Mais um 24 de março que o povo argentino foi às ruas para celebrar o Dia da Memória, Verdade e Justiça. A data marca o início da ditadura militar que assombrou o país entre 1976 e 1983. Um regime de terror que deixou mais de 30 mil mortos e desaparecidos.
É pela memória das vítimas e por justiça aos familiares que todo ano desde a redemocratização, na mesma data, milhões de pessoas saem às ruas do país para marchar. Neste ano, um elemento fundamental foi a unidade entre diversas organizações populares e defensoras dos direitos humanos, algo que não ocorria há muito tempo.
“Há um povo com memória aqui”, disse ao Brasil de Fato a deputada argentina Victoria Montenegro. Enquanto marchava pelas ruas de Buenos Aires, a parlamentar conversou com a nossa reportagem e disse que os argentinos estão dispostos “a defender os espaços, os processos judiciais, as organizações de direitos humanos, as mães, as avós, a busca pelos netos”.
Ela mesma, que hoje preside a Comissão de Direitos Humanos de Buenos Aires, é uma vítima da ditadura. Com apenas quinze dias de vida, teve seus pais sequestrados e desaparecidos pelo regime. Victoria foi roubada pelo então coronel Herman Tetzlaff, que a criou como “Maria Sol”.
Victoria só recuperou sua verdadeira identidade aos 24 anos de idade, com auxílio de grupos de buscas e organizações defensoras dos direitos humanos, como as Avós e as Mães da Praça de Maio.
A marcha deste ano, entretanto, teve um alvo bem definido: o governo de extrema direita de Javier Milei. O presidente ultraliberal que aplica uma política de choque na economia — que já deixou milhões de argentinos desempregados e abaixo da linha da pobreza — é, além de tudo, um negacionista.
Durante a campanha, ele ficou conhecido por questionar a veracidade do número de vítimas do regime, alegando que a cifra de 30 mil seria mentirosa. Além disso, dias antes da marcha do 24 de março deste ano, o governo divulgou um curta-metragem — uma espécie de “documentário conspiracionista” — apelando para a “verdadeira” história da ditadura, voltando a questionar a realidade.
Essas posturas foram duramente rechaçadas pela população nas ruas. “Milei, lixo, você é a ditadura”; “São 30 mil”; “Foi um genocídio”, foram algumas das principais palavras de ordem ouvidas pela reportagem do Brasil de Fato em Buenos Aires.
“É uma estratégia sistemática”, acusou Victoria Montenegro. A deputada e outros manifestantes também fizeram paralelos entre o governo Milei e a ditadura do ponto de vista repressivo, já que o ultraliberal não hesita em utilizar tropas de choque contra manifestantes que pedem melhores condições de vida. As vítimas mais recentes são os aposentados, que sentem na pele os ajustes econômicos do governo.

Um país onde mais da metade da população é pobre, com uma queda de 1,7% no PIB, o desemprego em alta vertiginosa pelas demissões em massa do governo, uma inflação controlada apenas pela recessão e repressão na demanda, um presidente negacionista que ousa questionar o terrorismo de Estado cometido pelos militares, enquanto hipoteca o país com mais uma dívida com o FMI e é investigado por apoiar um esquema ilegal de compra e venda de criptomoedas.
Esta é a Argentina de Javier Milei. Mas nas ruas, o povo promete resistência.
Em sua carta aberta à Junta Militar, escrita em 24 de março de 1977, o bravo jornalista e guerrilheiro argentino Rodolfo Walsh denunciou as práticas entreguistas e neoliberais do regime, que empobreceram o povo e endividaram o país. Relendo o texto para escrever este boletim, me comovo ao perceber a escandalosa semelhança com o atual período vivido pelos argentinos.
Walsh foi assassinado pela ditadura naquele mesmo ano, dias depois de redigir o documento que melhor sintetizou o espírito cruel do regime, mas suas palavras ainda ecoam firmes no tempo presente:
“Estas são as reflexões que, no primeiro aniversário de seu infausto governo, quis fazer chegar aos membros desta Junta, sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi há muito tempo de dar testemunho em momentos difíceis”.