O movimento feminista no Brasil e na Catalunha, na Espanha, recebeu com indignação a notícia de que a Justiça espanhola anulou, nesta sexta-feira (28), a condenação por estupro contra o ex-jogador de futebol brasileiro Daniel Alves. Agora, o jogador está livre de pendências na Justiça, mas ainda cabe recurso da decisão perante a Suprema Corte do país europeu.
No Brasil, Mariane Pisani, professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pesquisadora na área de Antropologia do Esporte e Estudos de Gênero, afirma que a anulação da condenação representa uma “demonstração de como o machismo estrutural atravessa também os sistemas de justiça” e uma “uma violência simbólica e concreta contra todas as mulheres”.
A docente defende que a decisão expõe a cultura do estupro ao colocar em dúvida os relatos das vítimas, com um “efeito devastador”. “No futebol, onde ainda se luta por equidade e contra o silenciamento das mulheres, o efeito é devastador. Ao naturalizar a impunidade, reforça-se o imaginário de que jogadores estão acima da lei, intocáveis, como se o prestígio esportivo bastasse para apagar a gravidade da violência sexual”, afirma.
Pisani também destaca que a anulação não deve ser vista como um “caso isolado”, mas como uma ação inserida “num sistema que sistematicamente desacredita vítimas, banaliza a violência sexual e perpetua desigualdades. O futebol precisa ser confrontado com suas próprias estruturas de poder e conivência – e isso inclui enfrentar o machismo institucional que sustenta decisões como essa”.
Maria Julia Montero, militante da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo, afirmou que a decisão da Justiça espanhola é “um retrocesso”, uma vez que “reafirma a ideia de que as mulheres estão sempre sob suspeita, enquanto os homens são sempre inocentes”.
“Estávamos avançando rumo a um entendimento de que a palavra da mulher pode ser entendida enquanto evidência, principalmente pelo fato de que na esmagadora maioria das vezes esse tipo de crime ocorre no espaço privado, sem testemunhas, e é muito fácil as provas sumirem, pois nem sempre fica sêmen na mulher, nem sempre há machucados”, afirma.
“Agora, o cara pode mudar o depoimento dele cinco vezes, mas é a palavra da mulher que é posta em dúvida. Ainda, reforça a narrativa – falsa – de que homens são vítimas de denúncias falsas”, finaliza a militante da MMM.
Em seu perfil no Instagram, Débora Diniz, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) e referência internacional na defesa dos direitos das mulheres, criticou a anulação da decisão judicial. Ela destacou o impacto da justificativa utilizada pelos magistrados, que alegaram “falta de fiabilidade” da vítima – um termo que, segundo Diniz, remete à ideia de confiabilidade e veracidade do relato.
A antropóloga também questionou o peso desproporcional colocado sobre a palavra da vítima, ressaltando que havia imagens, testemunhas e seu próprio depoimento. Para ela, a decisão transmite a mensagem de que a vítima mentiu, tornando ainda mais difícil o caminho da denúncia para outras mulheres que sofrem violência sexual.
“Vá ao dicionário. Os juízes disseram haver ‘falta de fiabilidade’ da vítima. É qualidade ser fiável. Aquelas palavras mesmo assim para dizer ‘confiável’, ‘falar a verdade’. Ele foi absolvido porque a vítima mentiu. É assim que ela e nós lemos o que diz o Tribunal. Havia imagens, houve testemunhas, houve o depoimento dela”, publicou Diniz.
“Não estou aqui para refazer sentenças, mas assombrar-me com que uma mulher vítima de violência precisa apresentar como provas para ser ‘fiável’. Sinto muito por esta vítima em particular. Essa mulher que adormecera com um novo pesadelo (se conseguir dormir): a do estupro e a de duvidarem dela”, concluiu.
O grupo Feministes de Catalunya publicou, em seu perfil no Instagram, um texto denunciando a baixa taxa de denúncias de estupro e a revitimização enfrentada pelas mulheres que procuram a Justiça. Segundo a publicação, apenas 1 em cada 10 estupros é formalmente denunciado.
A organização feminista destacou que entre os principais motivos que levam as vítimas de violência sexual a não denunciarem seus agressores está o constante questionamento e culpabilização das vítimas.
“Por que as vítimas de violência sexual não denunciam? (…) Porque elas são sempre questionadas e culpadas e o agressor é desculpado e justificado. Porque elas são obrigadas a não mudar uma única vírgula de seu depoimento após um trauma, mas eles podem mudar sua versão até 10 vezes”, diz o movimento espanhol.
Outro obstáculo citado é o julgamento sofrido pelas vítimas, independentemente do momento em que decidem denunciar. A publicação critica ainda a cultura que busca justificar a violência sexual com base no comportamento das vítimas.
“Se não fizerem a denúncia imediatamente, serão questionados, e se fizerem, também serão questionados. Porque ‘elas devem ter feito alguma coisa’ para serem estupradas ou mortas. Por que ela foi ao banheiro com ele? Porque se elas se submetem à violência que sofrem nas mãos dos homens para evitar males maiores, chamam isso de consentimento, o que não acontece, por exemplo, no caso de um assalto, em que ninguém seria aconselhado a resistir e lutar. Quando as vítimas são mulheres, elas não são ouvidas”, conclui a publicação.
Relembre o caso
Daniel Alves havia sido condenado a quatro anos e seis meses após ser acusado de estuprar uma jovem em uma discoteca em Barcelona, na Espanha, em 31 de dezembro de 2022. No mês seguinte, em janeiro de 2023, Alves foi preso e ficou cerca de um ano atrás das grades.
Na época, o tribunal declarou que a “a vítima não consentiu e há evidências suficientes, além do depoimento da denunciante, que permitem que o estupro seja considerado comprovado”. A Corte havia destacado ainda que, “para a existência de agressão sexual, não é necessário que ocorram lesões físicas, nem que haja provas de oposição heroica por parte da vítima”.
Em março de 2024, Daniel Alves deixou a prisão após pagar uma fiança de um milhão de euros pela liberdade provisória. Agora, no entanto, os juízes analisaram um recurso apresentado pela Promotoria de Barcelona, que solicitava um aumento de pena, e decidiram anular a condenação.
A decisão unânime do Tribunal Superior da Catalunha entendeu que a sentença condenatória possui “imprecisões”, e o depoimento da vítima, “falta de confiabilidade”.
“O acórdão hoje notificado indica que a decisão recorrida já se referia à falta de confiabilidade do depoimento da autora na parte do relato que podia ser objetivamente verificada por se referir a fatos registrados em vídeo, indicando expressamente que o que relata não corresponde à realidade”, diz a decisão.
Nas redes sociais, a mãe de Daniel Alves, Maria Lúcia Alves, comemorou a decisão. “Obrigado meu Deus por tudo. Glória a Deus, toda honra e glória a ti Senhor”, escreveu a mãe do ex-jogador de futebol.
Segundo a agência de notícias Reuters, Ester Garcia, advogada da denunciante, e a advogada de Alves, Ines Guardiola, ainda não se manifestaram. Ainda cabe recurso da decisão perante a Suprema Corte da Espanha.