretária de Saúde Mental da SES-DF, Fernanda Falcomer, durante a apresentação do relatório. Ela informou que o Grupo de Trabalho (GT) da pasta já apresentou um plano de ação com cronograma de desmobilização de leitos psiquiátricos, tanto no HSVP, quanto em outras instituições, como o Hospital de Base, o Hospital Universitário e o Hospital da Criança.

Em relação ao HSVP, a subsecretária informou que o plano de desmobilização da enfermaria será iniciado em abril, com previsão de conclusão em setembro deste ano. “Não terá internação no São Vicente de Paulo a partir de setembro”, prometeu.
De acordo com Falcomer, cerca de 800 pessoas buscam mensalmente atendimento no pronto atendimento do HSVP, para troca de receitas, em crises agudas e outras condições. “Diante da exigência de fechamento da porta, a minha pergunta é: ‘Onde nós vamos atender essas pessoas de forma imediata?’ Para nós, hoje, na gestão, não foi possível tomar a decisão de fechamento imediato, porque nós reconhecemos a fragilidade da nossa rede, do ponto de vista da cobertura, do não investimento em anos anteriores também”, afirmou. “A melhor resposta que podemos dar enquanto gestão é fazer uma programação responsável do ponto de vista da assistência às pessoas”, ponderou a subsecretária.
No que diz respeito à exigência da troca da equipe de direção do HSVP, Falcomer informou que o caso está “em tratativas” com o novo secretário de Saúde do DF, Juracy Cavalcante, que assumiu a pasta no final de fevereiro.
O Ministério Público do DF (MPDFT) também participou da reunião de apresentação do relatório e afirmou que acompanha a investigação da morte de Raquel e aguarda o laudo do Instituto Médico Legal (IML) sobre o caso.
“Não é viável, para o Ministério Público, acabar com o HSPV amanhã. Precisamos de um plano de desmobilização, porque se estamos, de fato, preocupados com o sofrimento daqueles usuários, cada um deles tem uma situação que é muito específica e que precisa ser tratada com o cuidado que essas pessoas merecem, a desmobilização precisa acontecer o mais rápido possível, mas acompanhada do robustecimento do restante da rede de saúde mental”, afirmou o promotor Bernardo Matos, que informou que o MPDFT criou um GT para concretizar o plano.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::