Até o início dos anos 2000, os pescadores da Ilha do Cardoso, no litoral sul do estado de São Paulo, sabiam que a maré cheia viria no inverno, entre os meses de julho e agosto. Hoje, ela pode surpreendê-los a qualquer momento.
“Das últimas vezes, a gente percebeu três marés altas no verão e duas na primavera, por exemplo”, conta Jorge Antônio Cardoso, morador da comunidade caiçara Enseada da Baleia, no município de Cananeia, da Ilha do Cardoso.
A instabilidade das águas do mar está entre os três impactos da crise climática mais relatados por comunidades de pescadores, de acordo dados do relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Pesqueiras no Brasil, lançado nesta terça-feira (1º).
Organizada pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), a pesquisa, realizada em 16 estados brasileiros, revela que 97,3% das 450 comunidades pesqueiras participantes sentem os impactos da mudança do clima. Além da instabilidade nas marés, o aumento da temperatura e a redução da variedade de espécies de pescados estão entre os principais impactos relatados.
Cardoso observa a mudança há, pelos menos, 15 anos. “A quantidade de maré alta aumentou muito e ela também está acontecendo ao longo do ano todo”, diz.
As marés mais cheias e em datas inesperadas também mexem com a rotina dos pescadores de Maracaípe, no litoral sul de Pernambuco. Por lá, pescadora Helena do Nascimento, conhecida como Leninha, não sabe dizer a data em que as alterações começaram, mas garante que foi há muito tempo.
“Antes tinha essas marés grandes duas vezes no ano, uma no começo de março, uma no fim; uma no começo de agosto e uma no fim de agosto”, lembra. Agora, elas podem chegar a qualquer momento. “Aí fica difícil de entender”, lamenta. E, mesmo na temporada certa, as marés vêm, muitas vezes, mais volumosas. “Inclusive, agora mesmo tá acima do normal”, conta.

Para quem vive do mar, as marés são como guias, explica Cardoso. Elas indicam o melhor lugar para pescar ou a espécie de peixe mais abundante. “Ela nos diz o que é melhor de ser feito nos próximos dias e nos dá previsão do que vai acontecer. Por exemplo, se vai vir frente fria, se vai dar uma sequência de dias ensolarados ou de vento leste”.
Menos aratu no mangue, menos peixe no mar
Com a maré alta e o mangue muito alagado, Leninha não consegue trabalhar na pesca do aratu, espécie de caranguejo que até 2020 garantia o sustento da sua família. “O mangue fica todo empoçado”, explica.
Mas nos dias de maré baixa, ela nem sempre encontra a quantidade que esperava. “Tem diminuído muito, muito mesmo”, lamenta. A pescadora avalia que a instabilidade das marés somada ao aumento da temperatura da água reduziu a oferta de crustáceos.
“Hoje tá bem difícil para poder sustentar a nossa família se for pescando. Muito difícil mesmo, porque a gente não tira a renda, não”, lamenta. Para complementar os ganhos, ela conta com auxílio do governo federal.
“Às vezes a gente ia pro mangue e trazia três, quatro quilos no dia. Hoje, a gente vai para o mangue, a gente tem que trabalhar dois, três dias para pegar um quilo”, diz.

