Com a aceitação da denúncia criminal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), aliados do ex-capitão turbinam agora a estratégia política para tentar emplacar no Congresso Nacional a proposta de anistia para os envolvidos no 8 de janeiro de 2023. O objetivo do grupo é, em primeiro plano, ampliar a pressão sobre o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), para tentar convencê-lo a pautar um pedido de urgência para a medida. Para alguns cientistas políticos ouvidos pelo Brasil de Fato, o futuro da pauta pode ter ficado mais dificultoso após a decisão do STF, mas ainda está cercado de interrogações e dependerá do andamento do jogo político.
A matéria é alvo de pelo menos dois projetos de lei (PL), sendo um em cada casa legislativa. No Senado, a investida dos aliados de Bolsonaro é em torno do PL 5064/2023, de autoria do senador e ex-vice-presidente da República Hamilton Mourão (Republicanos-RS). A proposta está com a tramitação parada na Comissão de Defesa da Democracia desde agosto do ano passado. Já na Câmara tramita o PL 2858/2022, do ex-deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO), que atuou como líder do último governo na Casa.
O texto esteve no foco da bancada bolsonarista em diversos momentos ao longo de 2024 na Comissão de Constituição & Justiça (CCJ), mas não chegou a ser apreciado por falta de acordo. Em outubro, o então presidente Arthur Lira (PP-AL) impôs um freio às investidas da extrema direita ao retirar a proposta do colegiado e anunciar a criação de uma comissão especial para avaliar o texto, iniciativa que serviu para conter a pauta e colocar o projeto em banho-maria. É nesse cenário que os aliados do ex-capitão buscam atuar agora para tentar levar uma das propostas adiante. Nos próximos dias, um requerimento de urgência para o PL 2858/202 deve ser apresentado pelo líder da oposição na Câmara, Zucco (PL-RS), e aliados, em uma tentativa de escalar o nível de tensão em torno da pauta.
Pressão
Ao se debruçarem sobre o cenário, analistas, em geral, têm sido cuidadosos com algumas previsões sobre o futuro da proposta. O julgamento da 1a Turma do STF nesta semana avaliou a aceitação da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-capitão e outros sete ex-integrantes do seu governo, não tratando, portanto, da análise de mérito do caso. Em geral, juristas acreditam que a análise do processo pode variar entre seis meses e dois anos. Para o cientista político Danilo Morais, doutorando da Universidade de Brasília (UnB), o compasso da disputa legislativa em torno do tema tende a seguir o ritmo dos acontecimentos no âmbito do Judiciário.

“Conforme se avizinha o desfecho condenatório e as próprias eleições [de 2026], a pressão para pautar a anistia tende a aumentar. Hugo Motta sabe que o projeto é socialmente divisivo e, nessa condição, pode rachar o próprio Congresso, paralisando o seu poder de agenda presidencial”, analisa. Em suas tratativas com a gestão petista, o presidente da Câmara tem dado demonstrações de aproximação em relação a Lula. Apesar dos recentes solavancos gerados pela disputa em torno das emendas parlamentares, o deputado tem feito acenos públicos de busca por diálogo na relação e, entre outras coisas, integra a comitiva que viajou com o petista para a Ásia nesta semana. O atual status da lida com o chefe do Executivo pode influenciar a postura do republicano diante do projeto de lei, projeta Morais.
“Eu creio que haja inclusive uma simpatia à medida por parte do presidente da Câmara, como ele já externou, mas ele certamente é mais cioso ainda de manter a sua própria posição de barganha com o governo, ao menos por ora. Segurar o projeto, nesse sentido, não é uma tarefa nem fácil nem difícil. É uma decisão do presidente da Câmara, que a exercerá segundo um cálculo de maximização de utilidade tática”, esquadrinha Morais.
Ao mencionar assuntos ligados ao universo temático do 8 de janeiro, como a ditadura militar, Motta já deu declarações que aborreceram ambos os lados da disputa. Quando tomou posse no cargo de presidente no início de fevereiro, o parlamentar citou Ulysses Guimarães e disse ter “ódio e nojo” ao regime dos generais. Poucos dias depois de assumir o posto, durante entrevista a uma rádio paraibana, ao mencionar a ofensiva contra os Poderes, disse que a conduta dos apoiadores de Bolsonaro foi “grave”, mas “não uma [tentativa] de golpe”. Também afirmou que não poderia assegurar se pautaria ou não o PL da anistia em plenário porque isso dependeria de diálogo com os líderes da Casa.

