O governo federal lançou no início de março o 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, resultado de um processo que envolveu 24 ministérios, reunidos na Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), além do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O documento estabelece 18 estratégias intersetoriais e 219 iniciativas voltadas à garantia da segurança alimentar e nutricional para o cumprimento de uma meta: tirar o país do Mapa da Fome até 2026.
Para a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza do Instituto de Estudos Avançados da USP, Semíramis Domene, o país sabe como chegar a esse objetivo.
“São metas muito ambiciosas, mas o Brasil já fez isso uma vez. E o fato da gente ter conseguido sair do Mapa da Fome em 2014 mostra que a gente sabe qual é o caminho”, avalia a professora, que tem a opinião compartilhada pela presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Yamila Goldfarb.
“Eu acredito que se a gente conseguir, de fato, cumprir com tudo que o plano prevê, a gente sai certamente do Mapa da Fome e um pouco mais”, considera.
O plano estabelece oito diretrizes estratégicas para a superação da insegurança alimentar no país, como o fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) com governança participativa e intersetorial, a superação da fome por meio de acesso a renda e políticas públicas, a garantia de acesso à terra e à água, a promoção de sistemas alimentares resilientes diante das mudanças climáticas, o fomento à produção de alimentos saudáveis por agricultores familiares e comunidades tradicionais, entre outras.
“Hoje nós temos questões mais desafiadoras ainda, não apenas do ponto de vista da produção de alimentos, aí a questão da terra é uma temática importantíssima, mas também do ponto de vista da resiliência que precisamos para mitigar os efeitos da crise climática”, destaca Domene.
Maria Emília Pacheco, integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ex-presidente do Consea e pesquisadora da organização Fase Solidariedade e Educação, considera que as medidas contidas no plano são importantes, mas não suficientes, principalmente devido ao acúmulo de retrocessos em matéria de segurança alimentar que o país viveu nos últimos anos. A pesquisadora destaca a relevância da articulação intersetorial que envolveu a elaboração do plano.
“Eu valorizo muito uma iniciativa em curso de interação de espaços institucionais de participação e controle social da sociedade civil em vários conselhos, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que é a Cnapo, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, que é o Condraf. Isso é fundamental para propor tanto a articulação de programas nos vários planos a que correspondem essas políticas, para superar a fragmentação de programas e sua transformação de políticas públicas na perspectiva da transformação dos sistemas alimentares, da produção e consumo, regido pelos princípios da agroecologia e da soberania alimentar”, destaca.
A mais recente ex-presidente do Consea, Elisabetta Recine, destaca que em 2023 houve uma redução de 33 milhões para 8,7 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave no Brasil. A especialista em segurança alimentar explica que há um grande contingente de pessoas sobre as quais a retomada de políticas como o Bolsa Família ou a valorização do salário mínimo têm efeito imediato. No entanto, o desafio está na busca ativa por pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade agravada.
“Tudo isso age em pelo menos duas grandes vertentes: uma que é ir atrás dos grupos em situação de maior vulnerabilidade e dá para atuar com essas pessoas, não com ações pontuais, mas com ações que criem um círculo virtuoso para que elas caminhem pelas políticas públicas, que tenham acesso aos centros de referência de assistência social, às unidades básicas de saúde, ao restaurante popular, a uma cozinha solidária, enfim, um conjunto de ações”, destaca Recine. Outro aspecto, continua, “é o fortalecimento de ações articuladas com medidas de mitigação e adaptação da crise climática”, uma novidade do 3º Plansan.
Norte e Nordeste
Pacheco destaca a importância de ações, contempladas no plano, dirigidas sobretudo às regiões Norte e Nordeste do Brasil. “Isso não é sem razão, porque são exatamente as regiões que concentram a maior proporção de domicílios em insegurança alimentar, grave, ou seja, fome. No caso do Norte, que abrange estados da Amazônia, são 11,8% de domicílios em situação alimentar no meio rural e 6,8% no meio urbano. E os estados do Amazonas e Pará respondem pelos maiores percentuais dessa insegurança alimentar grave. 8,5% no Amazonas e 9,1% no Pará é o índice percentual de domicílios que são afetados”.
