Aos 90 anos de idade, completados em 2025, Miguel Arroyo segue dando sua contribuição ao pensamento sobre a educação e o Brasil. Nascido em uma pequena cidade rural espanhola, o professor aposentado e emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), chegou ao país no fim da década de 1950, após ser perseguido pela ditadura franquista na Espanha. Poucos anos depois, com o golpe de 1964, vivenciou outro regime autoritário, a ditadura militar brasileira.
Desde então, ele se dedica a refletir sobre a sociedade brasileira, as dinâmicas de poder, a atuação dos movimentos sociais e as interfaces entre a política e a educação, com dezenas de livros e artigos publicados. “A história da educação não se explica por ela mesma. Ela se explica só se levarmos em consideração a força dos movimentos sociais”, enfatiza Arroyo.
O poder não é terrível só em tempos de ditadura, mas ele se expressa no capital, no mercado, no agronegócio
No dia 20 de março, o pesquisador foi homenageado pelas suas nove décadas de existência e contribuições na Faculdade de Educação da UFMG. Em 2024, ele foi um dos finalistas do Prêmio Jabuti Acadêmico, com a obra Vidas re-existentes.
Para conhecer um pouco mais sobre a trajetória de Arroyo e suas ideias, o Brasil de Fato MG conversou com o professor, que destaca que “a educação está transpassada pelas grandes dicotomias da sociedade, de classe, de raça, gênero, etc”.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG – Como um menino camponês que gostava de estudar se transformou em um dos principais pensadores sobre a educação no Brasil?
Miguel Arroyo – A minha história é um pouquinho longa, são 90 anos. Eu nasci em uma cidadezinha rural, Ribera del Duero, na região de Castilha la Vieja, na Espanha. É aquela terra de castelos, onde nasceu o castelhano.
Sou o primeiro filho de meu pai e de minha mãe. Depois tive mais cinco irmãos. A cidade é de agricultura familiar. Na parte próxima ao rio, plantam-se uvas e parreiras. É de onde sai um dos vinhos mais importantes de toda a Europa. Já na parte de cima, há o cultivo de cereais, trigo e cevada. Meus pais, avós e tios eram agricultores.
Então, o início da minha vida foi assim, em uma família agrícola, onde começamos a ajudar e a trabalhar no campo muito cedo, desde crianças. Começávamos ajudando as mulheres nos trabalhos que elas faziam. Depois de crescer, íamos trabalhar com os homens, em atividades um pouco mais forçadas, como arar a terra, plantar, colher, etc.
Na cidade, tinha uma escola do campo que eu frequentei. Havia uma separação entre a escola para meninos e a escola para meninas. Quando ficávamos mais velhos, chegavam alguns padres dos seminários e perguntavam ao professor “tem algum menino aqui que gostaria de continuar estudando?”. O professor olhou para mim e disse “este aqui, que está me ajudando inclusive a alfabetizar as outras crianças”.
Desde sempre, a educação é marcada por disputas de classe, de raça e de gênero
Cheguei em casa todo contente: “um padre disse que posso ir estudar no seminário e eu quero”. Mas meu pai respondeu “você é o primeiro dos filhos e o primeiro filho de um agricultor deve trabalhar com agricultura”. Na hora, eu chorei e minha mãe entrou no meio, pedindo para que ele me deixasse estudar, já que eu gostava muito de estudar. No fim, meu pai aceitou.
Isso mudou a minha vida. Todos os meus outros cinco irmãos continuaram no campo e, quando chegaram na adolescência, foram para “pequenos” trabalhos, mas não seguiram estudando. Essa teria sido a minha história.
No segundo momento, já no início da minha juventude, eu não aguentava mais o formato do estudo, que era muito tradicional, carregado, duro, eclesiástico e pouco científico. Foi aí que resolvi ir para Madrid, onde estudei e morei em um “colégio maior”, como é chamado lá.
A função dessas escolas era oferecer a parte cultural e artística, o que geralmente não se oferece nos cursos específicos de engenharia, matemática, medicina, etc. Lá eu também estudei filosofia e teologia.
