A estreia do documentário Milton Bituca Nascimento, dirigido por Flávia Morais, revela momentos importantes da turnê A última sessão de música realizada em 2022 e estimula o público a refletir sobre a força e as origens da pulsão criativa do canto de Milton Nascimento. De um lado, ressoa a força da memória ancestral negra que conecta a resistência das pessoas escravizadas e suas expressões musicais mundo afora (das experiências do Congado mineiro ao jazz estadunidense), e de outro, estão as experiências tipicamente vividas em Minas Gerais, do mar de montanhas cortadas por linhas férreas, pela “maria fumaça”.
Por vezes, tive a percepção de que o filme estava bastante centrado em evidenciar o reconhecimento do cantor internacionalmente, mostrando nomes importantes do cenário musical estrangeiro, como Quincy Jones e Pat Metheny. Sem demérito da importância da aclamação mundial ─ ainda mais após a fatídica ação etarista, xenofóbica e racista da organização do Grammy Awards 2025 que não concedeu o devido assento para o cantor na programação, que concorria ao prêmio de melhor álbum vocal de jazz, ao lado da estadunidense Esperanza Spalding ─ aqui, tomo a liberdade de pensar Milton como um cantor profundamente enraizado nas tradições populares mineiras, mas, ao mesmo tempo, quero também refletir sobre as Minas e os Geraes.
No filme, grandes nomes da música brasileira como Chico Buarque, Mano Brown, Caetano e Gil, localizam as paisagens mineiras, sua história e expressões culturais como elementos centrais que inspiraram Milton. Até aqui, nada de novo. Embora nascido no Rio de Janeiro, Milton foi morar em Três Pontas, pequeno município do sul de Minas, com apenas dois anos de idade. Aos 19 anos, Milton se muda para Belo Horizonte, onde constrói laços e parcerias musicais definitivas em sua obra. Sua ligação com Minas, embora não seja de nascimento, é inalienável e indivorciável. Carrega no próprio nome artístico as sílabas iniciais do Estado, como observou uma criança que o ajudou a nomear o disco Minas, de 1975, com a junção de mi (Milton) + nas (nascimento).
Para quem assiste o documentário e observa essa ligação entre Milton e Minas Gerais, as imagens de Ouro Preto (e suas igrejas barrocas), das montanhas e do trem de ferro constituem a paisagem mineira que teria oportunizado ao Milton cantar com originalidade e astúcia. São recorrentes os depoimentos do grande mestre sobre as inspirações sonoras do trem de ferro, dos ecos e ressonâncias produzidas pela voz em cavernas e montanhas. Ou seja, de fato, essa relação íntima entre Milton e as características específicas da paisagem mineira é deveras um ponto central para a compreensão das origens e da força de seu canto.
Contudo, aqui estou preso em outras imagens da paisagem mineira que também reverberam em Bituca. A historiografia sobre o estado revela disputas teóricas e de narrativas sobre os caminhos que nos proporcionaram chegar até aqui, como um estado profundamente diverso economicamente, culturalmente e politicamente. Por muito tempo, parece que Minas Gerais esteve estritamente atado às imagens da mineração, de suas riquezas e contradições que envolvem a construção de um Estado minério-dependente. Os Geraes, tão distante das Minas ou, por que não, os Geraes: outras minas, não necessariamente se enxergam nas paisagens de Ouro Preto que sintetizariam o Estado em termos históricos, culturais e econômicos.
Quero lembrar (e, com isso, também me emocionar) da melodia do Milton e da letra de Fernando Brant, na canção Ponta de Areia, uma explícita denúncia ao fechamento arbitrário da antiga Estrada de Ferro Bahia-Minas, a “estrada natural” que ligava Minas ao mar, que ligava os Vales do Jequitinhonha e Mucuri ao sul da Bahia. A Bahia-Minas, como aqui chamamos, foi desativada em 1966 pelos ditadores de maneira abrupta e marcou profundamente a mobilidade, o comércio e a vida dos trabalhadores ferroviários. Uma chaga em aberto ainda hoje, numa região que nunca deixou cessar a esperança por mais integração e desenvolvimento regional.
Quero lembrar, também, do Milton a partir da canção Itamarandiba, que remonta à cidade homônima do Vale do Jequitinhonha e dos caminhos que levam até ela. Segundo registro de Saint Hilaire, Itamarandiba significa “pedras miúdas que rolam com outras” em tupi-guarani. A canção também arrola outras pedrinhas, como Turmalina, Diamantina e Pedra Azul, que situadas no semiárido mineiro, trazem à memória outras Minas, nem do ouro e nem do ferro, mas do garimpo de pedras preciosas e semipreciosas, das lavadeiras à beira dos rios, do barro e suas cores/formas. É uma paisagem distante das Minas.
Quero ainda me lembrar do musical “Ser Minas tão Gerais”, parceria de Milton com o grupo de teatro Ponto de Partida (de Barbacena) e o coral Meninos de Araçuaí (grupo de crianças e adolescentes que, por meio da arte e da educação, encontrou na música uma forma de expressar e transformar sua realidade social). Espetáculo que remonta à memória coletiva dos Geraes, com dramaturgia, musicalidade, danças e cantigas populares.
Quero me lembrar do Milton nas canções do afrocatolicismo popular, na Missa dos Quilombos, o Milton dos Tambores de Minas. Tudo isso me parece, intuitivamente, pensar que San Vicente também é aqui, nos Geraes, ou seja, o coração americano que Milton canta, está cravado no chão de barro vermelho do Jequitinhonha, na resistência dos ferroviários, no toque do tambor mineiro, na voz das mulheres geraizeiras entoando incelenças.
Não penso ser coincidência que Milton escolha duas canções para iniciar a sua última sessão de Música: Tambores de Minas e Ponta de areia. Existe uma intenção e um profundo amor nestas escolhas, uma referência aos Geraes. Certamente, o público que assistiu essa celebração no Mineirão, cerca de 50 mil pessoas, não passou incólume.
Guimarães dizia que “Minas são muitas”, Milton também. Do som da Maria fumaça ao jazz, do eco de sua voz ao som do “tambor gritando na noite quente dos trópicos” (parafraseando o poeta José Craveirinha), do silêncio cortado pelo sinos aos coros das festas devocionais… Milton, como Minas Gerais, parece ter vocação para sintetizar e expressar uma, entre muitas formas, de ser brasileiro.
*Leonardo Nogueira é doutor em Serviço Social, professor do Departamento de Serviço Social da UFOP e coordenador do Trem da História: grupo de pesquisa e extensão.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.