A postura escorregadia do presidente gera divergências de leitura entre os analistas ouvidos pela reportagem. “Uma hora ele cita o filme ‘Ainda estou aqui’, cita Ulysses Guimarães e, ao mesmo tempo, acena para a direita. Esse é o jogo, mas eu acho que votar o PL da anistia, para o Motta, seria comprar literalmente uma briga grande com o Supremo, com o próprio Executivo, com o sistema jurídico do país. Eu entendo que agora ele se fortalece para impedir essa reversão no Congresso. A decisão do Supremo o fortalece nesse sentido”, avalia o cientista político Francisco Fonseca, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
O pesquisador entende que os indícios e acusações levantados pela Polícia Federal (PF) e pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Bolsonaro e aliados robustecem a batalha de parlamentares do campo progressista contra o PL da anistia. “Observe que os advogados de defesa [dos réus] não negaram que houve tentativa de golpe e jogaram nas costas do Bolsonaro. Tentaram tirar a responsabilidade dos seus clientes e jogaram para o Bolsonaro. Este é um dado importante: eles não negaram a tentativa de golpe. Então, nem esse argumento os defensores da anistia têm mais. Diante disso, fica politicamente mais difícil sustentar a aprovação de uma anistia pros envolvidos no 8 de janeiro quando se sabe que o plano envolvia até uma ideia de assassinato de figuras da própria República”, emenda Fonseca.
O professor da FGV entende que alguns acontecimentos políticos recentes dão sinais de enfraquecimento de Jair Bolsonaro e podem afetar a musculatura da pauta pró-anistia. Ele cita como exemplo os acenos públicos feitos pelo deputado Otoni de Paula (MDB-RJ), recentemente derrotado na eleição para líder da Frente Parlamentar Evangélica na Câmara. O resultado veio após o emedebista ter sido alvo de críticas de correligionários do grupo por ter se aproximado de Lula.
“Aparentemente, tudo atualmente está entrando na matemática de 2026. Entre os bolsonaristas, há uma ala raiz, que é a da Damares, por exemplo, e uma ala mais pragmática. O que se ganha defendendo Bolsonaro? Ele está inelegível e com o prestígio em decadência, aproximando-se inclusive da prisão. Políticos como o Otoni de Paula, que é mais pragmático, sabem disso”, afirma Fonseca, acrescentando que aposta num freio à pauta da anistia a partir de agora.

Já para Danilo Morais outros elementos podem ajudar a balançar o caldeirão da disputa em prol dos bolsonaristas, caso os ventos soprem a favor do segmento. “Se o governo realmente se afundar em termos de popularidade e buscar gestos mais claramente populistas para se reabilitar com o público, tende a haver um tensionamento maior entre os Poderes Executivo e Legislativo, elevando as chances da anistia no Congresso. Por outro lado, se o governo seguir refém dos parlamentares, numa lógica mais acomodatória e conservadora, a tendência é o oposto, até que se avizinhe o ciclo eleitoral”.
Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, o cientista político Leonardo Barreto acredita que, neste momento, Motta tende a agir com cautela diante do cenário, buscando conduzir com perícia a relação com os diferentes lados do jogo. “Acho que ele deve preferir caminhar com cuidado e acho que será difícil para ele não abrir pelo menos uma comissão especial [para avaliar o PL]. Agora, o problema é que, se você inicia a análise desse projeto, fica difícil de controlá-lo. Mas um presidente também não toma essa decisão sozinho”, frisa, ao mencionar o jogo de costuras que caracteriza a relação entre o comando da Câmara e as lideranças partidárias.
Apelo
Uma pesquisa Datafolha divulgada em dezembro mostrou que 62% da população rejeitam a ideia de anistia para os participantes do 8 de janeiro, outros 33% se dizem favoráveis, 5% não sabem dizer e 1% se considera indiferente ao tema. A estatística se insere no mesmo patamar do percentual verificado em outro levantamento do instituto publicado em março de 2024, quando o segmento que discorda da pauta era de 63% das pessoas ouvidas. Na paralela, 31% manifestaram posição favorável à medida na época.