Aquela época, que também era a época da ditadura franquista, que perseverou por mais de 20 anos, foi muito marcante para mim. Eu pensava “Arroyo, não se esqueça. Se há ditaduras, se somos vítimas das ditaduras, não se esqueça que as massas resistem. Lembre-se da rebelião das massas”. Fui aluno de José Ortega y Gasset, autor do livro A rebelião das massas, que me influenciou muito.
Uma pedagogia que esquece dos sujeitos, ainda que tenha todas as teorias, será insuficiente
Foi aí que eu entrei muito nessa linha de estar atento às resistências dos oprimidos, o que marca toda a minha produção.
Em 1966, fiz o vestibular unificado da UFMG, para cursar sociologia. Eu percebi que a filosofia e a teologia não eram suficientes para entender as realidades social e política. Porque, entre outros motivos, em 1964, tivemos um golpe no Brasil.
Eu, que fugi da ditadura franquista, pouco tempo depois, estava em outra ditadura. E não era só aqui. Haviam ditaduras em toda a América Latina. Por isso, eu senti a necessidade de estudar sociologia e ciência política e foi o que eu fiz, dando muita centralidade na compreensão política da sociedade e do poder.
O poder não é terrível só em tempos de ditadura, mas ele se expressa no capital, no mercado, no agronegócio, etc.
Como você identifica a dinâmica da disputa de poder na educação?
Eu comecei a dar aula em 1971 e fiz um mestrado em ciência política. A linha que eu pesquisava era sobre política educativa. Naquela época, eu comecei também a trabalhar na Secretaria Estadual de Educação, quando se começou a discutir uma “outra política educativa”.
Mas eu percebia que essa política educacional era muito marcada pela ditadura que estávamos vivendo. Daí, minha dissertação de mestrado foi sobre como a gestão da política educacional era uma gestão de imposição e controle. Não era uma gestão democrática, mesmo que dissessem que era.
Daí, comecei a dar aula na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG. Meu orientador estimulou que eu fosse para a Universidade de Stanford, na Califórnia, fazer o doutorado em ciências políticas, com ênfase em política e educação.
Eu fiquei lá entre 1974 e 1976, e, naquela época, foi traduzido o livro The Making of the English Working Class, de E.P Thompson, sobre a formação da classe operária inglesa. Isso me instigou a escolher como tema de pesquisa como se formou a classe operária brasileira.
Só conseguimos entender a radicalidade das lutas populares, se entendemos a radicalidade da negação de direitos
Eu me perguntava, “será que conseguiram fazer com que os libertos da escravatura, que tinham trabalhado não por valores do trabalho, mas por obrigação escravizada, apreendessem os valores do trabalho livre?”. A educação seria capaz de formar esses novos valores?
Minha investigação demonstrou que não. Na verdade, a elite preferiu importar trabalhadores “já feitos” de Portugal, da Espanha, da Itália, etc, para vir para cá. Eu me perguntava o motivo disso.
Um dos motivos é que acreditavam que se os trabalhadores ex-escravizados, que eram maioria, aprendessem os valores do trabalho livre, eles acabariam impondo no Brasil uma sociedade racializada. Desde sempre, a educação é marcada por disputas de poder. Disputa de classe, de raça e de gênero.
Como as disputas de classe, raça e gênero se expressam na educação?
Essa pergunta é muito interessante. Quando eu voltei, ao invés de ficar na Fafich, fui para a Faculdade de Educação da UFMG, porque estava se conformando lá uma pós-graduação em educação. E, mesmo na universidade, essa questão se manifestava de forma clara.
Na Fafich até tinham muitas mulheres, porque a função de educar era tida como “algo de mulher”, mas não tinham negras. As mulheres negras chegavam no máximo aos institutos de educação, mas era para estudar educação média, para serem professoras do ensino médio.
E mesmo assim, eu me lembro que o diretor um dia me falou “Arroyo, o que está acontecendo no instituto de educação? As aulas estão escurecendo”. Eu respondi: “o que houve? Falta luz?”. A presença das meninas negras nos cursos “assustava” ele. Mas, para mim, era algo extremamente positivo.
