No momento em que o golpe militar de 1964 completa 61 anos, o Brasil também celebra um momento histórico, com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em tornar réu o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete ex-integrantes de seu governo pela tentativa de destituição do Estado democrático de direito, em 2023.
Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), que encaminhou a denúncia, o ex-mandatário planejou e exerceu um domínio direto sobre os atos de uma organização criminosa que buscava executar um golpe de Estado no Brasil em 2023.
Ao Brasil de Fato MG, especialistas reforçam que o momento atual é um marco na história do país, cuja trajetória se entrelaça fortemente às ditaduras. É o que destaca Aline Atassio, cientista política e professora na Universidade Estadual de Santa Cruz.
“Todo mundo acompanhou esse julgamento com uma expectativa muito grande, especialmente porque para grande parte da população brasileira tem a necessidade de um fechamento de um período ditatorial, que vem não só da ditadura de 1964. Quando a gente fala de militar no Brasil, a gente está falando da história do Brasil”, explica.
Para ela, a decisão do STF coloca um momento de reflexão: pela primeira vez pode ocorrer a punição de militares envolvidos em tentativa de golpe.
“A gente ouve muito falar de revanchismo, essa é uma prática dentro da caserna, mas aqui a gente está falando de justiça, que é muito diferente de revanchismo. Porque eles estão tendo todo o devido processo legal cumprido, algo que não aconteceu, por exemplo, com o presidente Lula”, sinaliza.
Avanços
Segundo a professora de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart, a decisão do Supremo deixa claro que houve uma mudança no padrão das instituições, que em outros momentos foram negligentes tanto com Bolsonaro quanto com grupos nostálgicos da ditadura.
“Não foi só negligente no processo de instauração do regime democrático, ou seja, na transição. E é claro que a transição pactuada é a causa da manutenção desses bolsões de nostalgia da ditadura militar, ativos com cargos dentro do Exército e na sociedade civil”, lembra.
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“Não é que se a justiça de transição tivesse sido diferente e esses crimes da ditadura militar tivessem sido punidos, julgados, você impossibilitaria tentativas de golpe futuras. Mas o que aconteceu foi que essas pessoas que participaram ativamente da ditadura militar se mantiveram nos seus postos, ganhando salários e reverberando, mantendo células de reverberação de defesa de valores autocráticos, da ditadura como regime de governo”, continua.
Para ela, se houver a punição de Bolsonaro e dos ex-integrantes do seu governo, essa punição precisa ser acompanhada de diálogo com a sociedade, dentro das escolas, dos locais de trabalho, sobre a importância dos valores democráticos.
“Até mesmo para eles serem apropriados pela população, não ficarem muito restritos a intelectuais, que se dedicam a falar desses valores democráticos. Eu acredito que, além das punições, esse julgamento vai vir acompanhado de processos de diálogo, de deliberação e eles devem ser sim estimulados pelos atores sociais, como nós, mas também pelos atores institucionais, que estão no governo”, defende a professora.
O julgamento
No tocante ao julgamento do STF, o jurista e professor de direito constitucional Pedro Serrano avalia que o processo ocorreu de forma adequada.
“De forma nenhuma houve, como estão falando, perseguição, abuso. O ex-presidente Bolsonaro, por exemplo, está solto, nunca foi preso, respondeu ao processo e está respondendo em liberdade com alguns dos melhores advogados do Brasil. Portanto, tendo pleno direito de defesa, pleno direito de se manifestar. Então, nesse sentido, é algo histórico”, pontua.
Para ele, essa foi uma resposta democrática, constitucional, a “um ataque extremista, extremamente violento e absolutamente descabido”.
“O que eles queriam fazer era suprimir os direitos das pessoas, suprimir os direitos dos seus opositores e mais do que seus opositores, da cidadania como um todo, submeter os corpos à gestão estatal, gestão violenta”, alerta.
O que ficou claro, segundo o especialista, é que há materialidade no delito, ou seja, existiu um crime de tentativa de golpe, com uso de uma organização criminosa.
“Foi muito importante na história do país esse reconhecimento. Agora vai haver um processo judicial que vai estabelecer se cada um daqueles réus teve ou não participação nesse crime. É tarefa do Ministério Público, agora, comprovar essa autoria”, explica.
E o futuro?
Na avaliação de Aline Atassio, é possível que haja reviravoltas no caso, mas é quase impossível enxergar, neste momento, uma possibilidade de que o crime de Bolsonaro não seja punido.
“A argumentação está muito forte, muito sólida. Acredito que uma parte grande da população, pelas pesquisas que a gente viu, está ciente disso e é a favor da punição. Temos um processo agora que é muito emblemático desse momento que a gente está vivendo”, ressalta.
É o que também reforça Pedro Serrano, que acredita ser difícil negar a chamada “materialidade do delito”.
“A prova é farta, foi obtida por vários meios técnicos, científicos, por buscas e apreensões. Foi uma investigação invulgarmente eficiente, bem feita, elogiada até pelo The New York Times”, recorda.
“A gente costuma falar ‘a tentativa de golpe de 8 de Janeiro’, mas não foi só no 8 de Janeiro, foi uma preparação, uma construção que veio de muito antes. Aquela organização criminosa estava agindo desde muito antes”, reforça. “Eu estou absolutamente convencido que a jurisdição não pode ter dúvida que ocorreu um crime de tentativa de golpe e esse julgamento demonstra isso”, pontua.
Vitória popular
Movimentos populares em todo o Brasil também celebraram a decisão do STF, como destaca o médico e integrante do Movimento Afronte Marcos Vinicius Cruz.
“Foi uma das semanas mais importantes da conjuntura da política brasileira. Se alguém tinha dúvida de que a ameaça que nós estamos enfrentando aqui, mas também em outros países, é o neofascismo, definitivamente essa dúvida se encerra agora neste período”, salienta.
Para ele, a prisão de Bolsonaro é uma das principais lutas políticas do ano.
“Em especial para quem veio do movimento estudantil, para quem constroi o movimento das juventudes, a ditadura militar talvez foi um dos períodos que mais nos impactou. A gente carrega na memória, nos nomes dos centros e diretórios acadêmicos. Eu acho que nós temos uma oportunidade de talvez dar a resposta que o Estado brasileiro deveria ter dado para o regime militar”, defende.
Mobilização
No domingo (30), movimentos populares em todo o território nacional organizaram atos para dialogar com a população sobre a punição aos golpistas do 8 de janeiro e o aniversário do golpe de 1964. Em Belo Horizonte, a mobilização começou às 9h30, com concentração em frente ao edifício Sulacap, na avenida Afonso Pena, no centro, e caminhada até a Praia da Estação.