Enquetes virtuais realizadas pelas páginas da Câmara e do Senado a respeito das propostas que tratam do tema também ajudam a dar algum termômetro da disputa, embora ambas utilizem métodos distintos de coleta de opinião em relação ao Instituto e tenham resultados diferentes entre si. O site do Senado, por exemplo, recebeu 582.345 votos contrários ao PL de Hamilton Mourão, enquanto 558.355 internautas se disseram a favor do projeto. Os números foram contabilizados até a noite de sexta (28). Na Câmara, o PL 2858/2022 recebeu, desde novembro de 2022, um total de 200.248 votos de pessoas que disseram “discordar totalmente” da medida, o que corresponde a 91% das opiniões; e 19.106 que afirmaram “concordar totalmente”, contabilizando 9% dos votos. As demais posições não chegaram a pontuar na enquete.

Diante da conjuntura, a ala bolsonarista tem se articulado no sentido de tentar convencer diferentes partidos do campo da direita a apoiarem a proposta. Republicanos, Solidariedade, PP, PSDB, MDB, PSD, Podemos e União Brasil estão no roteiro do grupo. Em declaração dada no Senado esta semana, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), uma das fiéis escudeiras de Bolsonaro na Casa, disse que “o partido tem atuado com discrição” nas costuras. Questionado que tipo de contrapartida o segmento teria a oferecer no jogo político para as demais forças políticas do Congresso Nacional em troca de adesão à pauta, Leonardo Barreto afirma que o desenho atual do cenário ainda não mostra “ganhos claros” nesse sentido.
“Esse projeto vai ter força se ele tiver alguma tração na sociedade, se as pessoas começarem a se manifestar. Acho que vai depender da evolução disso. Se ganhar tração na sociedade, ganha tração no Congresso. Ainda não ganhou tração social, mas pode ganhar. Tenho visto aí que a opinião pública começou a se mobilizar, não no caso do Bolsonaro, mas no caso das outras pessoas [denunciadas pela PGR junto ao STF]. Acho que a porta está aberta para acontecer tudo.”
Os aliados do ex-presidente trabalham com a ideia de discutir o tema da anistia na próxima reunião de líderes na Câmara, na terça (1º). O grupo objetiva emplacar a votação do pedido de urgência e do mérito do texto a partir de 8 de abril. Membros do Partido Liberal (PL) ameaçam obstruir as votações da Casa caso a proposta não vá pra frente. Na paralela, o fim de semana terá protestos em diferentes pontos do país contra a pauta, no embalo do aniversário de 61 anos do golpe militar de 1964, relembrado a cada 1o de abril.
Para Danilo Morais, o peso político das propostas feitas pelos aliados do ex-presidente para tentar seduzir o Legislativo a votar a anistia dependerá sobremaneira do embalo das ruas, no curso do tempo e das novidades que surgirem da ação criminal que tramita no Supremo. “A ala bolsonarista, concretamente, tem pouco a oferecer aos demais partidos. Quem pode oferecer algo nesse sentido é a própria sociedade, num contexto de véspera de eleições. É a sociedade que está rachada. Esse processo do julgamento do golpe pode resultar em absolutamente tudo. Certo é que ele, seguramente, não produzirá pacificação social.”