A realidade foi evoluindo. Quando eu cheguei na Faculdade de Educação da UFMG, a maioria era branca. Mas, depois que o Lula (PT) implementou as cotas raciais, a maioria passou a ser negra. Houve essa evolução maravilhosa.
Quando se desmonta o Estado de direitos, não adianta falar em direito à educação
O campo da educação é um campo onde os poderes tentam impor sua cultura, seus saberes. Temos uma “Base Nacional Comum”, por exemplo. Observem o destaque para “nacional” e “comum”. Ou seja, para todos.
Temos aqui, bem do lado da minha casa, um colégio particular, onde estudam crianças e adolescentes brancos de classe média. Do outro lado, temos uma escola pública, onde não estudam pessoas da classe média. Para não fechar a escola pública, todos os dias, ônibus saem e passam nas favelas, buscando crianças e adolescentes para trazer para cá. Olha que coisa absurda.
Isso é uma demonstração de como a educação reproduz a dualidade racial da nossa sociedade. A educação está transpassada pelas grandes dicotomias da sociedade. A dicotomia de classe, de raça, de gênero, de famílias, de maternidades etc. Não se pode esquecer isso.
Essa é uma questão que muito me preocupa e é um debate que está presente em quase todos os meus livros.
Você escreveu uma série de livros que analisam o papel dos professores e dos estudantes na transformação da pedagogia, como Ofício de mestre e Infâncias quebradas. O que mais te provoca a pesquisar sobre a educação?
Eu fui secretário municipal de educação de Belo Horizonte na gestão de Patrus Ananias (PT). Foi uma experiência muito interessante. Tínhamos quase 300 mil crianças nas escolas públicas. E boa parte dos meus livros surgiram de indagações de professores nessa época.
Uma vez, por exemplo, uma professora me disse que não sabia mais qual era o seu ofício. Ela dizia que havia uma contradição entre o que disseram que ela seria e aquilo que de fato ela precisava ser. “Eu tenho que me reinventar no meu ofício, porque não é o que me ensinam na faculdade”, dizia ela. Daí, eu escrevi o livro Ofício de mestre.
Eu aprendi que as professoras, em sua grande maioria mulheres, nas escolas públicas, tinham que se reinventar. O ofício não era simplesmente letrar, era mais do que isso. Era preciso aprender sobre como os estudantes viviam para ajudá-los.
Então, de certo modo, a política educativa das elites não consegue ser completamente imposta na educação básica popular, porque o currículo e as próprias diretrizes curriculares são disputadas pelos professores. E são disputadas a partir de vivências outras. Também é um território de disputa de saberes, a partir do seu viver, como pessoas negras e periféricas. Essa reflexão deu origem ao livro Currículo em disputa.
Nós não estamos no Estado de direitos. Ainda é o capital que define as regras
Tem um outro diálogo também interessante que me estimulou a escrever outra obra. Uma professora me disse “Arroyo, a imagem que eu recebi para ser professora era de uma infância bonita, feliz, feliz a cantar”, ou infância esperança, como diz tanto a Rede Globo.
E a professora afirmou que a imagem que ela tinha da infância “era vidro e se quebrou”. Outra colega respondeu, em seguida: “quando as imagens das infâncias com que trabalhamos se quebram, o que acontece com as nossas imagens de educadoras? Se quebram também”. Então, eu publiquei o livro Imagens quebradas.
A ideia que me domina, que me interpela sempre, é a de que a pedagogia não é algo que vem de cima para baixo. A pedagogia em movimento vem de baixo para cima. Precisamos dar mais atenção aos sujeitos e menos importância às diretrizes nacionais. Nos cursos de pedagogia sabemos muito pouco sobre quem são os educandos, assim como nos cursos de sociologia sabemos muito pouco sobre quem são os sujeitos sociais.
Uma pedagogia que esquece dos sujeitos, ainda que tenha todas as teorias, será insuficiente.
