A ferrovia E-70, conhecida como Ferrogrão, trará mais impactos negativos para o meio ambiente e as comunidades tradicionais do que prevê o estudo de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA), divulgado pelo Ministério de Transportes em setembro de 2024.
A conclusão é de três pareceres apresentados por especialistas na última quinta-feira (20), na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Entre os danos subdimensionados ou ignorados no EVTEA, estão o aumento do desmatamento e a remoção de comunidades.
“O impacto da Ferrogrão seria severo, ou seja, mudaria drasticamente a paisagem e a ocupação nessas áreas, gerando danos diretos e irreversíveis às comunidades locais”, informa a Análise da atualização do EVTEA da Ferrogrão sob a ótica da Governança Territorial, com contribuições de especialistas da Ufopa, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e de organizações da sociedade civil.
O documento, no trecho destacado pela reportagem, faz referência ao eixo da ferrovia na altura do quilômetro 30, em Itaituba (PA), onde a Ferrogrão teria dois ramais [vias de acesso], o do Itapacurá e o do Santarenzinho.
“Para essas duas áreas são previstas desapropriações nos eixos de vicinais abertas na década de 1970 com comunidades de agricultores familiares ali residentes há gerações”, informa o estudo.
Com quase mil quilômetros, a Ferrogrão irá conectar os municípios de Sinop (MT) e Itaituba (PA), onde já funcionam os portos instalados no rio Tapajós, no distrito de Miritituba. Os grãos, principalmente soja e milho, atualmente chegam até Miritituba nas carretas dos cerca de 1,8 mil caminhões que estacionam diariamente nas Estações de Transbordo de Cargas (ETCs) em Miritituba. Em 2022, as ETCs movimentaram 12,9 milhões de toneladas de grãos.
No Caderno de Balanço de Emissões, que integra o EVTEA, consta a afirmação de que a implantação da ferrovia não será indutora de desmatamento.
“Em princípio até sim, ferrovias podem ser melhores do que rodovia, mas elas também induzem desmatamento”, avalia Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. “E ela é indutora sim, porque ela atrai para toda a região atividades econômicas e isso vai ampliar o desmatamento”, diz.
O EVTA projeta um crescimento da produção de soja no Mato Grosso de cerca de 50% até 2050. O incentivo ao cultivo do grão é atrelado ao aumento da derrubada da floresta, como já acontece no planalto Santareno, que engloba os municípios de Mojuí dos Campos, Santarém e Belterra, onde avançam as plantações de soja.
Em Mojuí dos Campos, onde o problema é mais grave, a taxa anual de desmatamento subiu de 400 hectares, em 2013, para 6,1 mil, em 2021, um aumento de 1.443%. Os dados são do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Araújo é uma das autoras da Avaliação de Impactos Cumulativos e Projeção de Desmatamento, publicação realizada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Instituto Socioambiental (ISA).

“Não estamos negando o empreendimento de infraestrutura em si, estamos negando fazer isso sem uma avaliação correta dos impactos”, ressalta a pesquisadora.
Entre as recomendações apresentadas ao final do estudo, estão o aprofundamento das avaliações dos impactos ambientais e o engajamento da sociedade na discussão sobre esses riscos. Além desses dois pareceres, o evento realizado na Ufopa teve a apresentação da Crítica à Análise Socioeconômica de Custo-Benefício da Ferrogrão, por Mariel Nakane (ISA)
Em resposta ao Brasil de Fato, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), vinculada ao Ministério de Tranportes, informa que o projeto da Ferrogrão (EF-170) segue em fase de atualização e aprofundamento de estudos técnicos e regulatórios.
“Os estudos de viabilidade foram elaborados e supervisionados pela Infra S.A., que contratou a empresa EDPL como consultora (…) A Agência reforça seu compromisso com o respeito e a proteção dos povos tradicionais. As minutas contratuais preveem obrigações relacionadas ao licenciamento ambiental, incluindo verba destinada a essas questões e o cumprimento de parâmetros de desempenho socioambientais”, informou, em nota enviada por e-mail.
Excluídos de consulta prévia, indígenas já sofrem os impactos
Embora não tenham sido consultados durante a elaboração do EVTEA, muitos moradores das regiões afetadas pelo crescente transporte e cultivo de soja na área de influência da ferrovia já sentem os impactos.
A consulta prévia, livre e informada é um mecanismo de proteção de comunidades tradicionais, estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 2002. Na prática, isso significa que essas populações têm o direito de acompanhar e tomar parte em decisões sobre empreendimentos que impactam os seus territórios.
“A Ferrogrão não tem consulta, né? Ela nunca consultou os povos indígenas”, denuncia Alessandra Korap Munduruku, liderança indígena moradora da reserva Praia do Índio, em Itaituba, onde os moradores já convivem com os dados ambientais.
Para essas comunidades, ficam os prejuízos relacionados ao aumento da quantidade de grãos transportados até ali e que são escoados pelo rio Tapajós pelas barcaças.
“A ferrovia é a porta de entrada de vários outros projetos, como hidrelétrica, as hidrovias, que é para passar a barcaça nos rios”, alerta Alessandra.
Os indígenas, para quem as águas do rio Tapajós são meio de transporte e fonte de alimentos, convivem com o transtorno decorrente do complexo portuário instalado na região para o escoamento da produção agrícola vinda do Mato Grosso.
“Onde existiam as praias bonitas, começa a ter muita lama, porque eles mexem com a terra, mexem no fundo”, conta Alessandra, sobre o processo de dragagem, que tem o objetivo de aprofundar as vias navegáveis e permitir o trânsito de grandes embarcações. “Então, cria uma lama e os peixes vão se afastando, vão desaparecendo”, diz.
Em Santarém (PA), no Planalto Santareno, onde a soja se espalha e toma lugar da floresta, os indígenas também foram excluídos dos diálogos sobre os projetos que danificam seus territórios.
“Nós não temos nenhum contato com o governo para estudo nenhum sobre Ferrogrão. Sobre hidrovia Tapajós também, que é a parte que nos impacta aqui mais diretamente dentro desse projeto”, diz Marcílio Tupynambá, vice-presidente do Conselho Indígena Tupinambá e morador da Terra Indígena Tupinambá, sobreposta à Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, em Santarém.
Para ele, a ferrovia não é somente mais uma obra na região amazônica, mas parte de um complexo que traz mudanças profundas na floresta e na vida dos povos indígenas e outras comunidades.
“Nesse projeto, [o rio] é visto como um corredor logístico e não como um local de vida, tanto da biodiversidade como para nós também, nós humanos, população que vivem na margem dos rios”, alerta Marcílio, que lembra que, a longo prazo, os danos podem ser irreversíveis. “Nós só perdemos com o projeto, né? (…) Isso tá muito claro, que os impactos vai ficar com nós, população ribeirinha. O território destruído, rio destruído, as floresta destruída”, lamenta.
A Ferrogrão irá afetar ao menos seis terras indígenas, onde vivem aproximadamente 2,6 mil pessoas, e 17 unidades de conservação.