Completam-se, nesta semana, 61 anos do golpe que resultou em 21 anos de ditadura militar no Brasil. Especialistas de Minas Gerais avaliam que 2025 tem sido um ano marcado por um novo fôlego na luta por memória, verdade e justiça. Ainda assim, eles destacam a importância da pressão popular.
“O momento em que nós vivemos abre algumas janelas de oportunidade, mas ainda é muito complexo e desfavorável para as forças democráticas”, afirma Robson Sávio, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos e ex-coordenador da Comissão da Verdade no estado.
Combate à impunidade
Recentemente, algumas decisões que ajudaram a “colocar panos quentes” nos crimes cometidos ao longo do regime militar têm sido reavaliadas. Para Sávio, uma das ações fundamentais é a revisão da Lei da Anistia, como forma de construir uma memória coletiva que sustente e legitime a democracia brasileira.
“No Brasil, a Lei de Anistia impediu a assunção de uma justiça de transição. As comissões da verdade, embora importantes para ajudar a desvelar um pouco do que aconteceu naquele período, não foram suficientes. Há ainda muito em que se avançar nesse sentido”, destaca o professor.
Diante desse cenário, as reaberturas das investigações dos casos de Juscelino Kubitschek e Rubens Paiva, a possibilidade de revisão da Lei de Anistia para crimes permanentes e a retificação em mais de 400 certidões de óbito de mortos e desaparecidos políticos são alguns dos exemplos que merecem destaque.
Além disso, a recente indicação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de outros sete integrantes do primeiro escalão de seu governo como réus por tentativa de golpe de Estado também é um passo importante, como destaca Biel Rocha, atual secretário de Direitos Humanos de Juiz de Fora, município da zona da mata mineira de onde partiram as tropas golpistas em 1964.
“A reabertura desses casos simboliza a resistência à impunidade e a pressão por respostas do Estado. Além disso, pela primeira vez, um ex-presidente é investigado por tentativa de golpe, o que pode criar um precedente contra a impunidade de elites políticas, mostrando que ataques à democracia terão consequências”, enfatiza.
O impacto do filme Ainda Estou Aqui
O cientista político e presidente do Instituto Cultiva Rudá Ricci acredita que a comoção provocada pelo filme Ainda Estou Aqui, premiado na última edição do Oscar, impacta no fortalecimento da afirmação dos valores democráticos.
“Essa retomada de um acerto de contas com a história do Brasil e com a luta efetiva pela afirmação da democracia sobre o autoritarismo, neste momento, se dá em função do impacto da comoção com o filme Ainda Estou Aqui”, comenta.
Especialistas apontam ainda que a produção cinematográfica reacendeu a discussão sobre a ditadura, ao retratar o impacto do autoritarismo, da arbitrariedade e da violência em uma família comum, a de Rubens Paiva.
“O filme amplia a possibilidade do debate e o traz para vários públicos, principalmente para a juventude que não conviveu com a ditadura”, avalia Robson Sávio.
Com o potencial de se tornar uma importante ferramenta pedagógica, o filme de Walter Salles aponta ainda para a lacuna de construção de uma cultura democrática. De acordo com Ricci, avançar nesse aspecto pressupõe “um grande processo educacional, começando pelo filme”. O cientista político também destaca a necessidade de converter a comoção em organização social.
Por outro lado, para Biel Rocha, o sucesso alcançado pelo filme indica que há disposição da sociedade em refletir sobre o passado, “especialmente em um contexto de ascensão de discursos autoritários no Brasil.”
Impactos da Lei de Anistia
Com a recente ascensão da extrema direita no Brasil, intensificou-se também as críticas à Lei de Anistia e ao “apagamento” da gravidade dos crimes cometidos durante o regime militar.
Robson Sávio explica que a lei de 1979 enterrou o debate público sobre o tema, “com a justificativa de que precisávamos fazer uma espécie de pacificação nacional.”
