Para fortalecer a luta pela democracia, é preciso se debruçar sobre a memória da ditadura civil-militar no Brasil por meio da diversificação das ferramentas que as novas gerações têm à disposição para conhecerem o passado. Essa é a avaliação da pesquisadora Nayara Henriques, uma das autoras do livro 1964 – imagens de um golpe de Estado, lançado esta semana pelo Conselho Editorial do Senado em parceria com o “Projeto república: núcleo de pesquisa, documentação e memória”, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Também professora da rede pública de Contagem (MG), Nayara visualiza no cenário educacional do país um ensino historicamente incipiente e ainda precário no que se refere à popularização do debate sobre o legado sombrio de regimes autoritários.
Para a pesquisadora, faltam não apenas suporte material nas escolas, mas também ferramentas que, de forma criativa, ajudem os estudantes a cultivarem intimidade com esse tipo de conteúdo. “Às vezes, os alunos se sentem muito distantes dos processos históricos. É difícil fazer um aluno de 13, 14 anos sentir algum tipo de ligação com algo que aconteceu em 1964, por isso é importante se pensar formas de mostrar para eles que a história tem permanências, que os processos históricos causam consequências na nossa vida atual. A gente tem um currículo engessado. As disciplinas ainda são muito limitadas”, avalia a professora.
Para a pesquisadora, é preciso aperfeiçoar os métodos e abordagens de ensino de uma forma que os estudantes possam traduzir o mundo a partir de um entrelaçamento entre passado, presente e futuro. “Falta a gente aproximar a realidade política da realidade escolar e mostrar para eles que existem possibilidades muito boas de futuro e que a defesa da democracia vai ser essencial para isso”, associa. É de olho nesse horizonte que Nayara Henriques e outros 15 pesquisadores produziram o livro recém-lançado, organizado pelos historiadores Heloísa Starling e Danilo Araújo Marques e pela diretora do museu virtual Rio Memórias, Lívia de Sá Baião.
Ao longo de 180 páginas, a obra convida o leitor a uma reflexão sobre o período ditatorial a partir de imagens do período, algumas delas de veiculação inédita. Todas as fotos vêm acompanhadas de contextualização com os dados mais relevantes de cada cena histórica documentada e o enredo se estende desde momentos prévios ao golpe militar, que ajudam a evidenciar o tom da conjuntura de então, até registros de alguns dos principais sobressaltos políticos do período. “Qualquer um que leia o livro vai conseguir chegar às suas próprias conclusões”, diz a pesquisadora, que conversou com o Brasil de Fato sobre o processo de produção da obra, os dilemas que os historiadores enfrentam diante desse tipo de trabalho e outros pontos que cercam o tema. Confira a seguir a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Por que narrar fatos da ditadura a partir de imagens? As fotografias ajudam a pavimentar melhor o caminho para apontar verdades factuais incontestáveis em meio a um cenário em que ainda se tenta criar disputa de narrativa em torno do período militar?
Nayara Henriques: As imagens têm esse ponto importante, mas eu acho que, pra gente, isso também tem a ver com o impacto que causa nas pessoas. Quando você vê uma imagem, você já começa a procurar significados para ela, seja para entender o que você está vendo, seja para compreender o contexto. E, com esse trabalho de imagem, a gente conseguiu contar um pouco além, algo que conversa muito com a dificuldade que a gente tem às vezes de as pessoas tentarem deslocar narrativas. Às vezes a imagem não vai dar conta de todo o contexto, mas, quando você consegue trazer a imagem e contar qual é o significado dela, isso expande a possibilidade de horizonte histórico, de você realmente compreender melhor um processo histórico.
No levantamento das imagens para compor a publicação, vocês chegaram a se deparar com alguma novidade ou com alguma surpresa em relação ao golpe, por exemplo?
Tem uma imagem da posse do Ranieri Mazzilli [presidente interino que assumiu país em abril de 1964, após cassação de João Goulart] que a gente achou e que é inédita porque a gente não a encontrou publicada. A gente achava que ela não existia porque essa posse foi feita na calada da noite, então, a gente tem a ata de posse, mas nunca tinha visto uma imagem [da cena]. Isso foi importante porque ela traz muito do tom conspiratório que já existia e corrobora a ideia que a gente construiu no livro de que o golpe não acontece só no momento em que as tropas vão para as ruas ou quando é declarada a vacância do cargo do Jango, mas tem a ver com a preparação de setores da sociedade que estavam mobilizados para fazerem isso acontecer.

