Em São Sebastião (Marighella), o revolucionário está em queda. Peso de liberdade sequestrada, desaparecimento do corpo que cai para se tornar santo guerreiro. Há esperança apontada com dinamismo para o futuro, ainda que ameaçada pelo simulacro assomando no acrílico. Não é o fim, entretanto, já que se trata de uma obra tornada incompleta pelo arbítrio da ditadura militar.
Já São Sebastião (Lamarca) começa com a lança que atravessa o branco da camisa pontilhada de vestígios. De balas. Vermelho seco desce pelo ferimento e as dobras da peça intensificam a tensão do crime. A pomba em voo é também pânico. A simbologia da paz se faz difícil atrás dos muros do Presídio Tiradentes, onde o trabalho foi criado.
As duas obras integram a exposição Sergio Ferro – Trabalho Livre, em cartaz até 15 de junho no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. São cartões de visita precisos para a produção de Ferro. Pintor, arquiteto, professor, teórico e militante, sua trajetória é demarcada pela crítica às relações capitalistas de dominação e exploração na arte e na arquitetura. Para Ferro, processo artístico sempre esteve atado a engajamento político e cada obra é capítulo essencial de sua própria história de vida.
Trabalho em movimento
Diálogo inédito das facetas de artista e arquiteto, a retrospectiva com curadoria de Fábio Magalhães, Maristela Almeida e Pedro Fiori Arantes se organiza em quatro momentos, no cruzamento entre cronologia e as áreas de atuação. A entrada oferece os primeiros trabalhos do artista visual Sergio Ferro, obras nas quais já se vê o uso de técnicas mistas, constante em sua trajetória. Poucos quadros, fazendo um número que parece gritar a interrupção abrupta da produção.
Porque em 1970 Ferro é preso e torturado pela ditadura militar, como revide de sua atividade revolucionária na luta armada, acaba no Presídio Tiradentes, cárcere político onde funda, junto aos outros presos, um ateliê artístico. São dessa estadia de um ano na prisão as obras que compõem a segunda parte da exposição. Como São Sebastião (Lamarca) e Alegria, Alegria, datadas de 1971. Nesta última, vermelho se faz sangue e tiras de barbante leem-se enquanto amarras. A alegoria é o eixo de entendimento – assim como em grande parte de sua produção – de obras profundamente sedimentadas em seu tempo. Não é a forma que expressa diretamente, mas a cultura e o conhecimento das circunstâncias.
O terceiro momento encampa os mais de 50 anos do artista na França, para onde partiu exilado em 1972 e estabeleceu residência, renascendo e curando-se física e emocionalmente. Espraiam-se e intensificam-se os interesses de sua pesquisa. Os mestres Michelangelo, Van Gogh e Caravaggio fazem da história da arte matéria de pintura. Multiplicam-se obras em diálogo e a centralidade do inacabado.


Conforme registram os curadores Fábio Magalhães e Maristela Almeida no texto de apresentação da exposição, Ferro revela “uma anatomia do próprio ato de pintar”. Veem-se os elementos, as influências, as continuidades e as rupturas. Traço que se torna corpo, desenho que se torna tela, tinta que vira forma. O próprio artista avisa: “Toda arte que denega a manifestação do trabalho tem uma dimensão falsa”, conforme pontua em entrevista dada à equipe do MAC em 2023.
É preciso evidenciar o processo pictórico e sublinhar o trabalho. Por isso, a obra viva é aquela inacabada, demanda de labor. Daí a figura que não se completa, a linha que pede intervenção, o esboço reunido ao trabalho (não) finalizado. Na 5a Feira da Paixão – A Santa Ceia (1997), que resgata a Ceia em Emaús de Caravaggio, cabeças por surgir. Em Jeudi de la Passion 3 (2012), o rastro da linha que enquadra as palavras.
Segundo Maristela, há horror à obra acabada em Ferro. Ela afasta o público, ao contrário daquela em que os modos de fazer se revelam. “Sergio quer mostrar, na pintura, que os processos são mais importantes que o produto final”, afirma a curadora. Movimento que faz seu trabalho atual. “Apesar de ser um artista de 86 anos, modernista, ele é mais contemporâneo do que nós vemos. Hoje, a pintura contemporânea é justamente baseada nos processos, exatamente o que ele traz.”




Os dois exemplares mais recentes dessa maneira de construir suas obras estão na exposição. Trata-se de trabalhos realizados junto a estudantes no ateliê da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP, uma semana antes da abertura da retrospectiva. Um deles homenageia Antonio Benetazzo, líder estudantil e artista visual assassinado pela ditadura militar em 1972. O outro é dedicado ao movimento francês dos coletes amarelos surgido em 2018.
