Na última quinta-feira (27), crianças, jovens e anciãs da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) tiveram o dia atravessado por fumaça, clima de tensão e hostilidade. No início da manhã, a comunidade despertou em alerta com as queimadas dos monocultivos de acácia negra que fazem divisa com o território, localizado às margens da BR 386, à altura do município de Triunfo (RS).
As atuais queimadas tiveram início na terça-feira (25) e foram intensificadas na quinta-feira, momento em que foram denunciadas às autoridades competentes. A comunidade kilombola segue no aguardo de respostas e também de amparo das instituições para salvaguarda de seu território, assim como de seu direito de ser e existir.
“Estamos em perigo! Estão acontecendo muitas queimadas ao lado, rente ao nosso território. Os incêndios vêm da limpa que estão fazendo no campo de monocultura de acácias, que fica no terreno que faz fronteira ao nosso. Eles queimam os restos depois de tirar todas as árvores. Isso já aconteceu alguns anos atrás. A Morada da Paz já sofreu com incêndio por causa desse mesmo movimento”, relata jovem do território, que prefere não se identificar por medo de represálias. Além da apreensão com a situação, que ameaça suas vidas e território, as famílias são marcadas pelo trauma de reviver um incêndio, como o que ocorreu em 2004 devido a essa mesma prática no terreno ao lado.

A comunidade informou que a queimada está muito próxima das casas das famílias, assim como das plantações de alimento e da mata nativa. Na CoMPaz, os lares, a produção agroecológica de alimentos, a proteção do bioma Pampa e da Mata Atlântica coexistem e formam a comunidade junto às famílias, que praticam uma relação de cuidado, coabitar, ancestralidade e respeito a todos seres do território.
O fogo no monocultivo do terreno vizinho, com foco em vários pontos e labaredas de metros de altura, facilmente pode se alastrar e coloca toda essa multidiversidade viva e teia de relações cooperativas em ameaça. A queimada criminosa tem sido registrada e fere as formas de vida e o direito territorial da Comunidade Kilombola Morada da Paz, reconhecida pela Fundação Palmares.
De acordo com a CoMPaz, começaram a derrubar as árvores do monocultivo no final do ano passado, atividade que durou meses. “Agora derrubaram todas e fazem queimada com os restos. Juntam em pilhas imensas e começam a tacar fogo. Dá para ouvir o barulho do fogo de dentro de nossas casas. Sentimos um clima de tensão no nosso ar, que já está poluído, dá para sentir. Sentimos o impacto nele. E é uma faísca desse fogo que pega na nossa mata nativa e podemos viver um incêndio outra vez”, expuseram.
Conforme relato da comunidade kilombola, ao sentirem o cheiro e a mudança no ar com a fumaça de queimada, foram ao terreno ao lado averiguar o que estava ocorrendo e coletar informações. Segundo a CoMPaz, o clima da interação foi hostil e não houve respostas imediatas às dúvidas apresentadas pelo Kilombo. Foi informado que haveria explicação posterior sobre o ocorrido, mas até agora não houve pronunciamento neste sentido. Na sequência, a comunidade registrou ouvir também o som de tratores que chegavam no monocultivo, fato que amplificou o estado de alerta.
Na manhã do dia 27, a CoMPaz realizou denúncia na polícia ambiental de Montenegro (RS), que pela tarde da mesma data foi até o terreno onde acontecem as queimadas, confirmando a existência de crime ambiental. Como órgãos competentes em nível estadual foram acionadas a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) – Divisão de Fiscalização Ambiental, a Defensoria Pública do RS e o Ministério Público Estadual (MPE), para que tomem providências a fim de proteger a integridade física e emocional das famílias da comunidade. Assim como para assegurar que o território ancestral da Morada da Paz seja salvaguardado dos crimes e perigos que têm pairado sobre ele e a sua biodiversidade há dias.
Além do contato, a comunidade realizou envio de ofício para a Fepam, MPE, Defensoria Pública e para a prefeitura de Triunfo. Destes, até o presente momento, apenas a Fepam respondeu, sinalizando que a comunidade deveria contatar a Secretaria de Meio Ambiente de Triunfo. “Nada foi encaminhado, tampouco conclusivo ou de apoio. As outras instituições ainda não se manifestaram”, expôs a CoMPaz na sexta-feira (28). A comunidade relatou que foi feita reunião de encaminhamento com a Defensoria Pública, que confirmou repassar o ofício para a defensora, mas ainda não houve resposta à comunidade quanto ao tema.
