Itahu Ka’apor e Mariuza Ka’apor são representantes do povo indígena Ka’apor, do Maranhão, e membros do Tuxa Ta Pame, uma forma de organização própria. Entre 4 e 8 deste mês, eles estiveram em Genebra, na Suíça, participando de diferentes atividades para denunciar ao mundo as violações em seus territórios. Suas terras, ao Norte do Maranhão, estão sendo agredidas por extração ilegal de madeira, mineração, desmatamento e invasões, políticas de créditos de carbono e queimadas criminosas que vem ampliando os conflitos na região. São ataques praticados tanto por pessoas quanto por empresas.
Participaram de reuniões com organizações de direitos humanos e acompanharam a apresentação do relatório da visita ao Brasil feita pela Relatora Especial das Pessoas Defensoras de Direitos Humanos, Mary Lawlor, na 58ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, onde relataram as ameaças que vem sofrendo.
Outra atividade em que Itahu e Mariuza Ka’apor estiveram envolvidos foi a exibição seguida de debate do documentário We Fight For This Land: Quilombola and Indigenous Resistance to Ecowar Violence in the Amazon.
Na sua passagem por Genebra, os dois conversaram com a correspondente do Brasil de Fato RS e contaram um pouco de suas lutas e da forma de ver o mundo do povo Ka’apor.

Brasil de Fato: Qual é a situação atual no seu território?
Itahu Ka’apor: Nosso território atual chega a 535 mil hectares e população indígena chega a aproximadamente três mil indígenas por capó.
O problema do território é o crédito de carbono. Está tendo discussão, reunião. Está levando dois anos agora. Está tendo muita divisão entre nós, lideranças e comunidade. Essa empresa dos Estados Unidos está levando conflito para nós. Então, o crédito de carbono, esse redmine que chama, vai levar muito dinheiro mas só que não cabe pra nós. Então, a nossa autonomia, a nossa cultura, vão perder através desse mercado de crédito de carbono. Está tendo divisão muito grande, muito impacto para nós e não são só empresas. Também tem fazendeiro, garimpeiro, caçador. Estamos organizando a denúncia, né? Espero que vai dar resposta. Na vinda nossa aqui, a relatora – nós fizemos documento – talvez também pode ajudar, mandar para Brasília para dar como resposta da reclamação. Tuxá Ta Pame não aceita essa empresa no território.
Nesse sentido aí, fizemos documento para o Ministério Público Federal, para o juiz do estado do Maranhão e está paralisado para eles. Vamos continuar lutando, não aceitamos essa empresa dentro do território.
“Caça, peixe, água. Para nós, é muito rica a natureza e não é para negociar”
Como foi o processo dessas empresas? Como a empresa se instalou no seu território? Qual foi o impacto para sua comunidade?
Compraram liderança e fizeram a reunião escondida do Grupo Tuxá, que é o Conselho de Gestão Ka’apor. Ainda hoje essa reunião está acontecendo. Eles dizem Tuxá não representa (nada) para eles. É uma associação que representa essa esses mercados de carbono da empresa para eles e não Tuxa. O deles representa a associação. A gente tem uma associação não indígena, mas é a associação do branco. Esse representa a empresa para eles e não Tuxa. Temos uma organização própria, temos regra e temos que respeitar a natureza. Somos Ka’apor que significa mata, né?
Ka’apor mora no mato. Meu nome é Itahu Ka’apor. Sou Itahu, morador da mata. Esse é o nosso sobrenome. A gente não pode esquecer. Se a gente não tem mais a natureza, a natureza, a mata, o rio, como vamos colocar sobrenome? Vai destruir tudo, a mata. Muitas pessoas hoje não estão pensando nisso. Referência é natureza. A gente sabe comer as coisas. De onde a gente pega? Na mata. Caça, peixe, água. Tudo natureza. Para nós, é muito rica a natureza e não é para negociar. Qualquer tipo de empresa, qualquer tipo de coisa para vender para a empresa, nós não aceitamos. Por isso nós criamos uma regra. Chama-se Acordo de Convivência.
“A mata tem que ficar em pé. Ninguém vai derrubar. Ninguém vai vender madeira”
Como funciona o acordo de convivência e como vocês fazem a proteção do território?
Acordo de convivência, nós chamamos na (nossa) língua de Upiru Katuhá. É acordo que a gente está fazendo, tanto pessoais tanto (com a) natureza. Tem que respeitar o rio, tem que respeitar a mata, tem que respeitar encantados, tem que respeitar todo tipo de riqueza. Então, nós criamos acordo pra isso. Por exemplo, uma árvore grande, eu posso negociar, eu posso vender, mas não é permitido vender essa árvore, essa madeira, porque não é minha. O que é minha, eu estou tratando. O que não é minha é de todos nós. Não é (só de) nós, indígenas, e sim do mundo todo. Nesse sentido, não posso vender.