O 3º Plansan destaca que entre as regiões brasileiras, Norte e Nordeste apresentam os índices mais elevados de insegurança alimentar grave, com 7,7% e 6,2% de seus domicílios nessa condição. “Por um lado, do total de 3,2 milhões de domicílios em situação de fome, mais de 70% estão concentrados nas regiões Nordeste e Sudeste, um resultado que combina fatores relacionados à alta densidade demográfica das grandes cidades com a prevalência de insegurança alimentar. Por outro lado, a região Norte concentra os piores índices de insegurança grave no país: 11,8% no rural e 6,8% no urbano”, destaca o documento.
Especificamente sobre a região Nordeste, Pacheco destaca a mudança de paradigma a partir de uma política de convivência com o semiárido, no entanto, chama a atenção para novos problemas. “Há uma ameaça agora de expropriação das comunidades com os parques eólicos, com os parques solares, que estão ameaçando a produção de alimentos e criam barreiras para vida no campo”, denuncia.
‘Descasque mais, desembale menos’
O 3º Plansan leva em conta não somente a quantidade de alimentos produzidos no país, mas a qualidade do que se consome, como destaca Domene. “Temos hoje no Brasil um em cada quatro adultos com obesidade. Então são desafios grandes, porque a alimentação não se restringe ao combate à fome, mas também alcança a dimensão da prevenção das doenças crônicas”, ressalta a professora.
A opinião é compartilhada por Recine. “Não é mais possível pensar que a gente vai resolver esse problema de uma maneira estruturada e estruturante, se a gente não considerar a questão da qualidade, que por sinal, é o que nos trouxe ao ponto em que nós estamos. Foi justamente pensar que a gente deveria investir numa produção só de calorias que faz com que esse modelo, que hoje é dominante, tenha gerado as consequências com que todos nós e todas nós estamos convivendo.”

Domene celebra o fato de o Plansan privilegiar a produção de alimentos saudáveis. “Há um movimento grande na direção de favorecer a produção de alimentos in natura e minimamente processados, aquilo que a gente chama de comida de verdade, como o arroz, o feijão, os vegetais, as frutas, os alimentos de origem animal, como as carnes, os laticínios, em detrimento daquilo que vem num pacote”, destaca a professora. “Descasque mais, desembale menos”, advoga.
Goldfarb lembra que hoje no Brasil, “é mais barato comprar um refrigerante do que fazer um suco de fruta”, o que demonstra a importância de medidas que fomentem a transição agroecológica, prevista no Plansan.
“Todas essas medidas que o plano prevê para estimular a transição agroecológica são super válidas. Está prevista uma articulação com o Ministério da Saúde que é muito interessante, porque envolve toda uma questão formativa com as famílias, os agentes de saúde. Tem toda a parte em articulação com o Ministério da Educação e com o Fundo Nacional de Educação para Alimentação Escolar. Então, de fato, essa articulação é um ponto muito positiva”, destaca, ponderando: “Mas isso depende de recursos”. E sobre esse ponto está a grande disputa que precisa ser enfrentada, na avaliação de Goldfarb.
“Tem uma disputa que é do capital, ou seja, orçamentária, que vai ter que ser feita. Porque sempre caímos nessa discussão: isso demanda uma disputa de projeto de país”, destaca, lembrando que o governo enfrentou dificuldades no Congresso Nacional para aprovar o orçamento de 2025.
Ainda sobre o aspecto da qualidade da comida produzida no Brasil, Pacheco destaca que existe uma “lacuna” no que se refere ao uso de agrotóxicos para a produção agroalimentar. “Há uma menção ao Programa Nacional de Redução de Agrotóxico, o Pronara, mas como uma estratégia que vai acontecer. E eu quero insistir que o uso de agrotóxico como arma química hoje em conflitos agrários é uma das práticas mais cruéis para expulsar as comunidades seus territórios e vem consagrando uma estratégia de apropriação ilegal de terras no Brasil”, ressalta.
“Não há construção de sistemas alimentares sustentáveis, com base nos princípios da agroecologia, da soberania alimentar, sem que tenhamos uma grande mobilização da sociedade, e nesse processo de transição dos sistemas alimentares, com um programa de redução de agrotóxicos”, afirma Pacheco.
Contexto da fome no Brasil
O documento do governo federal destaca as iniciativas tomadas pelos primeiros governos do Partido dos Trabalhadores, responsável pela redução recorde, em 2013, dos níveis de insegurança alimentar no país, que levou o Brasil a sair do Mapa da Fome em 2014. No entanto, destaca o texto, a descontinuidade de políticas e a extinção do Consea em 2019 devolveram o país a uma situação alarmante quando, em 2022, cerca de 33 milhões de brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar grave.
