O samba nasceu nas casas das mulheres. A história remonta às rodas organizadas por mulheres negras, muitas delas mães de santo, como Tia Ciata, no Rio de Janeiro do final do século XIX. As chamadas “tias baianas” criaram espaços de sociabilidade que misturavam festa e ritual, formando a base do que se tornaria o samba moderno. No entanto, com a consolidação do gênero como produto valioso para a indústria fonográfica e símbolo da identidade nacional a partir da década de 1930, a centralidade masculina se impôs, e a presença feminina foi relegada ao segundo plano.
“Nesse período o samba era algo vivenciado apenas presencialmente. As mulheres negras, maioria delas mães de santo, tinham esse papel de sociabilidade do samba”, explica Juliana Barbosa, pesquisadora da cultura do samba e professora no Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Mesmo sendo fundamentais para a formação do samba, as mulheres não tiveram o mesmo espaço nas composições e nos palcos. No discurso artístico e nas letras das músicas, raramente assumiram protagonismo. Nas escolas de samba assumiram papeis coadjuvantes, apesar de fundamentais, como as tradicionais baianas e pastoras ou a símbolos de beleza, como porta-bandeiras e passistas.
A pesquisadora explica que esse apagamento reflete uma estrutura patriarcal que vai além do samba. “Ainda enfrentamos situações em que o talento das mulheres é descredibilizado, mas elas têm mostrado que podem ocupar todos esses espaços, seja dentro de rodas ou escolas de samba.” Ela destaca que há um movimento crescente para ampliar a visibilidade das sambistas. “As novas gerações já vêm conscientes e com o terreno preparado para chegar e atuar com menos barreiras.”
Barbosa integra o grupo “Acadêmicas do Samba”, que pesquisa e divulga a participação feminina na história do gênero. “Estamos construindo uma nova narrativa histórica para tirar essa invisibilidade da presença feminina no samba. Começamos a contar novas histórias pelo olhar feminino e marcadas pela presença da mulher”, afirma. O grupo realiza palestras em escolas e entrevistas para democratizar esse conhecimento.
Mulheres no samba em Curitiba

Em Curitiba, o apagamento do samba se cruza com o racismo e a tentativa institucional de associar a cidade a outros estilos musicais, como rock e sertanejo. No entanto, a capital paranaense possui uma cena de samba forte e vibrante, apesar da repressão histórica.
O Bloco de Samba Boca Negra, que faz um trabalho de pesquisa aprofundado sobre a presença do gênero na capital, relata que um episódio marcante ocorreu em 1947, quando a Colorado, primeira escola de samba da cidade, precisou enfrentar a polícia para realizar seu desfile no centro. “Nosso registro sobre a origem do samba em Curitiba vem dos códigos penais, da criminalização da prática”, conta Caroline Blum, antropóloga e pesquisadora.
As restrições também ocorriam no espaço urbano. “Os negros eram impedidos de passar da linha do trem, nas próximidades onde hoje é a rodoviária. A linha dividia o espaço de alegria, música e festa. Quando eles passavam da linha do trem, os policiais os agrediam”, relata o escritor João Carlos Freitas no livro Colorado.
Apesar disso, o samba se manteve como forma de resistência e afirmação cultural. E, dentro desse contexto, mulheres tiveram papéis fundamentais, embora frequentemente apagados. Em pesquisa prévia, Léo Fé, presidente do Bloco de Samba Boca Negra e a pesquisadora Caroline Blum, identificaram alguns nomes de mulheres importantes nesse cenário cultural, Maria Joanna, por exemplo, foi presa em 1909 na Rua da Liberdade (atual Barão do Rio Branco) por promover um samba. Já Bica, Lizete, Laura, Célia e Soninha Garagem foram passistas que marcaram época na Colorado.
O pioneirismo feminino no samba curitibano também se destaca na música. Mãe Orminda foi a primeira intérprete do carnaval da cidade, em 1978. Maricélia, filha da cantora Evanira dos Santos, compôs e interpretou o samba-enredo da Embaixadores da Alegria em 1987. Outras mulheres, como Mãe Elenir e Marcinha, também deixaram sua marca nas escolas de samba da cidade.
“Muitas mulheres do samba em Curitiba viviam em situação de marginalização, eram lavadeiras, trabalhavam na prostituição, tinham essa característica mais popular”, explica Blum. “Tivemos também muitas mulheres anônimas, por isso precisamos buscar conhecer nossas mais velhas, aquelas que abriram os caminhos.”
Matriarca do samba curitibano