No Brasil, a lei impediu a assunção de uma justiça de transição, como a instalada nos demais países da América Latina que enfrentaram processos semelhantes.
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Com a mesma justificativa de pacificação nacional, os envolvidos na tentativa de golpe de Estado de 2022 também reivindicam a possibilidade de uma nova anistia. Sávio defende que as investigações do STF cumprem papel semelhante às de uma justiça de transição pós-golpe.
“O que o STF está tentando fazer com os golpistas é um processo de justiça de transição, uma punição exemplar para quem atenta contra a democracia e os direitos humanos. Representa a possibilidade de um país livre, autônomo e soberano, ao punir, de forma exemplar, todos aqueles que planejaram, financiaram, executaram e propagaram o golpe. Isso pode ser muito importante para as gerações futuras e uma virada de chave no Brasil”, defende.
Biel Rocha defende que a busca por memória, verdade e justiça, em relação aos crimes da ditadura militar, é fundamental para a consolidação da democracia e o enfrentamento das violações de direitos humanos.
“Queremos a justiça histórica, reconhecendo oficialmente as violências sofridas pelas vítimas e por suas famílias, reparando simbolicamente e materialmente seus direitos”, ressalta.
Caso a caso
Em fevereiro deste ano, o STF definiu a repercussão geral da análise de aplicação da Lei da Anistia nos crimes de ocultação de cadáver cometidos durante a ditadura militar. Em audiência no STF, o ministro e relator da matéria Flávio Dino explicou que esse crime não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico.
“A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem o seu direito ao luto, configura a prática do crime, bem como situação de flagrante”, ressaltou.
Recentemente, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) reabriu a investigação sobre o assassinato do ex-deputado federal Rubens Paiva. Preso, torturado e morto por agentes militares, Paiva teve a morte confirmada em decorrência dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Os elementos que forem coletados no novo processo serão encaminhados para o Ministério Público Federal e para as instâncias oficiais de apuração.
Embora tenha recebido a confirmação da morte, a família de Rubens Paiva, até então, não tinha o reconhecimento oficial da violência cometida pelo Estado. Assim como eles, pelo menos outras 413 famílias aguardam retificação na certidão de óbito de desaparecidos e mortos políticos, segundo informações divulgadas pela Agência Brasil.
Em janeiro de 2025, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) solicitou a alteração nos documentos, de forma que as causas das mortes passem a constar como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Por fim, também no início deste ano, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu reabrir as investigações sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, morto em decorrência de um acidente de automóvel na Via Dutra, em 1976.
O caso é envolto em desconfiança, já que, na época, JK era crítico ao regime e surgiram versões conflitantes sobre o acidente. Um laudo recente, realizado pelo engenheiro e perito Sérgio Ejzenberg a pedido do Ministério Público Federal, contradiz a versão oficial, ao indicar que o veículo não colidiu com nenhum ônibus. O documento conclui que não é possível afirmar ou descartar a possibilidade de atentado.
“A reabertura desses casos simboliza a resistência à impunidade e a pressão por respostas do Estado. A retificação de certidões de óbito é um ato de reconhecimento da responsabilidade estatal, essencial para a reparação”, avalia Biel Rocha.
Juiz de fora
Em Minas Gerais, na manhã de segunda-feira (31), a Prefeitura de Juiz de Fora homenageou quatro vereadores que tiveram seus mandatos cassados pela ditadura militar. Foi do município da zona da mata mineira que, em 1964, sob comando do general Olympio Mourão Filho, as tropas saíram para instaurar o golpe militar, derrubando o governo do até então presidente João Goulart.
A iniciativa faz parte do projeto Pilares da Democracia, que, ao longo da gestão, reverencia nomes que se destacaram na luta pelos direitos humanos. A ação inaugurou um painel em homenagem aos vereadores, feito em graffiti, pelo artista Dorin.
Também na segunda-feira, foi retirado da entrada da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha, em Juiz de Fora, o monumento nomeado de “Brigada 31 de março”, que faz referência à data do golpe.