Acompanhe a série de artigos do advogado socioambiental Mauri Cruz, uma parceria do Brasil de Fato RS e o Instituto de Direitos Humanos – IDhES, para debater alternativas à crise da mobilidade urbana no Brasil.
O escocês Adam Smith (1723-1790) defendia a tese de que a sociedade humana se move pelo egoísmo, onde cada indivíduo busca de todas as formas atender individualmente as suas necessidades e, por isso, o livre mercado seria o modelo natural para promover a prosperidade das nações**. Foi ele quem primeiro atribuiu à “mão invisível” do mercado, a capacidade de promover o desenvolvimento econômico e quem primeiro criticou a interferência do estado na economia. O neoliberalismo nos dias de hoje nada mais é que as teorias de Adam Smith elevadas à décima potência. Tem como princípio ético o egoísmo e, por isso, defende uma racionalidade onde a concorrência entre as pessoas, entre as empresas e as nações seria a mola do desenvolvimento. Alimenta-se do medo. Medo do desemprego, da falta de renda, de não se ter acesso a saúde, medo de falência, medo do colapso climático, medo da guerra. Para o neoliberalismo, qualquer interferência estatal, na promoção de políticas públicas e sociais, impacta negativamente para um ambiente de concorrência, de meritocracia e de eficiência. As políticas sociais são vistas e tratadas como medidas negativas para o desenvolvimento econômico e social.
O alemão, Karl Marx (1818-1883), décadas depois, refutou as teses de Adam Smith demonstrando que sua teoria econômica tinha como base apenas o comércio de bens e serviços entre pessoas que detinham os meios de produção e realizavam trocas de seus produtos em igualdade de condições, não por motivos egoístas, mas por interesses comuns. Ao analisar o início da sociedade industrial na Inglaterra, Marx demonstra*** que, no capitalismo, a propriedade dos meios de produção não é socialmente distribuída, pelo contrário, está concentrada nas mãos dos capitalistas e que, o crescimento econômico é sustentado pelo processo produtivo e não pela comercialização. O lucro é resultado da “mais-valia”, valor excedente do trabalho que é apropriado injustamente pelos donos das fábricas, uma verdadeira máquina de produção de desigualdades, o que leva ao enriquecimento dos capitalistas e ao empobrecimento das nações. A teoria econômica marxista, demonstra de forma cientifica que, no capitalismo, toda produção de bens e serviços é uma produção coletiva, mas que, a apropriação do excedente é privada, na forma de lucro, por uma minoria.

Algumas décadas depois, o britânico John Keynes (1983-1946), também elaborou uma crítica fundamentada contra a ideia de livre mercado, demonstrando que o estado, é sim, parte do sistema econômico****, quando regula seu funcionamento e garante a circulação da moeda. Segundo Keynes, nas economias modernas, é o volume de consumo que garante o desenvolvimento econômico. Por isso, o papel dos estados é essencial na organização da macroeconomia e no domínio de seus fundamentos.
As saídas para a crise do transporte coletivo no Brasil tem tudo a ver com o debate entre as teorias de Adam Smith, Karl Marx e John Keynes. Segundo sua teoria, os keynesianos defendem a manutenção do sistema atual, onde a atividade de exploração dos serviços de transporte é concedida ao setor privado, desde que o estado mantenha o controle e a regulação de seu funcionamento. É um capitalismo com mediação estatal onde, no entanto, a lógica é viabilizar o mercado privado, com algum controle público. Já para os defensores do neoliberalismo, a saída é a privatização e a desregulamentação dos serviços, com a retirada total do estado como responsável pela gestão destes serviços. Que as leis da oferta e da procura resolvam os problemas, dizem eles.
Creio que tanto uma teoria como a outra, reforçam a concepção de que o transporte coletivo é mercadoria e que, a sua organização e funcionamento, devem ser orientados por essa premissa. Deve ser oferecido somente nos locais e horários em que haja demanda com capacidade de pagar por seu custo. A lógica é meramente econômica. Lógica que não atende as necessidades de toda sociedade.
E o que diriam os marxistas?
Marx criticou a mercantilização da vida social sob a lógica capitalista. Para o pensamento marxista, a crise dos sistemas de transporte coletivo decorre da falta de investimentos, de qualificação dos serviços e de modernização da gestão pública, uma manifestação inequívoca do domínio do capital, onde o investimento privado é direcionado aos setores que assegurem lucros a curto prazo, ao invés de serem aplicados na construção de medidas de bem-estar geral da população.
Na visão marxista, a infraestrutura e os serviços urbanos, essenciais para a manutenção da vida, devem ser considerados um bem comum, uma extensão das necessidades coletivas da população. Neste sentido, o transporte coletivo, em vez de ser um meio para maximizar lucros, deveria ser organizado e gerido pelo estado, de maneira a garantir o direito de ir e vir da população, especialmente, dos setores mais vulneráveis.
O papel dos movimentos sociais: não há mudanças sem pressão popular
Como é possível depreender do debate acima, o enfrentamento da crise do transporte coletivo encerra um conflito de interesses entre as necessidades urgentes da maioria da população e a ganância de uma minoria que detém o poder econômico nas cidades. E este poder está na ofensiva. Para alterar esta correlação de forças, os movimentos sociais são fundamentais na organização e mobilização da população.
Aliás, se ainda estive entre nós, certamente Marx enfatizaria a importância da organização e da luta coletiva dos trabalhadores e da população em geral, como meio para garantir transporte coletivo de qualidade e tarifas justas, e como forma de garantir melhores condições de vida. Ele veria a luta por transporte coletivo, não apenas como uma demanda social, mas como parte integral da luta por direitos e dignidade, de superação do capitalismo e em prol de uma sociedade do bem-estar para todos os seres humanos.
Por isso, os movimentos sociais cumprem um papel essencial na pressão das autoridades e gestores públicos, exigindo a implementação de políticas que visem a melhoria do sistema. Além de atos de protestos, passeatas e manifestações públicas, a articulação de espaços de diálogo com outros movimentos sociais, com as universidades, com os gestores públicos e até mesmo com alguns prestadores de serviço, é uma medida importante para mudar a lógica de organização centrada no lucro e recuperar o sentido de bem comum deste serviço. Essa articulação pode resultar em ações coordenadas para a promoção da qualidade do transporte, a luta por tarifas justas ou mesmo para a conquista da tarifa zero. Em um contexto em que as cidades enfrentam desafios crescentes em relação à mobilidade urbana, a mobilização social se torna uma ferramenta indispensável para a construção de um sistema de transporte público que atenda às necessidades de todos.
Desafios dos novos prefeitos e prefeitas: não há mudança sem Estado
Para uma mudança real, o papel dos novos prefeitos e prefeitas eleitos/as exige uma abordagem proativa, colaborativa e inovadora. O sucesso na superação dessa crise depende, em grande parte, da sensibilidade com que estes novos gestores irão acolher as demandas sociais ligadas ao tema da mobilidade, compreender sua relevância no atual quadro da crise urbana e priorizar a sua melhoria como ação estruturante nos seus planos de governo. Neste cenário de crise, os órgãos públicos responsáveis pela gestão do transporte coletivo urbano desempenham um papel fundamental e multifacetado. É preciso fortalecer sua capacidade de se adaptar às novas realidades, ampliar sua capacidade técnica e operacional e desenvolver uma metodologia participativa capaz de trabalhar em conjunto com a sociedade e com os demais parceiros envolvidos. A eficácia de suas ações pode determinar a qualidade do transporte coletivo e, consequentemente, a mobilidade urbana e a qualidade de vida dos cidadãos.
O papel das empresas operadoras: não há mudança sem empresas privadas com compromisso social
É necessário reconhecer que, o modelo de concessão, há muito, não tem entregado nenhuma qualificação dos serviços e nem garantido a viabilidade e sustentabilidade econômica do próprio sistema. As empresas operadoras apenas se qualificaram na exigência de mais e mais tarifa, deixando de buscar a qualificação e a excelência na prestação dos serviços. É preciso uma ruptura.
Parte desta ruptura é a substituição das concessões pela contratação de serviços. Esta transição demanda uma análise cuidadosa das especificidades e da estrutura do transporte coletivo de cada cidade. É fundamental considerar, não apenas os aspectos financeiros, mas também a experiência do usuário, a sustentabilidade econômica e a capacidade de controle por parte do poder público. No entanto, a contratação dos serviços traz enormes vantagens, como permitir uma maior flexibilidade na adaptação às necessidades dos usuários e uma maior capacidade de responder de forma ágil às mudanças na demanda.
Com contratos baseados em indicadores de desempenho, os prestadores de serviços são convocados a se concentrarem na qualidade do serviço, no cumprimento de metas claras a serem alcançadas e, por isso, remuneradas. Há também uma maior facilidade na implementação de inovações tecnológicas, promovendo melhorias na eficiência dos serviços prestados, com a possibilidade de flexibilização da frota com veículos mais modernos, a qualificação dos sistemas de bilhetagem, o rastreamento em tempo real dos veículos, certamente resulta na redução de custos operacionais e na melhoria dos serviços. Um modelo de contratação de serviços bem estruturado, com contratos de vigência não maiores que 60 (sessenta meses), irá aumentar a transparência nas operações e a responsabilidade dos prestadores em relação ao cumprimento das normas e dos padrões de serviço.
Do ponto de vista do processo de contratação, é importante ressaltar que este tipo de contratação não é estranha para a Administração Pública. Diferente das concessões que, não raro, empacam nos tribunais de contas ou em longos processos judiciais, a contratação de prestação de serviços é algo bastante comum na gestão pública municipal. Um exemplo é a contratação de empresa para a coleta de lixo que tem características semelhantes ao transporte coletivo, como frota, consumo de óleo diesel, quilometragem percorrida, roteiros pré-definidos, capilaridade de atendimento nos bairros e controle do volume transportado.
Evidentemente que há riscos. Sem um órgão gestor forte técnica e politicamente, as medidas mudanças podem não surtir os efeitos esperados. No entanto, se a Administração Pública tem firmeza no foco de que a mudança visa a garantia de um transporte coletivo eficiente, acessível e de qualidade, certamente os riscos são menores do que a continuidade do modelo atual.
Conclusão
A ideia deste quinto capítulo foi de apresentar propostas para uma transição de modelo. Inevitável retomar o debate inicial sobre os paradigmas. Isso porque, sem uma mudança radical, todas as propostas discutidas neste e nos demais artigos, são inaplicáveis. A mudança de mentalidade é o passo inicial.
A partir dele, acredito ter apresentado caminhos para que os movimentos sociais, os novos prefeitos e prefeitas e, até mesmo os operadores privados, se enxerguem como parte da mudança que é urgente e necessária. Ainda mais com o lançado pelo Governo Lula III do PAC da Mobilidade, que injetará mais de 54 bilhões de reais nos sistemas de mobilidade. Isso tudo demonstra que vivemos num momento ímpar para pôr fim a era do neoliberalismo que só visa o lucro e começar a repensar e reconstruir nossas cidades e sua relação com as pessoas.
Como demonstrado nesta série, os desafios são enormes, mas somos capazes de superá-los, se houver inovação tecnológica e institucional, articulação de interesses comuns e compromisso com o interesse público. Apresentei algumas alternativas. Espero ter contribuído, pelo menos, para a renovação de nossas utopias. Axé.
*Mauri Cruz é advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de direito a cidade e mobilidade urbana, sócio-diretor da Usideias, Diretor Executivo do Instituto de Direitos Humanos – IDhES e membros do CAMP – Escola do Bem Viver.
** SMITH, Adam, A RIQUEZA DAS NAÇÕES, Casa Editorial Willian Strahan, Londres, 1776
***MARX, Karl, O CAPITAL, Hamburgo, 1867[
**** KEYNES, John, TEORIA GERAL DO EMPREGO, DO JURO E DA MOEDA, Ed. Palgrave Macmillan, Londres, 1936
****Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