O colunista Ricardo Pazello já narrou a história de Orminda de Oliveira Rosa, conhecida como Mãe Orminda por ser a ialorixá do Ilê de Omulu, terreiro da Vila Izabel. Mãe Orminda foi uma das primeiras mulheres a cantar um samba-enredo na avenida. Em 1978, no desfile da escola de samba D. Pedro II, na Marechal Deodoro, ela subiu ao palco e fez história.
Nascida em Ipiranga, no interior do Paraná, e criada em Curitiba, Mãe Orminda se tornou uma das principais vozes do samba no estado. Com timbre potente e marcante, levou o samba curitibano para as quadras das escolas do Rio de Janeiro e dividiu o palco com Leci Brandão.
“Não tem como nós, mulheres, fazermos samba sem reverenciar Mãe Orminda. Ela é a matriarca do samba em Curitiba”, afirma Jay de Oyá, cantora, compositora e sambista curitibana.
A voz feminina nos palcos paranaenses
Por três décadas, Evanira dos Santos foi considerada a maior cantora do Paraná. Seu sucesso entre as décadas de 1950 e 1970 consolidou seu nome na música, mas sua trajetória também se entrelaça ao teatro político e de protesto em Curitiba.
Criada em uma família musical, Evanira lembra que, nas festas de fim de ano, os parentes sempre pediam que cantasse. Aos 13 anos, incentivada por uma tia, fez seu primeiro teste profissional.
“Aos 15, já estava noiva. Casei aos 18, mas nunca parei de cantar. Meu marido me acompanhava em tudo, cuidava da minha agenda e decidia tudo”, conta Evanira, hoje com 86 anos.
Mesmo sempre sob tutela – primeiro dos pais, depois do marido –, ela afirma que sua carreira transcorreu sem grandes obstáculos. “Nunca senti preconceito”, diz.
Mas nem todas as mulheres da cena musical paranaense tiveram a mesma experiência. Evanira lembra que muitas enfrentaram desafios e discriminação, e algumas desistiram do sonho de cantar.
Mulheres que mantêm a batucada viva

Embora o samba em Curitiba e a presença feminina no gênero sejam pouco visibilizados, a tradição segue viva e resistente.
Jay de Oyá, cantora e compositora, é uma das artistas que mantém essa cultura pulsante. “Sempre ouvi que Curitiba não tem samba, mas tem, sim. São muitos compositores e uma forte representatividade feminina”, afirma.
Ela ressalta que, apesar dos avanços, as mulheres ainda enfrentam resistência no mercado. “Ocupamos um espaço historicamente dominado pelos homens, e nosso trabalho muitas vezes é colocado em xeque. Temos que provar que somos tão boas quanto eles”, diz.
A busca por protagonismo levou à criação do Encontro Nacional e Internacional de Mulheres na Roda de Samba, em 2017. Hoje, é o maior evento de samba feminino do mundo. A cada edição, uma sambista é homenageada e escolhe a música que abre todas as rodas ao redor do globo.
“Esse projeto mostra a força das mulheres no samba. Curitiba e Londrina participam desde a primeira edição”, conta a pesquisadora Juliana Barbosa.
Jay de Oyá coordena a iniciativa na capital paranaense e diz que a adesão cresce a cada ano. “Nossa roda está aumentando como uma bola de neve. Queremos levar o samba feito por mulheres para as periferias”, afirma.
O próximo encontro da iniciativa Mulheres na Roda de Samba em Curitiba acontece no dia 30 de março, domingo, na Tekoa by Easy Cheff, no bairroHugo Lange, às 13h.
Para Jay de Oyá, a resiliência da mulher no samba é fundamental. “Os homens sempre tentam nos diminuir ou duvidam do nosso trabalho. Por isso, digo às mulheres no samba: sejam fortes e persistentes. E saibam que há muitas de nós para apoiá-las”, conclui.