O teatro do Sesc Bom Retiro foi preenchido, na noite desta quarta-feira (26), por usuários, ativistas, artistas e frequentadores da região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo, para a pré-estreia da série documental Território em Fluxo. A produção do Brasil de Fato é composta por cinco episódios que, se contrapondo a abordagens estigmatizantes, retrata a complexidade e as disputas em torno deste território a partir das pessoas que ali atuam. Os vídeos ficarão disponíveis no Youtube do Brasil de Fato a partir de 24 de abril.
A exibição foi acompanhada de comentários, risadas e palmas à medida que espectadores viam a si mesmos e pessoas queridas no telão. Com nove meses de apuração e 30 entrevistas, o Território em Fluxo deu destaque a coletivos que, por meio de iniciativas de cuidado, cultura, acesso à renda e resistência à violência policial, implementam práticas cotidianas alternativas à lógica da guerra às drogas. Entre eles, A Craco Resiste, Tem Sentimento, Teto Trampo e Tratamento (TTT), Paulestinos, Ocupação Mauá, Cinefluxo, Pagode na Lata e Centro de Convivência É de Lei.
“A gente veio compartilhar um pouco da nossa história, da nossa vivência e um pouco do sofrimento também, porque a vida é assim”, conta Veronika Verão, do Tem Sentimento, um coletivo “de redução de danos e geração de renda para pessoas mulherizadas”, explica.

Território em disputa
Os intentos de gentrificação da disputada região central da capital paulista, alternando entre roupagens de brutalidade policial e planos de “revitalização”, tem como mais recente capítulo a intenção da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) de transferir para o bairro da Luz a sede do governo estadual.
Via de regra, o discurso de que é preciso “combater o crack” – como se a repressão estatal fosse contra uma substância e não pessoas – é usado para legitimar ações como revistas em massa, fechamento de hotéis sociais, operações policiais midiáticas ou confinamento do fluxo entre cercados e muros.
Protagonistas da série documental mostram que, ao contrário da visão de que o problema da região é “a droga”, visão tão simplista quanto útil para legitimar as políticas repressivas contra esta população, o que se passa na Cracolândia é sintomático de outras questões, tais como racismo, encarceramento e pobreza. “Não é a violência que vai tirar as pessoas daqui. Foi a violência que trouxe as pessoas para cá”, resume, no documentário, Roberta Costa, do coletivo A Craco Resiste.
Com o intuito de abordar a profundidade do que faz a Cracolândia surgir e permanecer, a potência das pessoas que ali estão, bem como os caminhos pensados por elas para lidar com essas questões estruturais da sociedade brasileira, os episódios estão divididos nas temáticas fluxo, segurança pública, moradia, cuidado e cultura.
“Para entender a Cracolandia é preciso ver essas duas dimensões: o que acontece de fato no território e o que acontece nessa dimensão política sobre a Cracolândia. Muitas vezes o que se fala sobre a Cracolândia não é a realidade do que é e nem está interessado em lidar com o uso problemático de substâncias”, avalia Giordano Magri, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) que atua na região.
“O território se transformou em um ativo político que é usado para esta exploração do que é a vulnerabilidade, do que é a perspectiva de autonomia e humanidade destas pessoas. Então quando tem um documentário como esse que traz a perspectiva dos coletivos num momento em que vivemos agora, de aprofundamento da política higienista, é uma ferramenta muito estratégica”, pontua Magri.
O lançamento
O lançamento da série Território em Fluxo integra a programação do Festival Direitos Humanos para Todas as Pessoas, do Sesc São Paulo. Com o tema “Tecer Redes Colaborativas”, o evento acontece de 19 a 30 de março em 39 unidades do Sesc SP, com cursos, oficinas, bate-papos, apresentações artísticas e laboratórios de direitos humanos. O objetivo desta edição do festival é falar sobre a importância das redes colaborativas nos territórios, a exemplo do que vemos na região do fluxo.
Sandra Carla Sarde Mirabelli, técnica da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc SP, reforça a importância do lançamento da série – uma parceria do Brasil de Fato com o Sesc. “Esse trabalho é muito significativo para a gente trabalhar nesse território que pulsa tantas questões sociais, expressões diversas das desigualdades presentes na nossa sociedade, mas que tem muitas potencialidades e a gente precisa apresentar isso. Com esse trabalho, a gente busca reencantar e também reafirmar que a defesa dos direitos humanos é para todas as pessoas, sem exceção.”
O evento no Sesc Bom Retiro contou com uma exposição de lambes feitas por oficinas com o coletivo Paulestinos e começou, depois de um lanche coletivo, com uma apresentação da artista e articuladora social MC Docinho. Depois da exibição, houve um debate mediado pela diretora da série, Iolanda Depizzol.
“A minha experiencia até chegar neste território não foi fácil. Venho de uma família muito religiosa. Muito nova me convidaram a me retirar, devido a eu ser quem eu sou, uma travesti. Fui para a prostituição, a drogadição e fui morar dentro da Cracolândia, onde passei dois anos, batendo de frente com o sistema. Porque era eu sozinha, ninguém ia correr comigo”, relatou Verônica Verão.
“E aí graças a Deus conheci anjos que me levantaram, me ajudaram a seguir um novo destino. A família que antes não me acolheu hoje é o coletivo Tem Sentimento. Já não me encontro mais no crack e de acolhida, hoje eu ajudo a acolher”, destaca Verão, que compartilhou a mesa com a redutora de danos Francieli Silva, Giordano Magri, MC Docinho e a palhaça e articuladora do TTT, Andrea Macera.
Em breve, o Território em Fluxo terá também uma série de episódios em podcast.