“O que muito me admira em Sergio é sua consistência”, comenta Maristela. “Apesar da diversidade das obras, sempre há um propósito de falar da sociedade, do povo que ele tanto ama e dos trabalhadores que sempre são relegados ao último plano.”
Obra em movimento. Assim como, no Brasil, os sem-terra, merecedores de sua admiração, apoio e esperanças. A coleção de desenhos que Ferro produziu para o calendário do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é vigiada por duas pinturas comemorativas dos 20 anos e dos 40 anos do movimento, enviadas como presentes. São composições da luta. Em uma delas, lona preta dos acampamentos, bandeira vermelha, foice, pé que pisa cercas e abre caminhos. Luta, assim como seus trabalhos artísticos, não acabada, mas em produção. Luta em movimento.
Ponto de chegada do percurso expositivo, a produção que Ferro endereçou ao MST não é final de jornada, mas flecha para o futuro, tal qual a seta de São Sebastião (Marighella). Aponta para onde o artista investe suas expectativas:
“O MST, hoje, é o movimento mais exemplar da possibilidade de transformar o mundo em outra coisa e de maneira pacífica, clara, óbvia e limpa. O exemplo do MST tem que ser divulgado e multiplicado, porque é por aí que vamos fazer a revolução”, declara Sergio Ferro, em entrevista exclusiva para o Jornal da USP. “A revolução armada hoje é suicídio. A polícia e o Exército têm muito mais armas que nós, têm foguetes lá em cima, estão nos filmando. O caminho que os trabalhadores sem terra encontraram é aquela tenacidade da conduta lenta, paciente e profunda que transforma todo o pessoal, como nos mutirões de autoconstrução. Essa linha tem que ser espalhada, tem que vir, inclusive, para as cidades. Esse é o caminho mais seguro para a revolução.”

“Basta ler Marx”
Um corte ao meio na exposição, Sergio Ferro arquiteto e teórico interrompe o passeio por telas e esculturas para lembrar sua polivalência. Imensas reproduções das fotografias de Marcel Gautherot preenchem as paredes com os operários que botaram Brasília em pé. Preto e branco tornam-se paralelos do contraste brutal entre a monumentalidade arquitetônica e as condições precárias de trabalho que horrorizaram Ferro.
Como um convite para entrar fundo em seu pensamento, um corredor conduz ao espaço interno onde as experiências da Arquitetura Nova são resgatadas em vídeos, maquetes, fotografias, textos e pranchas. O curador da seção de arquitetura Pedro Fiori Arantes resgata o significado das oito escolas projetadas por Ferro e pelos amigos Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, trinca da Arquitetura Nova. Trabalhos cujo resultado mais vistoso é a Escola das Ondas, situada em Brotas (SP), inaugurada ao mesmo tempo em que seus projetistas eram presos e torturados pela ditadura militar, em 1970.
Materializada também na construção de residências para amigos professores e projetos de habitações populares, a Arquitetura Nova significou pensar soluções populares e trabalhar com elementos usados pelo próprio povo em suas construções. Parente da estética da fome verbalizada por Glauber Rocha, pregava o máximo de poética com o mínimo de recursos e, objetivamente, oferecia contraproposta ao terror arquitetônico e social dos projetos do Banco Nacional da Habitação (BNH). Tratava-se de uma “poética da economia”, na qual a precariedade era assumida. Durou até o coturno da repressão atingir o trio.
A elaboração teórica dessas ideias viria em 1976, quando Ferro já se achava exilado na França. O livro O Canteiro e o Desenho representaria a crítica radical às relações de trabalho do canteiro de obras, sustentada por uma leitura dedicada de Karl Marx. Na bagagem, o autor trazia a perplexidade ante o “desenho apurado e elegante e o canteiro absurdo” de Brasília, fruto da convivência com os trabalhadores da nova capital. A obra denunciaria a alienação dos operários e o papel dos arquitetos no processo de valorização do capital.
Texto demolidor e que segue atual, O Canteiro e o Desenho abalou a autoimagem idealizada dos arquitetos. Mudando o foco do produto final para o processo, indicou outras condições de dignidade humana e a necessidade de respeitar os conhecimentos e a colaboração dos trabalhadores da construção civil. Modesto, Ferro diz não compreender o espanto que a obra causou. “Eu nunca entendi por que O Canteiro e o Desenho foi uma novidade. Basta ler Marx”, afirmou durante conversa sobre o livro, realizada no MAC como parte dos eventos relacionados à exposição.
Trabalho livre
Nascido em Curitiba, em 1938, Sergio Ferro estudou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP na virada dos anos 1950 para 1960, tendo como mestres João Batista Vilanova Artigas e Flávio Motta. Graças ao pai, empreendedor do setor imobiliário, pôde frequentar os canteiros de obra em Brasília, ao lado do amigo e colega de curso Rodrigo Lefèvre. A brutalidade do contraste entre a elegância e a sofisticação do desenho da nova cidade e as condições de trabalho dos operários feriu para sempre os jovens, determinando a crítica radical que fariam à arquitetura.
