Após anos de resistência e luta por visibilidade de pessoas adeptas às religiões de matriz africana, a prefeitura de Nova Lima, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), publicou um decreto instituindo o Programa de Atendimento aos Povos e Comunidades Tradicionais nos parques ecológicos e cemitérios públicos da cidade.
A medida, publicada em 21 de março, assegura o direito à realização de cerimônias e rituais tradicionais desses grupos em espaços públicos, reforçando o respeito à diversidade religiosa e cultural.
O decreto reconhece como povos e comunidades tradicionais aqueles que preservam práticas ancestrais, sociais e religiosas, valorizando o uso sustentável do território. Para as lideranças religiosas, a conquista é um marco, mas também um lembrete de que a luta contra o racismo religioso ainda é longa.
‘Direito constitucional, mas ainda negado’
Pai Gabriel, líder de um terreiro de Umbanda de Nova Lima, destaca que, embora a Constituição Federal já garanta a liberdade religiosa, o decreto municipal é um passo essencial para o reconhecimento legítimo das tradições afro-brasileiras.
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“As tradições de matrizes africanas sempre foram marginalizadas e é necessário reforçar o óbvio, chamar a atenção e deixar claro que todas as medidas cabíveis asseguradas pela lei serão tomadas para que tenhamos segurança em exercer o nosso direito constitucional”, destaca.
Pai Daniel, da Associação Centro Espírita Pai Benedito de Aruanda (Acepba), ressalta que a medida da prefeitura firma um compromisso do município com a reparação histórica.
“Sempre encontramos resistências do poder público ou até mesmo de servidores e de cidadãos nova-limenses, quando o assunto é tradições afrodiaspóricas. O decreto, ao meu ver, firma um compromisso do município, ao dar voz para um povo que contribuiu muito para a construção da cidade”, avalia.
Capacitação contra o racismo religioso
O texto também determina a capacitação de agentes públicos para combater o racismo religioso e ambiental, além da distribuição de materiais informativos. Para Mariana Giorgini, integrante de uma casa de matriz africana, a medida pode reduzir a discriminação.
“Grande parte do racismo religioso tem origem na falta de conhecimento sobre essas religiões, que historicamente foram demonizadas por outras crenças. Capacitar os agentes públicos é uma forma de proporcionar conhecimento e desmistificar as informações errôneas que ainda circulam sobre as nossas tradições”, comenta.
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Pai Gabriel concorda e aprofunda a reflexão.
“Capacitar agentes públicos é oferecer acesso à informação, letramento racial e entendimento das práticas que envolvem as nossas tradições. A possibilidade de difusão desses conhecimentos certamente facilitará com que muitos tabus que colocam os nossos corpos e templos em risco sejam quebrados. A ignorância é o verdadeiro causador de toda discriminação e racismo religioso”, enfatiza.
Diálogo com leis existentes e desafios
A iniciativa dialoga diretamente com o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei Babá Cida, sancionada no próprio município, que combate o racismo religioso e fortalece o calendário oficial de atividades das religiões de matriz afro-brasileira em diáspora.
Mariana Giorgini faz uma análise crítica sobre o atual estágio dessas políticas.
“Embora o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei Babá Cida representem avanços importantes na luta contra a discriminação e pelo respeito às religiões de matriz africana, essas políticas ainda não são suficientes para garantir plenamente os direitos e o respeito às tradições”, avalia.
Giorgini continua, dizendo que, apesar de oferecerem uma base legal, há várias lacunas que precisam ser preenchidas para uma efetiva mudança social e cultural.
“A luta pela equidade, igualdade e respeito às religiões de matriz africana requer uma abordagem mais ampla, que perpassa principalmente pelos caminhos da educação e isso é para ontem. Os nossos ancestrais têm sede de reparação histórica e nós também”, conclui.
Pai Daniel dá destaque para a necessidade de ampliar ainda mais as políticas públicas de combate ao racismo religioso.
“Tanto o Estatuto da Igualdade Racial quanto a Lei Babá Cida resguardam as práticas e o direito de existir, mas, ainda assim, é necessário mais políticas que mantenham vivos aqueles que praticam a religiosidade. Estamos dando passos importantes em direção a novos tempos, mas ainda há uma longa caminhada”, finaliza.