Em 13 de março de 2019, uma quarta-feira, um menino de 17 anos, acompanhado de um homem de 25, invadiu uma escola em Suzano, interior de São Paulo. Usando balaclavas e armados com uma machadinha, uma besta lançadora de flechas e armas de fogo, o objetivo dos dois garotos era reproduzir o famoso massacre de Columbine, de 1999. Em Suzano, cinco alunos, dois funcionários e os dois atiradores terminaram mortos, além de um parente de um dos atiradores.
Enquanto a maioria de nós quase se esqueceu dessa história, o túmulo dos garotos que invadiram a escola — inspirados e incentivados por fóruns de ódio no submundo da internet — costuma receber visitas. São outros garotos, fãs e admiradores dos assassinos, que vão cultuar aqueles que cometeram o massacre.
Isso mostra como a cultura incel e red pill se espalha de maneira sorrateira na nossa época, pegando todos nós de surpresa — pais, família, escola e autoridades — para além dos guetos teóricos, das trincheiras ideológicas e de quaisquer moralismos rasteiros.
E é exatamente essa fragilidade e vulnerabilidade brutal que a minissérie Adolescência expõe em carne viva, com uma narrativa impecável, construída com brilhantes planos-sequência que nos deixam sem fôlego, passando por cada um dos núcleos que falharam em perceber a origem do mal.
A forma da vida
O primeiro episódio começa com a polícia invadindo a casa da família, por volta das seis horas da manhã, arrombando a porta com fuzil em punho, em busca de Jamie, um garoto de 13 anos, com feições infantis, que seria o principal suspeito de ter cometido um assassinato brutal de uma garota na noite anterior.
Obviamente, deve haver algum engano. Um garoto como aquele não cometeria um assassinato. E ficamos desesperados ao ver aquela criança ser levada sozinha, na viatura, até a delegacia, afirmando a todo momento que não fez nada.
Parece um garoto comum, como um dos nossos filhos: apavorado e frágil. E mesmo na sequência do interrogatório, ao final do episódio, diante do vídeo da câmera de segurança, o espectador ainda pode ficar incrédulo. O que vemos no rosto do garoto, e que nos confunde, é um vislumbre de inocência infantil, então corrompida pelo mal.
O que torna esse primeiro episódio tão impactante é o uso extremamente competente do plano-sequência: cria-se uma equivalência entre o tempo da dramaturgia e o tempo do espectador. O tempo na tela é o mesmo do nosso relógio real. Essa sincronia nos arremessa para o coração do arco dramático.
Não é só o assunto que parece real demais. É a forma como ele é construído. O tempo é a própria forma da vida.
Escola e polícia
Quando grandes conglomerados de tecnologia conectaram o planeta todo de modo irreversível, através da internet e das redes sociais, um dos efeitos colaterais foi o fortalecimento de grupos e seitas de todos os tipos — como neonazistas e também aqueles que formam a “machosfera”: Red Pill, MGTOW (“Homens Seguindo Seu Próprio Caminho”) e Incels (“celibatários involuntários”).
Canais e perfis que incitam o ódio e o desprezo às mulheres são comuns nas plataformas de redes sociais, que parecem fazer vista grossa a esses conteúdos: muitos desses canais são monetizados, como mostra um relatório do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais.
Os 76.289 vídeos analisados no YouTube pelo estudo somam mais de 4,1 bilhões de visualizações. Se seu filho adolescente tem um smartphone e está na internet, ele muito provavelmente está exposto à doutrinação misógina.
Aqui não se trata apenas de falta de conhecimento, tecnofobia ou abismo de gerações. As transformações no ecossistema digital ocorrem no ritmo dos virais. E nem mesmo as instituições conseguem acompanhar.
O ambiente escolar retratado no segundo episódio de Adolescência — uma escola europeia de classe trabalhadora — expõe professores desconectados dos alunos e um ambiente hostil. E mesmo o detetive parece não entender o motivo do crime. É o filho do policial, um garoto também com dificuldades de socialização, quem aponta ao pai o caminho do que realmente aconteceu, indicando a simbologia por trás dos emojis usados nos comentários do Instagram de Jamie.
É só aí que temos uma visão mais ampla da questão. A câmera voa para o céu. E vemos a cena do crime à distância.
Verdades desconfortáveis
Nas duas partes finais, a minissérie atinge um nível de complexidade, brutalidade e melancolia comparável ao de uma poderosa peça de teatro.
O diálogo de Jamie com a terapeuta, no terceiro episódio, entre atos falhos e declarações sintomáticas, mostra um garoto reproduzindo ideias comuns das seitas incels. É também ali que ouvimos ele dizer que se aproximou da garota porque ela estava fragilizada por ter tido fotos íntimas vazadas. Premeditação, crueldade, desprezo.
O diálogo é cheio de subtextos. E sem explicações além daquilo que é manifesto no discurso — e daquilo que o garoto tenta esconder enquanto fala o que não quer dizer.
Nos planos finais, que lembram um pouco os sofrimentos de Tilda Swinton em Precisamos Falar Sobre o Kevin, vemos a família perambular pela van em busca de uma lata de tinta para apagar uma pichação maldosa contra o pai de Jamie. Um crime brutal desses é irreversível. Mas não destrói o amor da família pelo filho. Esse sofrimento despedaça os pais e a irmã.
Trabalhos complexos, sofisticados e difíceis, que envolvem justiça restaurativa para além das prisões, tentam pensar em modos de reparar o irreparável, perdoar o imperdoável e evitar a repetição do mal — ainda mais quando envolvem sujeitos em formação. Mas como seria possível oferecer algum tipo de reparação e conforto à família da garota?
Quem parece estar pronto a oferecer apoio a Jamie e a seu pai é o estranho garoto da loja de tinta. Ele também é um incel, red pill, falando do grupo no plural, oferecendo ajuda para pagar um advogado.
A verdade é que não dá para confiar no voluntarismo. Os grupos de ódio estão por toda parte: neonazistas, reacionários de extrema-direita, ultraconservadores religiosos, incels, red pills. Eles parecem cada vez mais organizados, captando seguidores como uma seita fanática, doutrinando os mais vulneráveis, construindo seus pequenos exércitos de ódio com base no ressentimento.
Sem enfrentar as big techs, é difícil mudar esse cenário.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.