Quarenta e seis pessoas estão rememorando suas trajetórias longe do país sob a ditadura militar (1964-1985). A diferença, em relação a outros livros sobre o exílio, é que os 46 eram bebês ou crianças quando tiveram que abandonar o Brasil para acompanhar pais e mães perseguidos e temendo a prisão, a tortura e, eventualmente, a morte. Assim, a peregrinação de país em país é percebida sob o ponto de vista não dos alvos do autoritarismo mas dos pequenos.
Suas histórias estão contadas em Crianças e Exílio: Memórias de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar (Carta Editora), volume organizado por Helena Dória Lucas de Oliveira e Nadedja Marques, ambas também personagens do êxodo que afetou tantas famílias.
Nesta entrevista, Brasil de Fato RS conversa com Helena, professora de matemática licenciada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), e com seu irmão, o artista teatral Antônio Dória Lucas de Oliveira, cujas lembranças do Chile, Cuba e Guiné-Bissau também estão contempladas na narrativa.

Acompanhe:
Brasil de Fato RS: Vou começar perguntando para Helena como foi localizar essas 46 pessoas. Estavam espalhadas pelo Brasil e pelo exterior? E qual é a contribuição que um livro com essa temática traz para o Brasil do século 21?
Helena: Participei de um projeto chamado Clínica do Testemunho, idealizado pela Comissão da Anistia, durante o governo da presidenta Dilma. Na verdade, o Brasil estava cumprindo uma sentença da Corte Interamericana dos Direitos Humano e foi obrigado a ter projetos de reparação psíquica. Teve duas edições e, a partir das conversas, que comecei a ter vontade de encontrar as crianças que brincaram comigo durante o exílio, no Chile, em Cuba.
E tu chegaste ao exílio com sete anos?
Helena: Com sete anos. Um fato bem importante foi o aniversário de 50 anos do golpe do Chile, em 2023. Um grupo de brasileiros e brasileiras que estiveram lá exilados se reuniram em um grupo de WhatsApp, me convidaram, e ali a gente começou a se encontrar. A geração dos nossos pais e mães e a geração também dos filhos e filhas.
À época, entrevistamos o (músico e ex-exilado no Chile) Raul Ellwanger…
Helena: Raul foi muito importante nessa viagem ao Chile. Na viagem, também conheci a Nadedja Marques, que organiza o livro junto comigo. Encontrando a segunda geração fomos convidando: ‘Vamos fazer um livro? Vamos!’ Em outubro de 2023, Nadedja me ligou e aí começou. Contatamos quem conhecíamos e depois os demais. Não foi muito difícil.
E todas estão no Brasil ou não?
Helena: Do nosso livro, temos oito fora do Brasil. Três moram na França, dois nos Estados Unidos, inclusive Nadedja, uma em Portugal, uma na Itália e uma na Alemanha.
“A contribuição importante do livro é que põe luz, centraliza nas crianças”
Vocês não estavam mais no Chile em 1973 ou estavam ainda?
Helena: Estávamos.
Então foram para Cuba?
Helena: Grande parte dos autores e autoras do livro saíram do Brasil e estavam no Chile. Tinha aquele momento, né?
Sim, Allende recebendo todo mundo…
Helena: Muitos dos nossos pais foram para o Chile para conhecer essa experiência, além de que o país era muito solidário e recebia. Teve uma troca por um diplomata (embaixador Giovanni Bucher, capturado pela luta armada) quando 70 presos e presas políticas saíram daqui e foram para o Chile.
Embaixador da Suíça…
Helena: Isso mesmo. Tatiana Piolla, que está no nosso livro, estava nesse avião, estava nessa troca. E tu me falaste da contribuição, né? Acho que a contribuição importante do livro é que põe luz, centraliza nas crianças. Nossos pais foram atores, lutaram pela democracia, foram presos, torturados, desaparecidos. Nós estávamos ali, na volta, muito protegidos por eles. Então, agora somos nós que estamos contando essa história. Não fomos as protagonistas mas estávamos presentes. A gente sentiu, a gente compreendeu, a gente aprendeu, a gente se assustou, né?
Antônio: Sofreu, chorou, né?
“Quando o pai foi preso pensei que ele havia morrido em um acidente de carro”
Como e quando foi que vocês deixaram o Brasil?
Antônio: Comecei a me sentir consciente das coisas a partir da década de 1970, da Copa do Mundo. Lembro que a gente torcia para o Brasil e o pai torcia para a Rússia. Depois, o pai foi preso, teve uma movimentação muito grande em casa, minha irmã não pôde ir mais para o colégio porque estava sendo vigiada dia e noite.
E não se falava nada em casa.