Formado em 1961, no ano seguinte Ferro se tornou professor de História da Arte na FAU – a convite de Vilanova Artigas -, cargo que exerceu até sua prisão, em 1970. Foi nesse período, com Lefèvre e Flávio Império, que lançou o movimento conhecido como Arquitetura Nova, elaborando projetos de moradias e escolas. Paralelamente, desenvolveu seu trabalho como artista visual.
Tão importante quanto o arquiteto e o artista – ou, dito melhor, parte constituinte e inevitável destes – é o Sergio Ferro militante. As homenagens a Carlos Marighella e a Carlos Lamarca não representam comoções de um admirador distante, mas expressões íntimas de um companheiro de armas. Literalmente. Ferro integrou a luta armada contra a ditadura militar, primeiro na Ação Libertadora Nacional (ALN) liderada por Marighella e, depois, na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) chefiada por Carlos Lamarca.
Não era um combate apenas contra a ditadura brasileira, mas uma guerra que Ferro trava até hoje contra o sistema capitalista. Esse horizonte de luta é que explica a controversa bomba deixada em 1968 na sede do Consulado dos Estados Unidos em São Paulo. Segundo Ferro, a ação resultara de uma orientação recebida por Marighella de ninguém menos que Che Guevara. Integrava os esforços para ajudar os companheiros vietnamitas engolfados na Guerra do Vietnã, abrindo focos de problemas para os estadunidenses ao redor do planeta.
As preocupações internacionalistas não significavam, contudo, tranquilidade doméstica. Ferro seria preso pela ditadura no final de 1970 e veria sua carreira como arquiteto interrompida. Também deixaria seu São Sebastião (Marighella) incompleto. A obra seria doada pelo próprio artista ao MAC em 1974. Mas, antes disso, Ferro teve sua temporada de um ano no Presídio Tiradentes, onde realizou São Sebastião (Lamarca) assim que teve notícias do assassinato do líder revolucionário.
Partiria para o exílio em 1972, sem ter sido reintegrado aos quadros da USP. Só voltaria a pisar na FAU 30 anos depois, em 2002, após ser “redescoberto” pelo então estudante Pedro Fiori Arantes. Até então, era considerado pelos professores um autor datado, de um único livro, do qual pouco se sabia sobre suas atividades na França, onde, sem poder exercer a arquitetura, se dedicou às artes e foi professor da Escola Nacional Superior de Arquitetura de Grenoble, de 1972 até 2003.

O reconhecimento e a reparação histórica por parte da Universidade seriam consolidados no dia 18 passado, quando Ferro recebeu do Conselho Universitário da USP o título de Doutor Honoris Causa, exatamente na semana de inauguração da exposição. Homenagem a uma vida dedicada à defesa do trabalho livre, título da retrospectiva que sintetiza o tripé arte, arquitetura e política. Arte que surge como trabalho desinteressado e autodeterminado, e arquitetura que se anuncia como libertação do peso do capital.
Termos que, para Ferro, precisam se tornar um só. Pois suprimir a dominação do capital corresponde a anular a diferenciação entre arte e trabalho e fazer de todo trabalho, arte. “A essência da pintura é fundamentalmente trabalho livre. Pintura, arte é trabalho livre, nada mais”, diz Ferro. “Tenho um livro, Artes Plásticas e Trabalho Livre 1, que termina dizendo: ‘arte é trabalho livre’, uma frase de William Moris. Em outro livro, Artes Plásticas e Trabalho Livre 2, eu inverto essa frase: ‘trabalho livre é arte’. Isso é fundamental hoje em dia, voltar a dar o sentido original da palavra arte.”
E o artista continua: “Arte era um ofício, um métier: a arte da madeira, a arte da pedra, a arte do barro. Nós roubamos a palavra arte e eles ficaram sendo chamados trabalhadores, de tripalium, um instrumento de tortura. Temos que devolver a eles, aos trabalhadores, esse título. Não é só questão de palavra. Devolver o título de arte para o trabalho livre é fazer o trabalho realmente livre. Os trabalhadores serão autônomos, autodeterminados, decidirão o que fazer e como fazer. Aí, qualquer ofício se torna, o que disseram já há muito tempo, arte”.
A exposição Sergio Ferro – Trabalho Livre fica em cartaz até 15 de junho, de terça-feira a domingo, das 10h às 21 h, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1.301, Ibirapuera, em São Paulo). Entrada grátis.
Artigo original publicado em Jornal da USP.