Acho que essa foto traz muito disso e ela foi uma das imagens mais inéditas Mas a gente conseguiu também encontrar imagens de eventos que já são muito conhecidos, como o comício na Central do Brasil [em 13 de março de 1964], mas em relação aos quais conseguimos encontrar outros ângulos e contar outras histórias. Por exemplo, tem uma foto do Leonel Brizola em cima do palanque em que dá para ver que ele está com um revólver na cintura. Isso traz toda uma nova perspectiva sobre o que se esperava daquele comício, do que se esperava da conjuntura naquele momento.

E também foi interessante encontrar imagens que fugiam do eixo Rio-São Paulo. Então, todas essas imagens, principalmente as do Norte, do Nordeste, e também algumas imagens que a gente trouxe dos movimentos no campo são inéditas porque a gente não viu nenhum trabalho que se aprofundasse no que essas imagens traziam.
Levando em conta que a gente está diante de um tema que, de certa forma, já foi abordado por muitos pesquisadores do campo da história e de outras áreas das ciências humanas, o que o livro de vocês traz de diferencial em relação a tantas outras produções já lançadas no Brasil que se debruçam sobre o período da ditadura?
Tem muitas obras que falam da ditadura, desses 21 anos [de regime] e de todas as mudanças políticas, etc., mas a gente tem pouco material sobre o golpe mesmo, sobre esse momento em que se tem uma ruptura política. Então, acho que [o diferencial seria] a gente conseguir montar uma conjuntura para as pessoas entenderem que não foi uma mudança política que aconteceu muito rápido ou uma decisão de “olha, está acontecendo um problema no país e a gente vai resolver em dois meses”. Não, não foi bem isso.
Houve todo plano traçado, um planejamento feito tanto pelas Forças Armadas quanto pelo setor empresarial para atingir esse objetivo e, depois, aprofundar isso. Havia o objetivo inicial de tirar o Jango do poder, assediar o controle político, mas depois você tinha os outros objetivos, que só foram possíveis porque o golpe foi vitorioso. Eles conseguiram fazer [o golpe] funcionar e, para fazer funcionar, tudo tinha que estar bem encaixado. Tudo tinha que funcionar perfeitamente. Eu acho que isso traz uma coisa única para esse trabalho.
E eu acho também que contar essas histórias a partir das imagens e mostrar o Brasil todo, também nos dá uma perspectiva muito maior do que estava acontecendo. E tem uma coisa que até foi uma fala da jornalista Cristina Serra durante o lançamento [do livro], que é o seguinte: a gente também tem que prestar atenção no que permanece. Isso porque o golpe, a ditadura não são um passado superado. A gente ainda vive as permanências [do problema], então, quando a gente analisa essas imagens, a gente consegue imaginá-las acontecendo agora. Isso causa um grande impacto e traz uma grande reflexão para quem lê o livro, sem dúvida.
A educação é apontada por especialistas como a área mais fundamental de todas para se trabalhar o debate sobre a defesa da democracia e o combate a governos autoritários. Passados 40 anos do fim do regime militar, quais são os principais entraves para se dar capilaridade a esse debate nas escolas? A seu ver, quais são os principais desafios na contemporaneidade?
A gente percebe que existe um desmonte na educação quando você tenta, primeiro, aumentar o número de alunos em sala de aula, quando não se dá um suporte material para as escolas, para os professores e, claro, principalmente para os alunos, para que as aulas aconteçam. Mas falta também repensar um pouco o currículo e conseguir introduzir discussões que agreguem mais [coisas] a esses alunos. Eu percebo que, às vezes meus alunos se sentem muito distantes dos processos históricos. É muito difícil fazer um aluno de 13, 14 anos sentir algum tipo de ligação, se sentir impactado por algo que aconteceu em 1964.
Por isso é importante a gente pensar em formas de mostrar para esses alunos que a história tem permanências, que os processos históricos causam consequências na nossa vida atual. E eu acho que a dificuldade da escola é isso, porque a gente tem um currículo muito rígido, muito engessado. As disciplinas ainda são muito limitadas, o tempo para a gente trabalhar com os alunos também é escasso, então, eu acho que isso causa uma série de problemas. A gente não tem espaço para trazer discussões para os alunos.