Antônio: Não se falava. Quando o pai foi preso pensei que ele tinha morrido em um acidente de carro.Todo mundo escondia para mim o que tinha acontecido. Minha mãe só me disse ‘Nico, teu pai está bem’.
Vocês moravam onde?
Antônio: No Jardim Itati, Vila Ipiranga, zona norte, em Porto Alegre. ‘´’Nico, quanto menos tu souberes, melhor para ti e para nós’. No Chile, depois, fui adquirindo maior consciência. O pai participava de manifestações e reuniões políticas no acampamento La Hermida, ia a comícios do Miguel Enríquez (fundador do Movimiento de Izquierda Revolucionária, MIR). Lá, conheci o que é o fascismo. Havia um grupo de extrema direita, Patria y Libertad. Esse grupo, quando íamos para uma concentração, atirou bolinhas de aço no ônibus que estava levando o pessoal, ferindo uma moça que estava do lado de outra irmã minha.
Quando houve o golpe, vocês foram para qual embaixada?
Nenhuma.
“Em Ainda Estou Aqui, a Eunice dá um tapa na filha que estava perguntando… Aquilo me marcou muito”
Nenhuma? Como conseguiram escapar?
Antônio: O pai e um amigo dele, Diógenes Oliveira, tinham feito planos. Já sabiam, tinham noção do golpe no Brasil. Vi o pai nas reuniões do MIR conversar com os companheiros e dizer ‘Olha, temos que cuidar do golpe’. E os companheiros do MIR diziam ‘Não, aqui o exército é constitucional, não tem problema’. Então, o pai e o Diógenes construíram uma casinha no bairro São Miguel. Como um plano B. Foi para lá que a gente foi. Tinha três famílias na casa.
Helena: Quero ressaltar que a cena do filme Ainda Estou Aqui, quando a Eunice dá um tapa na filha que estava perguntando… Aquilo me marcou muito. Nossos pais e nossas mães não nos contavam o que estava acontecendo para nos proteger. Mas a gente queria saber, né? E aquela bofetada é, tipo assim ‘Bom, não é coisa de vocês’.
Como conseguiram chegar em Cuba?
Helena: Nesse refúgio, as embaixadas chegavam para receber essas pessoas que estavam ali nos seus países. Países da Europa como Finlândia, França, Suécia. Mas éramos uma família. Minha mãe dona de casa, meu pai professor e seis filhos…
Antônio: Os países europeus queriam famílias pequenas, não famílias grandes.
Helena: E jovens, né? Meu pai estava na faixa dos 40. Então, amigos disseram para o meu pai ‘Vocês querem ir para Cuba?’ Fizemos uma reunião em família, meu pai era muito disso, e a maioria votou para ir para Cuba. Só a mãe não queria ir para Cuba por causa no Brasil não ter relações diplomáticas com Cuba. Havia dificuldades para receber cartas de familiares no Brasil.
E ficaram quantos anos em Cuba?
Helena: Seis anos.
Qual era a filiação política do pai de vocês?
Helena: Ele era professor de História. Começou a estudar História bem em 1964. Era bancário e militava no POC, o Partido Operário Comunista. Não era da vanguarda. Tinha a família, não queria nos colocar em risco. Abrigava algumas pessoas em casa, que corriam risco de vida. Então, um dos rapazes foi preso e, sob tortura, acabou escapando o endereço da nossa casa e o nome do pai.
E ele ficou quanto tempo preso?
Helena: 21 dias. Nunca nos contou mas foi torturado.
Dos 46 depoimentos, quais foram aqueles que mais impressionaram vocês?
Helena: O fato de cada um de nós, hoje adultos, escavar essas memórias e colocá-las no papel, com toda a dor que tem, deixou o livro muito bonito. Tem histórias muito líricas. O que mais nos tocava eram as despedidas das amigas e dos amigos da escola quando nos tocava sair de um país e ir para outro.
Uma história que colocamos no final exatamente para fechar o livro, como um lugar de importância, é a Ñhansandy Barret de Araújo. Ela é a única de todos os 46 que teve o pai e a mãe assassinados. Outras seis crianças autoras do nosso livro tiveram seus pais assassinados. Mas ela é a única que teve pai e mãe. A escrita dela é marcante. Ela nasceu em Cuba. Sua mãe, Soledad Barret Viedma, era paraguaia. Seu pai era José Ferreira de Araújo.

É interessante como o filme Ainda Estou Aqui trouxe luz a essa realidade das famílias. Quando se fala da ditadura fala-se dos presos, dos torturados. Nunca do que as famílias viveram…
Antônio: Um depoimento que me impactou foi o da Nádia Bambirra dos Santos. O que chamou a atenção foi o fato de ser, como ela diz, uma pessoa que não teve infância, não teve pátria, não teve nada.