Qual é o papel dos movimentos populares na transformação da educação pública brasileira?
A história da educação não se explica por ela mesma. Ela se explica só se levarmos em consideração a força dos movimentos sociais. É preciso considerar a força das mulheres que lutam pela escola e pela educação de seus filhos.
Em 1970, por exemplo, em plena ditadura militar, houve um movimento de mulheres negras, trabalhadoras domésticas, por creches. Na época, só entrava na escola com sete anos. Mas e com seis, cinco, quatro, três? E as mulheres que tinham que sair cedo para trabalhar? Onde deixavam seus filhos?
Ou seja, a educação é inseparável da história dos movimentos, não só por educação, mas dos movimentos sociais mais amplos, negro, indígena, quilombola, dos trabalhadores, dos sem-terra, etc. Isso é muito interessante.
Eu sempre acho que só conseguimos entender a radicalidade das lutas e das resistências populares, seja por terra, por trabalho, por teto, por vida, ou por educação, se entendemos a radicalidade da negação de direitos a que esses sujeitos estão submetidos.
Eles são resistentes às desumanidades a que são condenados desde a infância. É preciso entender isso para entender as lutas pela humanidade. Eu aprendi isso com Paulo Freire. Essa ideia é desenvolvida no meu último livro, Vidas re-existentes. Não são apenas vidas resistentes, são vidas afirmando a sua re-existência. Afirmando que continuam existentes.
Agora, tem se falado muito no filme Ainda estou aqui. Eu acho que esses sujeitos estão dizendo “ainda estamos aqui”, reafirmando a sua humanidade na história. A primeira luta é pela vida. Ninguém resiste primeiro por escola. As mulheres negras daquele movimento por creche não lutavam só para que os seus filhos tivessem letramento na idade certa. Lutavam por vida.
Vocês devem se lembrar do caso do menino Miguel, de Pernambuco. A mãe dele, empregada doméstica, antes de ir para o trabalho, mandava o seu filho para creche. Quando a escola fechou, por conta da pandemia, ela precisou levar a criança para o trabalho. Ela cuidava todos os dias dos filhos da patroa e não seria um problema cuidar de seu próprio filho junto.
Quando chegou ao trabalho, precisou sair com cachorro para passear e deixou as crianças com a patroa. O resto da história vocês conhecem. Ela cuidou dos filhos da patroa por tantos anos, e a patroa não pôde cuidar do filho dela por 20 minutos.
Ou seja, lutam pela vida, por comida, por proteção, por cuidado. Essa é a questão que precisamos entender.
Quais são os principais desafios atuais da educação?
A pergunta que nós temos que colocar é em que momento político nós estamos. A primeira questão é o desmonte do Estado de direitos. Quando se desmonta o Estado de direitos, nada adianta falar em direito à educação, porque todos os direitos humanos são desmontados.
Olhar para a educação nos coloca o desafio de pensar o Brasil. É preciso pensar o Brasil, para entender e pensar a educação. E qual país temos hoje? O Brasil até hoje, inclusive com o governo Lula, mantém o estado de desmonte. E, como consequência, há o desmonte de todos os direitos, o direito ao trabalho, o direito à vida, o direito à educação, o direito à saúde, o direito à comida, ao turismo, etc.
Estamos em um tempo em que Lula diz “temos 40 bilhões de famintos. Precisamos dar comida aos famintos”. Mas o dólar sobe e a bolsa cai. E, no dia seguinte, aparece o agronegócio dizendo “não vamos dar comida aos famintos, porque é muito mais rentável produzir para exportar e receber em dólar”.
Isso é o que estamos vendo todos os dias. Nós não estamos no Estado de direitos. Ainda continua sendo imposto o Estado do mercado, que se interessa em produzir para o mercado, que quer vender para o mercado. Ainda é o capital que define as regras.
Se quisermos reconstruir o direito à educação, precisamos repensar radicalmente qual outra educação queremos, que não pode ser essa educação meritocrática. Não adianta estudar educação, sem estudar que Brasil e que Estado nós temos.