O 1º de abril de 1964 marca a consolidação de um projeto burguês de dominação no Brasil.
O golpe não foi um desvio da democracia, mas a expressão da luta de classes em um país dependente do imperialismo. A aliança entre militares, burguesia industrial, latifundiários e o grande capital estrangeiro garantiu um regime de violência sistemática contra os trabalhadores e suas organizações.
Como destaca Florestan Fernandes em A Revolução Burguesa no Brasil (1975), a burguesia brasileira nunca promoveu uma revolução democrático-burguesa. Sua hegemonia se deu pela dependência externa e pelo aprofundamento da exploração do trabalho. No Brasil, a modernização do capital não ampliou direitos, mas reforçou desigualdades.
A ditadura não foi apenas um regime repressivo, mas um instrumento de reorganização da acumulação capitalista. O chamado “milagre econômico” se baseou no arrocho salarial e na repressão aos movimentos sociais. Octávio Ianni, em A Ditadura do Grande Capital (1981), analisa como o Estado viabilizou o capital, enquanto a classe trabalhadora foi submetida a um regime de terror.
O golpe de 1964, portanto, não pode ser visto isoladamente. Como explica José Paulo Netto em Ditadura e Serviço Social (2019), ele faz parte da lógica do capitalismo, que recorre ao autoritarismo quando sua dominação é ameaçada. Hoje, a extrema direita busca reescrever essa história, financiando o revisionismo que trata o golpe como “revolução” e a repressão como “necessária”.
A violência estatal atingiu não apenas aqueles que pegaram em armas, mas qualquer um que representasse uma ameaça ao projeto burguês. A censura e a perseguição política não eram “excessos”, mas partes estruturais do modelo econômico. Mulheres militantes foram presas, torturadas e violentadas nos porões da ditadura, submetidas a formas específicas de violência, como o estupro e a tortura psicológica. O machismo estrutural se manifestou na repressão, tratando a mulher como um alvo preferencial.
Negros e indígenas também foram alvos diretos do regime. A ditadura aprofundou o racismo estrutural, criminalizando expressões da cultura negra e indígena. Povos originários sofreram remoções forçadas de seus territórios para dar lugar a grandes obras, como a construção de hidrelétricas e rodovias, sob o discurso do “desenvolvimento nacional”. Muitas comunidades indígenas foram dizimadas por doenças, trabalhos forçados e assassinatos.
A população LGBTQIA+ foi sistematicamente perseguida. A repressão policial se intensificou contra travestis, gays e lésbicas, que eram presos arbitrariamente e submetidos a torturas em delegacias. A moralidade imposta pelo regime visava exterminar qualquer forma de identidade ou comportamento que fugisse da heteronormatividade. O Estado militar se aliou às elites religiosas e conservadoras para aprofundar o controle sobre os corpos e as sexualidades dissidentes.
Mesmo após o fim da ditadura, suas bases nunca foram desmontadas. Como destaca Netto (2019), a transição para a democracia não foi uma ruptura, mas uma acomodação da dominação burguesa. A Lei da Anistia de 1979 garantiu a impunidade dos torturadores, enquanto as reformas neoliberais da década de 1990 aprofundaram o desmonte dos direitos sociais.
A Comissão Nacional da Verdade (2011-2014) revelou centenas de crimes cometidos pelo Estado, mas nenhum agente da repressão foi responsabilizado. O aparato repressivo segue intacto, sendo acionado sempre que a classe dominante se sente ameaçada.
A extrema direita, apoiada pelo grande capital, vem intensificando sua ofensiva contra a memória da classe trabalhadora. A militarização da política e a criminalização dos movimentos sociais são expressões contemporâneas da luta de classes.
A ascensão do neoliberalismo precarizou ainda mais a vida dos trabalhadores, criando o terreno ideal para o avanço do autoritarismo. Como alertava Florestan Fernandes em Poder e Contra-Poder na América Latina (1981), o capitalismo dependente tende a recorrer a formas violentas de dominação. O neoliberalismo, enquanto concentra riqueza, destrói resistências populares.
O discurso de “guerra cultural” tem o mesmo objetivo da censura da ditadura: impedir que o povo se organize. Por isso, a extrema direita ataca professores, indígenas, mulheres, negros e a população LGBTQIA+. O que está em jogo não é apenas a memória do passado, mas a construção de um futuro sem exploração e opressão.
O 1º de abril não pode ser apenas uma data de reflexão, mas um marco da luta de classes. A memória histórica deve ser uma arma contra a dominação burguesa. Como defendia Florestan Fernandes (1975), romper o ciclo de exploração exige organização popular e um projeto revolucionário.
O direito à verdade não é um luxo acadêmico, mas uma necessidade concreta da luta de classes. Sem memória, não há consciência de classe; sem consciência, não há organização e resistência.
A ditadura empresarial-militar não foi um episódio isolado, mas parte de um padrão de dominação. Enquanto o capitalismo existir, a repressão será sempre uma ameaça e a luta pela emancipação, uma necessidade. Sem memória, não há justiça. Sem justiça, o passado se repete.
Por isso, defendemos: sem anistia para os golpistas do 1º de janeiro! A tentativa de subverter a democracia em nome dos mesmos interesses que sustentaram a ditadura não pode ser tolerada. O combate ao autoritarismo e à extrema direita deve ser firme e intransigente, pois o que está em jogo é a própria sobrevivência da classe trabalhadora e dos setores populares.
*Elaene Alves é professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.