“Adilson foi levado de volta à casa onde o pai fora assassinado e teve que ver o sangue perto do tanque”
Helena, algumas crianças iam, passavam antes de sair do Brasil, passaram pelo Juizado de Menores, onde nem sempre eram bem tratadas, né?
Helena: São crianças que, quando a mãe ou a avó foram presas, também foram levadas. Os militares, em vez de, num ato de humanidade, deixar essas crianças com algum outro familiar, levavam junto. Ou também da garra da mãe dizer ‘Não, meus filhos vão comigo’. Denise, Adilson e Thelma, filhos de Antônio e Damares Lucena, passaram por esses espaços. Adilson conta no livro que, uma das partes mais difíceis para ele, ocorreu quando os militares o levaram de volta para a casa onde o pai havia sido assassinado. Ele teve que ver aquela cena, o sangue do pai perto do tanque. Perguntavam para ele ‘Onde que estão escondidas as armas’. Não havia nenhuma arma e, mesmo assim, apanhou com a parte de madeira do facão.
Uma particularidade a favor da ditadura brasileira é que não fez como fez a ditadura argentina, onde pais e mães eram assassinados e suas crianças roubadas e entregues a famílias de militares…
Helena: É verdade. Mas o jornalista Eduardo Reina, que fez a introdução do nosso livro, fez uma pesquisa, Cativeiro Sem Fim, mostrando que militares brasileiros também raptaram crianças, então…
Isso merece uma investigação também.
Helena: Sim, inclusive muitas crianças indígenas também foram. É outro capítulo da nossa história que precisa de uma revisão.
Ou seja, a ditadura brasileira, ao contrário do que disse a Folha, nunca foi uma ditabranda. Na Argentina, obviamente, isso foi feito de forma maciça e, digamos, institucional. Aqui, pelo que estás falando, houve também. Resta saber o tamanho disso. Foi quanto tempo o de elaboração do livro?
“Só de conversar com eles, ouvir os relatos, eu ficava todo arrepiado”
Helena: Começamos a reunir as pessoas em outubro de 2023. A entrega dos textos ocorreu em julho do ano passado.
Antônio: Logo que começou o grupo, apareceu aquele clima, assim, de se reconhecer, de conversar, contar histórias, quem era teu pai, meu pai, ‘ah, conheço teu pai, ah, lembro do teu pai’… Levamos um tempo conversando entre nós e hoje são todos irmãos. Fizemos algumas reuniões online, onde os companheiros se emocionavam, a gente se emocionava. Só de conversar com eles, ouvir os relatos, eu ficava todo arrepiado.
Já tem uma semente para um segundo volume?
Helena: O pessoal está entusiasmado pra fazer Crianças e Exílio 2. Tem várias crianças – na época, eram crianças – que não puderam entrar, ou que a gente não conhecia ou não houve tempo de fazer o contato e muitos irmãos e irmãs nossas também não quiseram e que, talvez, vendo o livro pronto, se encorajem.
Mas vocês querem ler os nomes dos 46 autores e autoras, não é?
Antônio: Então, aqui são os nomes dos 46 crianças que, na época da ditadura, viveram o terror da tortura, as agruras, o exílio: Alexandre Guimarães, Álvaro Faleiros, Ana Amélia Moura Calvalcante de Melo, Andiária Cobério Terena, Antônio Carlos Cunha, Camila Bianchi, Cláudia Lamarca, Daniel Souza, Dora Rodrigues Mucudai, Elza Diniz Reis, Guilherme Gitaíde Figueiredo, Isabela Thiago de Melo, Jana Eleonora Branco d’Ávila, Lícia Auer, Márcia Curi Vaz Galvão, Marta Nehring, Míriam Leonardo, Nádia Bambirra dos Santos, Nhansandy Barret de Araújo, Rogério Tosca, Tatiana Piola.
Helena: E o grupo dos irmãos, né, Andreia, Marina e Danilo Curtis Alvarenga, os irmãos Oliveira Lucena, Denise, Adilson e Angela Thelma, os irmãos Capiberibe, Artyonka, Luciana e Camilo, os irmãos Toledo Sader, Mário e André, as irmãs Keller Trasber, Natália Keller e Atamara Keller Solis, os irmãos Gomes da Silva, a Isabel e o Gregório, o Antônio e eu, Nadedja Marques e Sibeli Mendes, os irmãos também Carlos Max do Nascimento e Azuley de Aparecida do Nascimento, as duas primas Flávia Quintiliano e Sílvia Whittaker e Anacleto Julião, tio de Alexina Calle de Paula.
E onde pode ser adquirido o livro?
Helena: Está em algumas livrarias. Em Porto Alegre, nas livrarias Ventura e Via Sapiens. E também no site da editora.
Esta é uma versão compactada de entrevista ao podcast De Fato. Assista na íntegra:
