A ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Macaé Evaristo, participou, na tarde desta segunda-feira (24), de uma cerimônia de pedido de desculpas da União por negligência sobre a guarda e a identificação dos remanescentes ósseos da Vala Clandestina de Perus.
“O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em nome do Estado brasileiro, pede desculpas aos familiares dos desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira, iniciada em 1964, e à sociedade brasileira pela negligência, entre 1992 e 2024, na condução dos trabalhos de identificação das ossadas encontradas na Vala Clandestina de Perus localizada no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo”, afirmou a ministra durante o evento.
No local, situado na Zona Norte do município de São Paulo, foram enterradas ilegalmente 1.049 corpos de pessoas desconhecidas, incluindo crianças, pessoas assassinadas em ações policiais e desaparecidos políticos vítimas da ditadura militar.
“É um momento muito triste e, ao mesmo tempo, muito importante, porque a verdade precisa ser revelada como justiça a todos os familiares. Mas também para que a sociedade brasileira compreenda toda a violência que se cometeu em nome do Estado e para que a gente reafirme a democracia, nunca mais esqueça e para que nunca mais aconteça”, disse a ministra, no evento realizado no cemitério Dom Bosco, onde a vala foi encontrada, em 1990.
O pedido de desculpas é resultado de uma ação pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF). Em dezembro do ano passado, um acordo firmado entre familiares de desaparecidos e a União, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), decidiu pelo pedido, pela continuidade dos trabalhos de identificação das ossadas e pelo reconhecimento das “graves violações de direitos humanos perpetradas por agentes de segurança, que resultaram no desaparecimento de brasileiras e brasileiros”.
Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), os trabalhos de identificação foram paralisados em abril de 2019 por meio de um decreto. Como parlamentar, Bolsonaro criticou diversas vezes as buscas pelos desaparecidos políticos da ditadura e chegou a posar ao lado de um cartaz sobre as buscas na região do Araguaia que dizia: “Quem procura osso é cachorro”.
No ano passado, no entanto, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania assinou um novo acordo de cooperação com a Unifesp e com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo para a contratação de equipe pericial para retomada dos trabalhos de identificação.
“O que o Estado brasileiro vem fazendo é não abrir mão de continuar o processo de busca de investigação e de responsabilização. As famílias têm direito à verdade. A sociedade brasileira tem direito à verdade. Então o que a gente precisa fazer? Nós temos que perseverar da nossa parte, como Estado”, afirmou Evaristo.

Reconhecimento da ditadura
Na cerimônia, Macaé Evaristo afirmou que o pedido de desculpas faz parte de um movimento do governo brasileiro de olhar para os crimes cometidos pela União durante a ditadura militar. Entre as medidas desse movimento está a retomada da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) em agosto do ano passado e a retificação das certidões de óbito.
“Nós fizemos uma ação importantíssima, uma provocação do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, que foi a aprovação da resolução do CNJ [Conselho Nacional da Justiça] em dezembro de 2024, para que a gente pudesse ter a retificação das certidões”, disse.
De acordo com a ministra, mais de 400 certidões de óbito serão retificadas em todo o Brasil. “Esse é um processo importante não só de reparação, mas também de trazer à tona a verdade, porque muitas vezes a gente tem pessoas que foram assassinadas pela ditadura militar e que muitas vezes, na sua própria comunidade, as pessoas não têm a devida consciência do que aconteceu”, afirmou a ministra.
Maria Cecília de Oliveira Adão, historiadora e primeira mulher negra a compor a Comissão Especial, também falou sobre as medidas tomadas pelo governo federal no reconhecimento da verdade e justiça pelos crimes da ditadura.
“A gente sabe que rememorar todo o processo de desaparecimento traz à tona sentimentos bastante intensos. Quando vivemos isso, trazemos novamente a questão do silêncio, dos sentimentos relacionados ao desaparecimento e, principalmente, à sensação de desorientação que um desaparecimento causa”, disse Adão, que também participou do evento.
Na cerimônia, Gilberto Molina recebeu das mãos da ministra uma placa com o pedido de desculpas. Representante dos familiares dos desaparecidos, Gilberto é irmão do estudante Flávio Molina, uma das vítimas da ditadura militar que teve seus restos mortais identificados após a ossada ser encontrara em Perus.
“A minha busca, desde quando o Flávio saiu de casa até a identificação, durou praticamente 44 anos”, contou Gilberto. Flávio foi assassinado em 1971, um dia antes de completar 24 anos. O exame de DNA que atestou a identidade do jovem, no entanto, só foi realizado em 2005.
“Diante desse cenário, o pedido de desculpas tem um peso simbólico”, disse Adão. “Ele nos mostra que nós não estamos encerrando o trabalho, mas nos colocando na direção correta novamente, para a continuidade das atividades de busca e, principalmente, identificação”.

Sem anistia
Durante o evento, a ministra e os demais presentes se manifestaram contra a anistia aos presos do 8 de janeiro, quando os prédios dos Três Poderes foram invadidos e vandalizados em Brasília. Sob o coro “sem anistia”, Macaé Evaristo afirmou que aqueles que pedem por anistia querem instaurar a mesma ditadura que matou oponentes e escondeu corpos em lugares como na Vala Clandestina de Perus.
“A gente grita sem anistia hoje, porque essas pessoas que estão gritando anistia queriam restaurar no Brasil essa ditadura que nós estamos aqui denunciando. Então não dá para usar nossas palavras de ordem para impor ao Brasil um Estado autoritário, que se curva aos interesses internacionais, que fica de costas para os cidadãos e cidadãs brasileiras e de joelho para os Estados Unidos”, disse.
“Quando falamos de direito a verdade, falamos de direitos muito concretos das vítimas e de seus familiares, o direito de conhecer de forma plena e completa as circunstâncias em que as violações de direitos humanos ocorreram em suas razões. A verdade é um caminho para emendar e restabelecer os laços entre passado, presente e futuro. É um direito que nos fortalece como sociedade e que tem um papel central no processo de cura em relação às feridas abertas e tragédias do nosso passado”, completou a ministra.
A Vala de Perus
Os quase 70 sacos de ossadas foram descobertos na década de 1990 pelo jornalista Caco Barcellos durante sua pesquisa para o livro Rota 66, com a ajuda do administrador de cemitérios, Antônio Pires Eustáquio.
Inicialmente, os remanescentes foram levados à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e depois para ao Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para os devidos trabalhos de identificação.
Nesse período, foram identificados os restos mortais de cinco militantes, que desapareceram durante a ditadura: Dênis Casemiro, identificado em 1991; Frederico Eduardo Mayr, identificado em 1992; Flávio Carvalho Molina, identificado em 2005; Dimas Antônio Casemiro, identificado em 2018; e Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, também identificado em 2018.