Todo ser humano tem que respeitar a natureza. Mas tem outro ser humano que não tem respeito, tanto com indígenas, tanto com a natureza. Então, essa pessoa que está vindo aí, tá sem noção, sem pensamento, isso quer saber destruição. Essa pessoa não é bem-vinda ao nosso território. A mata tem que ficar em pé. Ninguém vai derrubar. Ninguém vai vender madeira. O rio sem mercúrio. Para ter mais caça. Esse nosso acordo de convivência permite. Não é para vender. Não é para negociar (com) nenhum tipo de empresa.
Primeiro, acordo de convivência entre a família, para pensar tudo igual. Segundo acordo de convivência da comunidade, aldeia. Terceiro acordo de convivência, território e todos. Esse acordo de convivência temos que respeitar, criar regras. Se, por exemplo, uma pessoa vende a madeira escondida, temos regras para punir essa pessoa. Temos regras próprias para punir o erro. A gente está fazendo isso desde 2013. Deu certo para nós. Por isso não está tendo essa negociação do lado Tuxa. Mas, do lado da associação, tem negociação. E esse é o grande problema nesse momento, trazendo muita divisão.
“Essa proteção é territorial. Aí, não é só eu que tô ocupando. Vai jumento, vai cachorro, vai galinha, vai criança, vai mulher. É coletivo”

Vocês criaram um sistema de proteção. Como funciona o sistema e como vocês se protegem das invasões dos madeireiros, garimpeiros e, agora, das empresas de créditos de carbono?
Chegamos a uma alternativa ou estratégia. É proteção territorial. E aí criamos área de proteção. Área de proteção, pequena comunidade, desloca onde é extração de madeireiro, onde entra o caçador e a gente ocupa. Não é só grupo pequeno. É grupo grande que vai para lá, cem pessoas, primeira vez, aí ocupam. Esse tipo de alternativa, a gente pensou, deu certo. Ano passado, criamos 12 áreas de proteção. E essas 12 áreas de proteção, onde eu atuo agora, lá na minha comunidade, o impacto lá é madeireiro. Fomos ocupar no ano passado e não aceitamos mais a partir de onde nos instalamos agora lá. E aí dizemos pra eles ´Não, aqui não. Não queremos brigar com vocês. Nós temos o direito de ocupar porque aqui é nosso. E vocês podem sair. A gente não quer agredir vocês, bater. Pode sair, não pode entrar mais`.
Outra coisa também: temos guarda que protege do limite. Esse é o segundo tipo de proteção territorial. E visualização de dia-a-dia. O grupo pequeno de 20 pessoas sai do lugar, vai pra passar cinco dias andando o limite. Identificando onde é desmatamento, onde é impacto, onde é fazendeiro, e aí identificando. Quando a gente descobre, mobiliza o grupo grande pra expulsar. A parte da proteção, de fiscalização, nós conseguimos. Ocupar área de proteção a gente conseguiu. Até hoje, entendeu? Essa proteção é territorial coletivo. Aí não é só eu que tô ocupando. Vai jumento, vai cachorro, vai galinha, vai criança, vai mulher. É coletivo. Vai toda a sociedade vai ocupar da primeira vez.
“Depois a gente protegeu o território, expulsar madeireiro. Aí, vem a ameaça de morte para nós”
Quanto às agressões que sofrem, as invasões – vocês contaram que já tiveram várias mortes – como é a relação com as autoridades locais, estaduais e federais?
Essa forma de denúncia é muito precária para nós. Primeiro, quando a gente protege o território e o ser humano, a comunidade, não é boa para eles, para o Estado. Porque eles dizem para nós que quem protege o território é o governo federal. Porque o território foi demarcado pelo governo federal. Então, o governo federal, como a Funai, a Polícia Federal, o Ibama tem que proteger, mas só que ele nunca protege o território. Quem protege hoje é nós, o Conselho de Gestão. E por isso, eu e mais um apoiador, estamos criminalizados pelo Estado. Nós estamos criminalizados tanto pela saúde, tanto pela Funai do local. Não conseguimos dialogar com a FUNAI local, só a de Brasília. Então, a ameaça vem para nós. Dez pessoas foram assassinadas. Duas gerou processo: Eusebio Ka’apor, em 2015 e Sarapó Ka’apor em 2022 (*).
Sarapó foi assassinado, suspeita de envenenamento. Grande liderança, deram o veneno para ele através do peixe. Provocamos o governo e aí gerou um processo e até hoje está negando, diz que não é veneno, diz que é um fato, um fato normal para ele. Consideramos ainda que precisamos de justiça, porque a gente, antes de 2013, quando não estava defendendo o território, não tinha assassinato. Depois a gente protegeu o território, expulsar madeireiro, aí vem a ameaça à morte para nós.