A reportagem solicitou posicionamento da Defensoria Pública do RS e do Ministério Público Estadual (MPE) e deixa o espaço aberto para quando receber o retorno.
Posicionamento oficial da Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz) sobre o caso:
Viemos através deste, como Comunidade Kilombola reconhecida pela Fundação Palmares, denunciar a queimada intensa de galhos de acácia negra nos terrenos vizinhos à Comunidade Kilombola Morada da Paz, na BR 386 Km 410, Distrito de Vendinha, município de Triunfo, fronteira com Montenegro. A queimada vem acontecendo desde o dia 25.03.2025, muito próximo às nossas casas, plantações e à nossa mata nativa. Temos monitorado seu alcance diariamente e feito o registro dos avanços com fotos e vídeos.
Na manhã de 27.03.2025 acionamos a polícia ambiental que confirmou a existência de crime ambiental mas não nos deu certeza de que poderá deslocar-se até nosso Território. Acionamos, na mesma manhã, a Fepam e o MPE como órgãos competentes em nível estadual para que tomassem providências a fim de proteger a integridade física e emocional das famílias da nossa Comunidade e para que seja salvaguardado o Território ancestral da Morada da Paz dos crimes e perigos que tem pairado sobre ele e sua biodiversidade há vários dias.
Lembramos que, de acordo com o art. 38 da Lei Nº 12.651, de 25 de maio de 2012 é proibido o uso de fogo na vegetação, sendo autorizado em casos excepcionais:
Art. 38. É proibido o uso de fogo na vegetação, exceto nas seguintes situações:
I – em locais ou regiões cujas peculiaridades justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), para cada imóvel rural ou de forma regionalizada, que estabelecerá os critérios de monitoramento e controle;
II – emprego da queima controlada em Unidades de Conservação, em conformidade com o respectivo plano de manejo e mediante prévia aprovação do órgão gestor da Unidade de Conservação, visando ao manejo conservacionista da vegetação nativa, cujas características ecológicas estejam associadas evolutivamente à ocorrência do fogo;
III – atividades de pesquisa científica vinculada a projeto de pesquisa devidamente aprovado pelos órgãos competentes e realizada por instituição de pesquisa reconhecida, mediante prévia aprovação do órgão ambiental competente do Sisnama.
§ 1º Na situação prevista no inciso I, o órgão estadual ambiental competente do Sisnama exigirá que os estudos demandados para o licenciamento da atividade rural contenham planejamento específico sobre o emprego do fogo e o controle dos incêndios.
§ 2º Excetuam-se da proibição constante no caput as práticas de prevenção e combate aos incêndios e as de agricultura de subsistência exercidas pelas populações tradicionais e indígenas.
§ 3º Na apuração da responsabilidade pelo uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares, a autoridade competente para fiscalização e autuação deverá comprovar o nexo de causalidade entre a ação do proprietário ou qualquer preposto e o dano efetivamente causado.
§ 4º É necessário o estabelecimento de nexo causal na verificação das responsabilidades por infração pelo uso irregular do fogo em terras públicas ou particulares.
Lembramos que muitos produtores da região utilizam-se das queimadas com a justificativa de estarem fazendo o controle do cascudo-serrador, quando, em realidade, o fazem para queimar a vegetação e ” facilitar” o trabalho do replantio.
Ainda assim, no caso de manejo sanitário, é necessário laudo profissional habilitado e autorização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em nosso caso, da Cidade de Triunfo.
Aos órgãos competentes cabe verificar se existe tal licença; em havendo, acessá-la e averiguar se está tecnicamente fundamentada em laudo, bem como quais os condicionantes dessa licença. Lembramos que mesmo com a licença os condicionantes devem considerar a comunidade limítrofe, que, nesse caso, é uma comunidade Kilombola reconhecida, com seus modos de ser e viver anunciados em seu Protocolo de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa-Fé.
Por tudo isso, reivindicamos socorro, respeito e proteção dos órgãos competentes.
Atenciosamente, Comunidade Kilombola Morada da Paz – Território de Mãe Preta (CoMPaz).
