O debate sobre a reparação histórica pelo período da escravidão ganhou espaço na discussão entre os líderes de países africanos durante o mês de fevereiro e resultou em um avanço significativo na última cúpula da União Africana (UA), que passou a classificar a escravidão, deportação e colonização como “crimes contra a humanidade e genocídio contra os povos da África”.
A declaração inédita resultou de negociações durante a cúpula em Adis Abeba, capital da Etiópia, entre os 55 países representados pelo grupo multilateral, que ingressou no G20 em 2024. A União Africana designou 2025 como o “Ano da Justiça para Africanos e Povos de Ascendência Africana por meio de Reparações”, com o compromisso de abordar as injustiças históricas, incluindo o comércio transatlântico de escravos, o colonialismo, o apartheid e o genocídio. O objetivo é promover a unidade entre os países da UA e estabelecer mecanismos para a justiça reparatória em escala global.
“Não podemos fechar os olhos para essa realidade de que a escravização de seres humanos e que o próprio colonialismo são efetivamente violações dos direitos humanos, nomeadamente os direitos humanos dos povos africanos”, afirma Vera Duarte, juíza desembargadora aposentada, poeta, ficcionista e ex-ministra da Educação e Ensino Superior de Cabo Verde. “A partir do momento que este reconhecimento se tornar cada vez mais universal, como consequência haverá naturalmente o direito à reparação.”
Como deve ser a reparação?
Vera Duarte aponta que a discussão sobre a reparação é complexa e começa pela definição de quais serão os países que farão a reparação e quais serão objeto dela. “É um processo que felizmente já começou a dar os seus primeiros passos e, portanto, agora este futuro é algo que vamos construindo a par e passo.”
Há defensores da reparação financeira pela escravização, a exemplo do que aconteceu em países como Estados Unidos e Austrália. Outras correntes defendem que a reparação deve assumir formas que permitam um maior desenvolvimento educacional, tecnológico e científico dos povos que foram submetidos à escravização e à colonização. Existe ainda um movimento para estabelecer um tribunal especial sobre essa questão.
Miguel de Barros aponta a necessidade de construir um maior consenso sobre o tema no continente para que as novas gerações tenham uma salvaguarda da posição africana sobre o assunto para exigir de forma efetiva a reparação em relação a esse tema.
O posicionamento expresso pela União Africana, defende o sociólogo guineense, deve ser colocado em uma “perspectiva mais globalizante, permitindo que essa memória tenha alcance junto das diásporas africanas, das diásporas negras no mundo, para que também possam fazer uso político dessa decisão enquanto elemento de cidadania.”
Quando se fala em reparação, Da Mata defende que a indenização financeira não deve estar no centro da discussão. “Há muitas outras formas de reparação. Pessoalmente, quando eu falo de reparação ela passa, por exemplo, pelo cancelamento da dívida, das relações mais equitativas entre a Europa e a África. Eu falo de bolsas, de acordos bilaterais de forma justa.”
Foi esse o posicionamento que defendeu em Berlim no evento que marcou 140 anos da Conferência de Berlim, iniciada em novembro de 1884 e finalizada em 26 de fevereiro de 1885, com a assinatura de um acordo entre potências europeias Alemanha, França, Grã-Bretanha e Portugal para dividir o continente africano entre elas.
Dificuldades de visto para Portugal
A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, adotada em 1981, em conferência de líderes africanos em Nairobi, no Quênia, estabelece como crimes contra os direitos humanos a escravidão e o tráfico de pessoas. O marco na discussão sobre as reparações em relação a esses crimes foi a Proclamação de Abuja sobre Reparações documento final da primeira Conferência Pan-Africana sobre Reparações, em Abuja, Nigéria, em 1993. Primeira posição comum tomada pela liderança política da África, a Proclamação serviu como um catalisador para a organização dos movimentos de reparação.
Para Miguel de Barros, sociólogo da Guiné Bissau, embora tardia, a declaração da União Africana é estrutural para a perspectiva de justiça histórica e reparação para os povos africanos.“O que encontramos em documentos históricos que os próprios ocidentais deixaram, é que o processo da escravização foi mais impactante, quer no ponto de vista das pessoas que foram retiradas, como também das perdas de vida, comparativamente com o Holocausto [judeu]”, aponta.
Números oficiais estimam que mais de 12,5 milhões de africanos foram sequestrados e transportados à força por navios europeus e escravizados entre 1514 e 1866 para o continente americano. A maioria dos escravos africanos trazidos para o continente americano vieram de regiões da Costa africana, como Guiné, Costa do Marfim, Angola, Moçambique, arquipélago de Cabo Verde e Congo.
“Foi todo um continente que ficou privado de homens e mulheres, de vidas, histórias e memórias, daquilo que poderia ser o seu potencial em termos de transformação”, aponta Miguel de Barros.
Esse movimento é especialmente emblemático para os países africanos de língua portuguesa, cuja independência completa 50 anos em 2025, fruto das lutas coloniais contra o regime fascista de Antonio Salazar em Portugal, país que mais traficou escravos, uma estimativa de 6 milhões de pessoas, sendo que a maior parte, cerca de 4 milhões de pessoas, teve como destino o Brasil.
Em abril de 2024, ano que a Revolução dos Cravos completou 50 anos, o presidente português Rebelo de Sousa afirmou que Portugal “assume total responsabilidade” pela escravidão e que o país está disposto a pagar pelos “custos” desses crimes, que incluem massacres coloniais. “Temos que pagar os custos”, afirmou a jornalistas estrangeiros na ocasião.
Mas em agosto de 2024, durante visita do primeiro-ministro de Portugal, Luís Montenegro, o presidente de Angola, João Lourenço, declarou que a questão das reparações históricas não seria colocada “nunca”, pois “teria de se mexer em muita coisa” e os países colonizadores não teriam capacidade de pagar “o justo valor”. A discussão sobre a reparação histórica por parte da União Africana, porém, ganhou força justamente no momento em que Angola assumiu a presidência rotativa do grupo.
“Até parece que os outros governantes fizeram de propósito porque foi tão revoltante, tão vergonhoso o que foi dito, que é como se dissessem que este é o momento para trazer esta questão para a agenda”, avalia Inocência Mata, professora de Letras na Universidade de Lisboa, com pós-doutorado em Estudos Pós-Coloniais pela Universidade da Califórnia (EUA). “É muito importante que os africanos se conscientizem de uma coisa: que as relações entre os colonizados e os seus colonizadores continuam a ser relações de grande desigualdade, de grande humilhação até.”

Natural de São Tomé e Príncipe, Inocência Mata está organizando o simpósio internacional A literatura colonial portuguesa: além da memória do império, que será realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas esbarra em um obstáculo que simboliza a diferença de relação entre as ex-colônias e Portugal: docentes africanos convidados para participar do simpósio enfrentam dificuldade para conseguirem o visto de entrada em Portugal.
Entre eles, o acadêmico angolano Luís Kandjimbo, da Universidade Agostinho Neto, em Luanda, que seria responsável justamente pela abertura do evento. “Os colegas de Moçambique e de Angola estão a ter imensas dificuldades para conseguir o visto para ir ao evento em Lisboa. Entretanto, os portugueses podem entrar em Angola sem visto. Portanto, são estas questões que têm que estar na agenda das reparações”, aponta a professora.