“Crédito de carbono para nós não vai dar certo. Está vindo muita divisão para nós”
Ou seja, vocês enfrentam, desde que vocês criaram o instrumento de proteção, ataques às pessoas que estão tentando proteger o território?
Está muito grave a situação. Inclusive, Sarapó não foi incluído na proteção. O programa de proteção dos direitos humanos existe no Maranhão mas nunca foi incluído, nunca ele foi colocado. Até hoje não tem diálogo mais com o programa. Não sei o que tá acontecendo.

Poderia me falar mais sobre a questão dos créditos de carbono?
Crédito de carbono para nós não vai dar certo porque qualquer dia, qualquer tempo ele tem que sair. Porque está vindo muita divisão para nós. Primeira coisa, o que é esse projeto? Tem que entender. Nós construímos o livro, nós estudamos. O nome comum é Redmine. Assim que ele chama lá. Esse Redmine vai trazer muito dinheiro pra nós e nós não sabemos usar. Não é bom pra nós.
“Se a gente pegar muito dinheiro, eu vou ficar doido. O que é bom pra nós é cultura, cantoria”
A gente não gosta muito de dinheiro. Se a gente pegar muito dinheiro, eu vou ficar doido. Porque não é meu confio. O que é bom pra nós é cultura, cantoria. Esse crédito de carbono, muitas pessoas vão levar para a cidade, vai aumentar a morte, vai perder muita cultura, vai perder cantoria, a pessoa não vai caçar mais. Muitos indígenas, velhos, não comem carne de gado, não comem porco, não comem galinha. Comem porco do mato, jabuti, macaco, anta, paca, veado. Caça eles sabem comer. Não na cidade. Se eles comerem caça numa cidade vão adoecer. Essa é a primeira coisa. Segundo, vão perder a língua. Vão falar o tempo todo em português. Não vão falar mais a língua ka’apor. E terceira, eles vão construir a casa na cidade. Vão perder totalmente a cultura. Vai trazer impacto e destruir a nossa organização, a sociedade do povo Ka’apor.
Como que os jovens da cultura de vocês estão vendo esses créditos de carbono? Estão interessados por causa da sociedade de consumo?
Estamos fazendo reuniões, não só de indígenas do Brasil, mas também do Peru, Colômbia, Equador, Chile, indígenas de lá. Levamos essa conversa, trocar ideia, trocar diálogo. Esse crédito de carbono, ninguém entende. Então, melhor não aceitar. Essa é a proposta dentro do nosso Tuxá. Então, os jovens não estão aceitando. Do lado do Tuxá, mas do lado da associação, de pequeno grupo, estão interessados. Porque vai trazer muitos benefícios, vai comprar muitas caminhonetes, motos.
Vocês entendem que os créditos de carbono vão distorcer a cultura de vocês?
Isso. Porque daí vocês vão ter dinheiro, mas não vão ter a natureza. Vai ser pior pra nós sem a natureza. Com a natureza, tranquilo. A gente vai se alimentar, vai fazer artesanato. Tucum, roceira, colar, cocar. Agora, sem natureza não tem como.
Mariuza, como é a situação das mulheres indígenas nessa luta pela preservação da comunidade e da natureza?
Mariuza Ka’apor: Na língua (indígena) meu nome é Wirimi. As mulheres Ka’apor da comunidade, da minha aldeia, trabalham no artesanato. A gente faz colar, pulseira, rede. Também sou professora. Eu sou de arte. Eu e meu esposo e mais um parente. Nós somos três. Então, a gente trabalha nesse daí. Por isso é importante a nossa floresta. É de lá que se tira material. Tira guarimã, cipó, as sementes. A gente não pode perder a nossa cultura e a nossa língua. Porque estão vindo as crianças, né? O nosso futuro. Se eu não fizer isso, a gente vai perder. É muito importante esse diálogo para os nossos filhos e para a nossa comunidade e para o nosso povo.
“Como morreram os homens, morreram as mulheres. Morreram pela faca e pela bebida”
Tá vindo esse projeto pra nós que a gente não quer. Foi muito ruim pra nós tirar os madeireiros. Quem enfrentou foram nós, mulheres. A gente acabou tirando esses madeireiros porque não estava esperando mais pelos homens. Sabe como é, os homens, eles pensam diferente. A gente tava vendo que tava demais, né? Temos os filhos da gente também que não queremos na bebida, no álcool, como está tendo hoje no nosso território, através desse dinheiro que eles recebem. E aí gastam tudo no bar e a mulher deles não tá mais valendo pra eles, né?
Largavam tudo. As mulheres e os homens. Mulheres largaram os maridos e foram com os madeireiros. Bora tirar, que não vai dar certo.