Com a escassez, os pescadores precisam navegar longas distâncias para encontrar o pescado. “Não temos mais como pescar próximo. É cada vez mais longe, né?”, conta Rita de Cássia da Silva Costa, moradora de Macau, no Rio Grande do Norte, pescadora desde os sete anos.
Hoje, aos 45, ela lamenta a baixa oferta de mariscos. “Cinco anos atrás, eu ia para a captura do marisco, eu pegava 20 quilos… 20, 30 quilos, só eu. Hoje, eu estou indo para o marisco e só consigo coletar cinco quilos”. Embora a queda na quantidade de pescado tenha se acentuado a partir de 2020, a pescadora observa as mudanças na oferta de frutos do mar há pelo menos dez anos.
Além da quantidade, a mudança do clima alterou o momento da colheita dos pescados. “A gente não tem mais a safra de peixe que a gente marcava naquele mês… Então, o marisco, o siri, o caranguejo, tudo tá tudo diminuindo, né?”, diz Costa.
A tainha, peixe bastante comum nas redes dos pescadores brasileiros de diversas regiões, também ficou escassa. “A gente esperava aquela tainha, né, que a gente pegava 100, 200 quilos, numa só numa pescaria. Hoje, a gente passa a semana todinha pra capturar 50 quilos”, diz Costa.
Na região da Ilha do Cardoso, as safras de tainha costumavam aparecer com a chegada das frentes frias, no inverno. Agora, o fluxo mudou.
“Essas comunidades têm percebido o atraso do início dessa safra e a diminuição da intensidade de chegada desse pescado nos seus territórios”, conta Henrique Callori Kefalás, coordenador executivo do Instituto Linha D’Água, uma organização da sociedade civil que, há dez anos, acompanha comunidades costeiras na faixa entre o litoral sul do Rio de Janeiro até o norte do Paraná, passando por São Paulo, região compreendida como território caiçara.
De acordo com Kefalás, os pescadores percebem as mudanças nos ciclos da natureza há pelo menos 20 anos. “Em alguns casos, até 30 anos. As comunidades já relatam a percepção de mudanças em ciclos que eles tinham uma compreensão quase que secular, e que estão sendo modificados”.
“A gente tá vendo as mudanças climáticas como a chuva, o vento, que não é mais o mesmo, né?”, observa Costa.
Tradições que indicam caminhos para o futuro
Entre os pescadores ouvidos na pesquisa da CPP, 79,6% disseram sofrer com a descaracterização da cultura tradicional pesqueira. Em seus diálogos com as comunidades, Kefalás se depara com esse lamento.
“Essas comunidades têm relatado a dificuldade de compreender como essas mudanças vão alterando aqueles conhecimentos tradicionalmente construídos, que foram passados entre gerações e gerações”, diz.
Aos 13 anos, Cardoso aprendeu com o pai e os tios a fazer o cerco fixo, estrutura artesanal de madeira e taquara, usado para capturar os peixes. “Foi inventada pelos povos originários e adaptada pelos caiçaras até chegar ao formato de hoje”, explica. Um bom cerco captura até mil tainhas e pode gerar renda para quatro famílias.

No ano passado, a primeira safra da tainha chegou até o litoral paulista antes do momento esperado. “Acabou pegando a gente desprevenido aqui com cercos ainda em construção”, conta Cardoso. Muitas famílias perderam a primeira leva dos cardumes, justamente a mais volumosa. “As famílias que não se anteciparam acabaram ficando sem esse recurso”, explica o pescador.
Para Kefalás, as comunidades de pescadores são como “sentinelas da crise climática”. “Essas comunidades são aquelas que primeiro sentem toda e qualquer alteração no ambiente”, diz.
Ele indica que os conhecimentos tradicionais dessas populações devem servir de guia para lidar com a crise climática. “E que elas sejam priorizadas no processo de desenvolvimento de planos locais adaptação e de mitigação”, sugere.
No relatório, a CPP informa que a percepção dos efeitos das mudanças climáticas, por ser subjetiva, pode ter origens diversas. “No entanto, as informações coletadas a partir das observações de homens e mulheres das comunidades tradicionais pesqueiras são valiosas, pois refletem sua íntima relação de trabalho e conhecimento com o meio ambiente dos seus territórios de pesca”, informa o texto.
Leninha ensinou aos quatro filhos – duas moças e dois rapazes – o ofício da pesca. Todos eles vivem do mar. Um dos rapazes é jangadeiro, conduzindo turistas aos lugares mais bonitos daquela região. Os outros pescam, assim como a mãe.
Na comunidade em Maracaípe, Leninha lidera uma associação de mulheres pescadoras. Juntas, estão coletando sementes para fazer o replantio de espécies do mangue, que está devastado.
“A gente, como pescadora, pode cuidar melhor das reservas do mangue para ver se diminui a quentura da água”, explica. O plantio deve acontecer nos próximos dias.