“No período subsequente, porém, marcado por uma descontinuidade institucional que afetou o funcionamento daquelas políticas, a incidência da fome voltou a aumentar no país: em 2018, 4,6% dos domicílios, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, estavam em insegurança alimentar grave; no primeiro trimestre de 2022, esse índice subira para 15,5%, de acordo com o 2º Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (2º Vigisan), realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan)”, destaca o documento.
Em 2023, houve um novo recorde de redução da fome no país, passando de 33 milhões para 8,7 milhões o número de pessoas em insegurança alimentar grave.
Há também uma parte do plano dedicada à insegurança hídrica que, segundo o governo, está intrinsecamente ligada à insegurança alimentar. “Em relação ao consumo, o Censo Demográfico 2022 aponta que, dos 72,5 milhões de domicílios do país, 87% estão ligados à rede de distribuição de água”, ressalta o texto que também cita o preço dos alimentos como um fator preponderante no acesso à alimentação adequada.

“Se, de um lado, as políticas de garantia de renda e a sustentação de níveis altos de ocupação no mercado de trabalho são essenciais para ampliar a renda disponível das famílias para a compra de alimentos, de outro lado é necessário manter sob controle a inflação, sob pena de comprometer, com a alta de preços, a capacidade aquisitiva das famílias”, afirma o texto.
Orientações para o PPA 2028-2031
O 3º Plansan foi elaborado ao longo do ano de 2024, a partir das proposições da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em dezembro de 2023, e contém orientações programáticas para a elaboração do Plano Plurianual (PPA) 2028-2031. Entre elas, “avançar na pactuação e no cofinanciamento tripartite de programas e ações de segurança alimentar e nutricional e instrumentos voltados à qualificação da gestão e o controle social do Sisan com ampliação progressiva de recursos a ele destinados”.
A ex-presidente do Consea, que participou do processo de elaboração do documento, explica que a sociedade civil, representada no conselho, foi responsável pela análise preliminar da situação alimentar no Brasil, depois de pelo menos quatro anos de paralisia das políticas de combate à fome.
“Nosso último plano tinha validade até 2019. E entre 2016 e 2019, pouca coisa aconteceu, e entre 2019 e 2022 nada aconteceu. Então, quando o Consea voltou em fevereiro de 2023, uma das primeiras decisões que ele teve foi fazer a convocação da conferência, que aconteceu em dezembro de 2023, para que a gente pudesse entregar ao governo essas propostas e ele elaborasse o novo plano”, relata Elisabetta Recine.
A Câmara Interministerial também propõe ainda para o PPA 2028-2031 “manter e expandir o patamar de investimentos nos programas e ações com efetividade no combate à fome e promover medidas estruturantes e macroeconômicas capazes de impedir retrocessos, enfrentar as desigualdades e alcançar territórios e públicos vulnerabilizados”. Outras ações são a implementação do 3º Plano Nacional de Reforma Agrária e o fortalecimento de ações e medidas voltadas à redução do uso de agrotóxicos, “a exemplo do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara)”, que ainda está travado devido à recusa do Ministério da Agricultura em aderir à proposta.
“Ampliar o conjunto de medidas de mitigação e adaptação que viabilizem a transição para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, promover a desconcentração ao longo de toda a cadeia de abastecimento e o apoio público à logística de distribuição de alimentos produzidos pela agricultura familiar, população negra, indígena, quilombola e os Povos e Comunidades Tradicionais, garantindo a expansão da rede de abastecimento de alimentos saudáveis para as regiões periféricas, além de promover a articulação territorial dos equipamentos públicos e privados, por meio do Sisan, em consonância com o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar”, diz o texto.
O documento aponta a implementação de mecanismos de incentivo à aquisição de alimentos saudáveis da nova cesta básica, priorizando o pequeno varejo e a produção da agricultura familiar, população negra, povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais.
Na mesma linha, o plano defende avançar no combate ao racismo estrutural e a todas as formas de discriminação que geram e reproduzem desigualdades nos sistemas alimentares e injustiça climática, e fortalecer os espaços de governança democrática e participativa da segurança alimentar e nutricional no âmbito internacional.