Como não deu certo mesmo, né. Aí veio morte pra nós. Assim como morreram os homens, morreram as mulheres também. Morreram pela faca e também pela bebida. Temos que ver um meio para a gente não fazer mais isso. Não queremos esse projeto. Vai trazer o recurso e ninguém vai ver. Eles que vão gastar, vão morar numa cidade. A gente já fez um encontro das mulheres e, no mês que vem, vemos fazer outro. E é isso que a gente tá fazendo.
A senhora é professora. Como é a educação na sua comunidade?
A gente ensina só na língua. Primeiro na língua, né? Depois de 15 anos (de idade) pra frente eles vão estudar português. Porque se ele estudar desde cinco anos vai perder a língua. Não vai mais conhecer a nossa cultura. Quando tá bem jovem, sete anos, é a mãe que tá ensinando. Quando tem oito, vai pra a nossa escola. Fazer artesanato, iniciar a história. Ele vai caçar no mato, os homens, né? Aí a menina já é com a mãe. Vai pra roça, pra cozinha, ver como é que faz.
Como é o relacionamento de vocês com a Secretaria de Educação?
A gente teve muito problema com a secretaria. Lutamos muito pela nossa educação pra ver se a secretaria aprova o nosso currículo. Nós temos um pequeno projeto de caixa escolar. A secretaria não queria entregar pra nós. Vem merenda pra nós, muita merenda vencida. A gente vê muito aquela coisa no arroz, na carne, e reclama. Eles ficam dizendo que é a culpa da gente.
Eles falam que esse ano vão dar um transporte pra nós. Tô achando muito difícil mas a gente tá lutando. Educação pra nós é muito ruim. A gente não para. Por isso estamos aqui. Já fui na Colômbia e, na semana passada, no Acre. Temos que continuar o nosso trabalho.
“Tem prefeito que leva crente pra dentro do território”
Quanto à saúde das populações do território como funciona a relação com o Estado?
No nosso estado, que é o Maranhão, é muito ruim. Tão morrendo direto as velhinhas, as crianças. Morrem de gripe. Moramos distante da cidade. Então, fazemos mais a nossa medicina, né? Do mato, da casca de madeira, de folha.
Qual é a relação de vocês com as prefeituras da região?
Tem prefeito que leva crente pra dentro do território. Tá pegando as aldeias maiores.
Os prefeitos estão levando a cultura evangélica para dentro dos territórios?
Sim. Aí eles apresentam mais futebol e dança, né. A dança, assim, deles, não nossa. Quando a gente vai fazer eles ficam criticando, dizendo que o nosso é de demônio.
Então, além de enfrentar os madeireiros, garimpeiros e as empresas internacionais, vocês ainda enfrentam os prefeitos com a evangelização?
Sim, é muita coisa lá no nosso território. Agora tá chegando. Antes não era assim, mas agora tá chegando mesmo. Tá vindo tudo junto. Aí vem mineração, madeireira, vem esse projeto. Aí fica dividindo. Entra na aldeia mesmo e a gente fica discutindo. Nós não podemos brigar por causa de recurso. Eles querem ter uma casa na cidade e um carro, como os brancos.
Foi assim que começou o madeireiro. Começou levando recursos, né. Depois foi tirando as madeiras todinhas e o dinheiro também foi acabando. Então a gente não quer. Foi isso que nós falamos pra ele.
A senhora já foi ameaçada?
Sim, eu sou ameaçada. Quando a gente vem pra cá, ninguém fala nada, não. Porque se a gente falar, eles vão saber. Até o próprio parente também, né? Aí já vai falar mal, porque… Por que estamos fazendo isso? Porque tem uma parte que quer (o projeto), né? Moramos tudo no mesmo território, vai ter muito problema pra nós. O pessoal que trabalha com a gente, como a Funai, como a educação do estado, conversa muito com as empresas. Para eles convencerem a gente. A Funai diz que também está protegendo nós, indígenas, mas pelo lado ela não está.
Nossa ideia, nós estudamos um pouco pra ver como eram os antepassados, como era a nossa organização. Aí, o Estado diz assim “Não, esse Tuxa não é nada nosso”. Pra ele não é nada, mas pra nós é… Temos uma organização. O Estado não vai estar lá na nossa comunidade. Aí, quem tá vendo somos nós. Então, Tuxa, pra nós, é igual, assim, como o governo, né? Aí, se falar uma coisa, não é pra enganar os parentes. Isto que é o Tuxa pra nós. Os brancos vão entender que temos nossos governos também.
(*) Sarapó Ka’apor, liderança da Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu, no Maranhão; Eusébio Ka’apor, agente indígena de saneamento da aldeia Xiborendá, também da TI Alto Turiaçu.
