No Brasil, o processo de escravidão vitimou cerca de 5 milhões de pessoas negras e indígenas, produzindo marcas vivenciadas até os dias atuais. O contraponto ao genocídio e violência sistêmica se deu a partir da constituição dos quilombos, que representam a capacidade de mobilização e organização comunitária negra para a luta, frente a opressão historicamente sofrida.
As comunidades quilombolas não só marcaram o processo de resistência frente a colonização e escravidão no Brasil e na América Latina, como atravessaram os séculos chegando aos dias atuais representando cerca de um milhão e trezentos mil (0,65% da população total do Brasil), presentes em cerca de sete mil comunidades, em mil e setecentos municípios de todas as regiões e biomas do país, segundo dados do Censo Quilombola do IBGE (2022).
Em pesquisa recente, o MapBiomas (2023) revelou que os territórios quilombolas são aqueles que mais mantiveram a sua vegetação nativa em 38 anos, com 95% dos territórios preservados. Contudo, segundo dados do ISA e CONAQ (2024), atualmente 98% dos quilombos estão de alguma forma ameaçados por requerimentos minerários, especulação imobiliária ou conflitos fundiários.
Para além de um preceito constitucional, preservar e titular os territórios quilombolas do Brasil representa uma dívida que o Estado brasileiro tem para com esses povos que, em busca de reparação histórica, lutam e resistem para preservarem as heranças ancestrais presentes em suas expressões culturais e ocupação coletivas da terra. Se mantido o ritmo atual de titulação dos quilombos, serão necessários cerca de dois mil e setecentos para que todos os territórios sejam contemplados.
As lutas em torno da busca pela garantia dos direitos sociais quilombolas, tal como a luta pelo direito à saúde, devem caminhar de forma paralela com a luta pela preservação e garantia do acesso à terra. Segundo o Provérbio Bantu “Tirar a terra da comunidade é carregar um jugo mortal – Wateka N’toto wa kânda neti vangu”. Assim, para os quilombolas, saúde significa mais do que a ausência de doenças. Na verdade, saúde quilombola significa a garantia do acesso à terra e a preservação da sua herança ancestral etnocultural.
O Sistema Único de Saúde (SUS), bem como as mobilizações em torno da Reforma Sanitária Brasileira, parecem se distanciar em certa medida dos anseios e bandeiras de luta dessa parcela da população, se concentrando, na maioria das vezes, em dilemas vivenciados em grandes centros urbanos sem muitas vezes realizar uma análise que considere um recorte histórico, territorial e étnico-racial para as iniquidades em saúde. Não obstante, apesar dos séculos de história dos quilombos no Brasil, o Ministério da Saúde anunciou que será criada apenas em 2025, tardiamente, a primeira Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (PNASQ/SUS).
O projeto político dos quilombolas para a saúde do Brasil propõe o aquilombamento da saúde e a contracolonização das lutas, que devem se expressar na construção de um SUS que adentre os territórios tradicionais indígenas e quilombolas, de forma a não reproduzir violências e colonizações de outrora. Sob esta perspectiva, é fundamental compreender que a saúde quilombola deve abranger ao menos duas dimensões, a primeira é a das medicinas tradicionais e ancestrais quilombolas presentes nos territórios há séculos, a segunda dimensão é a institucional, presente nas políticas de saúde do SUS. Em nenhum dos casos, uma deve se sobrepor à outra. Elas devem confluir em harmonia, para que assim consigam produzir um cuidado sinérgico.
É urgente reconhecer que os saberes e práticas das medicinas quilombolas são as tecnologias sociais responsáveis pela sobrevivência desta população em meio a um contexto de extrema violência, oriunda das experiências de escravização e colonização. Em cerca de 500 anos, os territórios quilombolas só acessaram cuidado em saúde a partir destes saberes e práticas ancestrais, que historicamente foram produzidos e reproduzidos de forma comunitária e coletiva, afinal “A comunidade são os mortos e os vivos – Kânda i bafwa ye bamôyo”, Provérbio Bantu.
Valorizar a memória e as cosmovisões dos mestres e mestras das medicinas quilombolas, presentes no uso de lamberes, benzimentos, xaropes, infusões, garrafadas, dentre outros métodos de cuidado, significa uma oportunidade ímpar para o SUS produzir um cuidado equânime e universal, de modo a fortalecer as identidades etnoculturais quilombolas, em busca da construção de territórios livres, saudáveis e sustentáveis.
Em tempos de crise climática – crise derradeira do capital – as experiências produzidas em territórios tradicionais, representam a esperança de um futuro possível para a humanidade. Esse futuro deve se ancorar na vida comunitária e coletiva, sabendo que todas as vidas importam, independentemente das diferenças que os afastam.
As reflexões presentes nesse artigo são o resultado da dissertação de mestrado intitulada “Aquilombar a saúde, contracolonizar as lutas: o projeto político do movimento quilombola para a saúde no Brasil”.
*Mateus Brito (Membro do Coletivo Nacional de Saúde Quilombola da CONAQ, Mestre e Doutorando em Saúde Coletiva pelo ISC/UFBA), Quilombola da Lagoa de Maria Clemência/BA.