O MPT-MS (Ministério Público do Trabalho do Mato Grosso do Sul) pede na Justiça a expropriação de uma fazenda de gado onde quatro trabalhadores foram resgatados em situação análoga à de escravo. A ação civil pública quer que a propriedade seja destinada para a reforma agrária, sem que os proprietários sejam indenizados.
É a primeira vez no estado que uma ação solicita a expropriação de um imóvel por trabalho escravo, de acordo com o procurador Paulo Douglas Almeida de Moraes, coordenador regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.
A ação foi ajuizada nesta terça-feira (25) na Justiça do Trabalho de Corumbá. Na quarta-feira (26), a Justiça aceitou o pedido do MPT para que conste na matrícula da fazenda que se trata de um imóvel em ação judicial, com o objetivo de evitar que a propriedade seja vendida no decorrer do processo.
No dia 25 de fevereiro, trabalhadores que cortavam madeira para a construção de cercas da Fazenda Carandazal, em Corumbá, foram resgatados em uma operação que mobilizou o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) e o MPT-MS. Os trabalhadores estavam sem registros, dormiam em barracos improvisados com lonas no meio da mata, não tinham energia elétrica, banheiros ou água potável.

“As investigações deixaram claro que eles vêm escravizando sucessivamente grupos nessa fazenda. Nós resgatamos quatro trabalhadores de uma fila enorme que nós não conseguimos encontrar”, afirmou o procurador em entrevista à Repórter Brasil.
Além de pedir que a propriedade seja destinada para a reforma agrária, a ação movida pelo MPT-MS pede que o proprietário Moacir Duim Junior seja condenado a pagar uma multa de R$ 25,1 milhões por danos morais coletivos devido às condições trabalhistas encontradas pela fiscalização.
Após o resgate, os proprietários Duim Junior e Cristiane Kanda Abe se recusaram, segundo as autoridades, a fazer um acordo com o MTE para o pagamento das verbas rescisórias aos trabalhadores.
A Repórter Brasil tentou contato com ambos por telefone, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
Resgate dos trabalhadores
A equipe que fez o resgate precisou de um helicóptero para chegar ao local de difícil acesso onde os trabalhadores estavam alojados. De acordo com o depoimento dos resgatados, que consta no relatório de fiscalização e na Ação Civil Pública, Duim Junior teria pedido aos trabalhadores para que passassem com tratores por cima dos barracos e se escondessem da fiscalização. Como o deslocamento foi por via aérea, os agentes de fiscalização conseguiram chegar antes que a ordem fosse cumprida.
“Ele falou que era pra nós irmos lá, trazer os guris para a sede e queimar o barraco. Não deixar nenhum tipo de vestígio”, contou Carlos*, um dos resgatados em entrevista à Repórter Brasil.
Carlos afirma que estava no local com outras três pessoas há cerca de um mês. Segundo ele, o fazendeiro prometeu um alojamento com estrutura de alvenaria, mas, quando chegaram ao local, havia apenas mato e estacas de madeiras. O trabalhador relata ainda que eles próprios levantaram as lonas do alojamento. A água que usavam, diz Carlos, era a mesma dada aos animais, e dois dos trabalhadores passaram dias na cama, com diarréia.
Ainda de acordo com o trabalhador, o único local com energia elétrica e conexão de internet para que eles carregassem lanternas e falassem com os familiares ficava a uma hora de caminhada. Ele afirma trabalhar no campo há duas décadas e relata que nunca viveu uma situação como essa. “As condições que a gente tava lá, hoje não existem mais. Ele deixou nós lá, jogou naquele lugar”.
Expropriação de terras e trabalho escravo
Para o procurador que pediu a expropriação da fazenda, a propriedade não estava cumprindo sua função social, prevista na Constituição, que determina que um imóvel rural deve respeitar a legislação trabalhista.
O artigo 243 da Constituição Federal prevê, desde sua promulgação em 1988, a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, como, por exemplo, uma plantação de maconha. Três anos depois, o dispositivo foi regulamentado pela Lei nº 8.257/1991.
Em 2014, após quase duas décadas de pressões de órgãos, instituições e movimentos sociais que atuam pela questão trabalhista, foi aprovada a Emenda Constitucional 81, que incluiu no artigo 243 a expropriação de propriedades que explorem trabalho escravo. Entretanto, o dispositivo não foi regulamentado, o que dificulta a sua aplicação.
Pela falta de regulamentação, o MPT propõe na ação de expropriação a aplicação de outras legislações vigentes, como a Lei nº 8.629/93, que prevê a desapropriação de propriedades que não estejam cumprindo sua função social, por exemplo, com a exploração do trabalho. Na desapropriação, entretanto, os proprietários recebem uma indenização pelo confisco da terra. Mas, nesta ação, o MPT pede que seja feita a expropriação, quando não há o pagamento de indenizações.
Poucas condenações por trabalho escravo
Apenas 4,1% dos réus denunciados por trabalho escravo foram condenados definitivamente no Brasil, de acordo com a pesquisa “Raio-x das ações judiciais de trabalho escravo”. O estudo de 2020 considera as sentenças relacionadas ao tema de 2008 a 2019.
“É mais barato escravizar alguém do que perder uma mala. Comparativamente falando, a gente recebe um valor maior de indenização na Justiça do Consumidor se a gente perde um voo ou perde uma mala do que um trabalhador recebe quando ele é escravizado”, afirma Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais, que participou da pesquisa.
“Nós temos concluído que tanto as multas da fiscalização quanto as condenações na Justiça do Trabalho e os TACs (Termo de Ajustamento de Conduta) que firmamos são insuficientes para gerar mudança de postura entre os empregadores”, afirma o procurador.
*Nome fictício para preservar a identidade do trabalhador
Artigo original publicado em Repórter Brasil.