O poder do cinema como um instrumento de visibilidade de temas como direitos humanos, liberdade, violência e mudanças climáticas é algo já conhecido. Prova disso está na premiação de películas como Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, do documentário Sem Chão (No Other Land), produzido pelo ativista palestino Basel Adra em colaboração com o jornalista israelense Yaval Abraham que aborda a questão do genocídio palestino e registra cinco anos de ameaças de expulsão e destruição de casas e vidas da população de Masafer Yatta, no sul da Cisjordânia, e Flow, animação da Letônia, narrando a história de um gato solitário que, num cenário pós- apocalíptico aprende a enfrentar seus medos e lidar com a diferença.
Dentro desta ótica também está o documentário We Fight For This Land: Quilombola and Indigenous Resistance to Ecowar Violence in the Amazon (*), de 2023, dos realizadores irlandeses Cahal McLaughlin e Siobhán Wills e exibido neste mês em Genebra, na Suíça, para uma plateia de ONGs e de defensores dos direitos humanos.

No filme de 62 minutos, McLaughlin e Wills narram a resistência das comunidades quilombolas e indígenas Ka’apor diante da violência que enfrentam no Maranhão. Denuncia as ações de pecuaristas e produtores de soja que invadem e se apossam das terras, inclusive assassinando seus líderes, contando com a conivência da polícia e a complacência do governo estadual.
“Vejo o cinema como um forte aliado da promoção dos direitos humanos. São ações que fortalecem defensores e defensoras de direitos, gerando visibilidade ao tema e resiliência comunitária”, diz Igo Martini coordenador-geral do Programa de Defensores de Direitos Humanos, Ambientalistas e Comunicadores do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDH) presente à sessão.
O Brasil de Fato RS conversou com Siobhán Wills. Pesquisadora do direito humanitário, manutenção da paz e proteção de civis, ela é professora de direito no Instituto de Justiça Transitória da Universidade de Ulster, no Reino Unido. Estudou o uso da força por forças de manutenção da paz que operam em situações onde não há conflito armado e dirigiu um documentário sobre a manutenção da paz no Haiti. Integra o Comitê da Associação de Direito Internacional sobre o Uso da Força e o Comitê de Ciências Sociais da Royal Irish Academy. Lecionou Direitos Humanos na Universidade de Saskatchewan e é membro do Programa de Direitos Humanos da Universidade de Harvard.
Brasil de Fato RS: Como e por que vocês escolheram as comunidades com quem trabalharam no filme?
Siobhán Wills: Escolhemos as comunidades através do (advogado) Diogo Cabral, da Fetaema (Federação dos Trabalhadores Rurais do Maranhão), com quem já trabalhamos há vários anos. A comunidade quilombola da Boa Hora 3 Marmorana foi escolhida porque três casas tinham sido queimadas e a polícia nada fez.
A Fetaema tem representantes na Boa Hora III/ Marmorana que discutiram a possibilidade de fazer um filme com a comunidade, que nos convidou a visitá-la e nos deu as boas-vindas, mostraram-nos seu modo de vida e as ameaças que sofriam.
As comunidades falam por si próprias, partilhando suas histórias umas com as outras num processo de colaboração
Os (indígenas) Ka’apor Tuxa Ta Pamé decidiram que as comunidades de Marata Renda e Ximbo Renda seriam as melhores para trabalhar e (a organização) Tuxa Ta Pame fez os preparativos e nos acompanhou nas filmagens.

Qual é a temática principal?
O filme está centrado nas comunidades que falam por si próprias, partilhando suas histórias umas com as outras num processo de colaboração. E partilhando suas histórias conosco, os realizadores; com o Diogo Cabral e a Fetaema; com as ONGs nacionais e o governo; e com a comunidade internacional.
Cada camada do processo tem um valor diferente. O cinema é um processo criativo – e criar em colaboração tem um valor em si mesmo – mais ainda se puder ajudar a aumentar a conscientização e a ligação entre as pessoas.
Nossa prática cinematográfica é participativa. Os participantes são co-proprietários e co-autores do filme
Por que contar esta história? Como foi a participação das comunidades no trabalho?
Trabalhamos com práticas cinematográficas participativas. Significa que os participantes são co-proprietários e co-autores do filme. Antes das filmagens, começamos com uma reunião em círculo com todos os membros da comunidade para partilhar e discutir quem somos todos, o que queremos alcançar e qual a melhor forma de fazê-lo.
Durante a discussão e nos formulários de consentimento – assinados antes da filmagem – deixamos claro que partilharíamos o projeto de edição do filme com os participantes antes de ser tornado público, para garantir que todos estivessem satisfeitos com a forma como são apresentados. Explicamos que poderiam pedir alterações, fazer sugestões ou pedir para serem retirados do filme, se assim o desejassem. Fizemos tudo isto, mas ninguém pediu alterações ou pediu para ser retirado.
Se as pessoas sabem que são co-proprietárias e co-autoras do filme muda a dinâmica. Torna-se um processo mais coletivo. As comunidades escolheram quem falaria para a câmara e escolheram as cenas, os locais e as atividades para serem filmadas.
As primeiras pessoas a quem mostramos o filme foram aquelas das próprias comunidades. Agora, quando fazemos projeções presenciais com perguntas e respostas, esforçamo-nos para garantir que um ou mais membros das comunidades participem das sessões de perguntas e respostas – presencialmente ou remotamente.
Conseguimos que os representantes das comunidades se reunissem com os Relatores Especiais das Nações Unidas
Que entidades apoiaram o documentário e qual foi o efeito prático na luta e na vida das comunidades a realização desse filme?
Através da Coligação Anti-Racismo da Organização das Nações Unidas, que tem apoiado o nosso trabalho, conseguimos que os representantes das comunidades se reunissem com os Relatores Especiais da ONU e com o Mecanismo de Peritos da ONU para o Avanço da Justiça Racial e da Igualdade na Aplicação da Lei.
Diogo Cabral enviou cópias documentário para a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos e nós também enviamos cópias para o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Comitê dos Direitos da Criança e o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial. E também para os Relatores Especiais da ONU para os Defensores dos Direitos Humanos e para os Povos Indígenas.

Também nos reunimos com o juiz da comarca de Bacabal, município distante 246 quilômetros de São Luís, (pedindo-lhe) para levantar as questões da situação em Boa Hora III / Marmorana. Ele conduziu uma investigação judicial, enviou a Polícia Federal seis vezes (à região), já que a polícia estadual não estava protegendo o quilombo. Em 2024, a justiça decidiu a favor da comunidade e contra o fazendeiro Antônio Márcio de Sousa Oliveira, que havia reivindicado a terra e ameaçava os quilombolas.
(*) “Lutamos por esta terra: resistência quilombola e indígena à violência na guerra ecológica na Amazônia”, em tradução livre.