A gente fica, às vezes, tendo que seguir uma metodologia conteudista e a gente não dá ferramentas para os nossos alunos interpretarem o mundo. Mais importante do que os meus alunos decorarem datas, nomes e fatos históricos é eles terem condição de interpretar o mundo em que vivem, analisarem uma notícia, conseguirem diferenciar o que é uma notícia tendenciosa do que não é. Acho que falta espaço para a gente trazer ferramentas para os nossos alunos nesse sentido.
Considerando esse seu raciocínio, a diversificação de políticas públicas que busquem incentivar uma consciência sobre a defesa da democracia e que busquem incidir sobre o universo educacional seria, então, um caminho? Que tipo de coisa poderia ser feita pelo Estado, por exemplo?
Com certeza. Acho que falta realmente a gente trabalhar essa cultura democrática na escola. O “Projeto República”, por exemplo, fez uma exposição em parceria com o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] sobre a história no voto no Brasil, tentando entender a construção desse direito e como o exercício do voto foi muito importante para o fortalecimento democrático do país. Mas esse tipo de coisa realmente precisa chegar aos nossos alunos. A gente precisa trazer essa formação democrática porque o que vejo são alunos que não entendem o nosso processo eleitoral, não entendem as funções dos Poderes, não entendem qual o poder que têm como cidadãos.
É muito bonito quando dou aula sobre o Iluminismo, falo de soberania e que “todo poder emana do povo”, mas como é que você explica para um menino de 14 anos o poder que ele tem como cidadão e quais são os direitos que ele tem? Falta realmente a gente aproximar essa realidade política da realidade escolar e mostrar para eles que existem possibilidades muito boas de futuro e que a defesa da democracia vai ser essencial para isso. Porque eu acho que, além dessas políticas que constroem uma cultura democrática, falta também trazer esperança de futuro porque o que eu vejo muito é que as crianças, os jovens não têm mais uma perspectiva de que o futuro vá ser bom e de que a gente vai construir coisas novas, vai lutar por um país melhor, um país mais democrático. Isso se perdeu muito, seja pela quantidade de informação que esses meninos recebem, seja pelas perspectivas negativas que a gente vai acompanhando pelas notícias, seja pelas notícias políticas ou ambientais. Então, faltam essas duas construções. Acho que faltam projetos para trazer isso para os alunos.
Voltando um pouco ao livro, queria abordar um outro ponto: a gente sabe que, naturalmente, assim como todas as ciências, a história também sofre influências relacionadas à subjetividade de quem a registra. Esse trabalho de vocês de busca por imagens, informações e documentos ligados ao período da ditadura é, em alguma medida, perturbador para um historiador?
É, sim, com certeza. Por mais que a gente estude e tenha disciplinas que se debruçam sobre essa história, a verdade é que, quanto mais a gente olha para o passado e quanto mais perguntas a gente faz a ele pra falar de golpe, de ditadura, a gente descobre que foi pior e mais perverso [do que imaginava] e que a gente ainda não conseguiu medir o tamanho desse impacto. Aqui [na publicação] a gente tem uma seleção de imagens, mas, para a gente chegar nas fotos desse livro, foram centenas de imagens [analisadas], e isso significou conhecer histórias do golpe militar pelo Brasil inteiro e se deparar com realidades muito cruéis e com figuras que foram de uma perversidade política muito grande, que conseguiram trazer toda uma ideologia, seja anticomunista, seja antidemocrática, e tornar isso a realidade do país.

Até pensando em grande parte dos textos que eu escrevi para esse livro, que falam dos empresários se organizando e criando uma propaganda anticomunista, criando um pânico geral, a gente vê que existem níveis psicológicos do golpe da ditadura aos quais a gente ainda nem conseguiu chegar a fundo. A gente ainda está na superfície. Então, pra gente, é sempre assim: quando a gente faz perguntas para o passado, mais coisa a gente descobre. E, por ser um período antidemocrático e violento, a gente se depara com coisas que nos deixam tristes mesmo, desanimados, mas acho também que isso foi o grande incentivo pra perseverar nesse livro. É justamente porque a gente quer mudar esse cenário, quer que o passado sirva para pensar um futuro melhor, para fazer um futuro melhor. Então, acho que vai muito nessa linha.
Sobre o livro, como foi o processo de seleção das imagens? Vocês tiveram que fazer uma seleção ou colocaram tudo o que encontraram? Explica pra gente quais crivos vocês utilizaram.
Foi uma seleção. A gente tentou construir uma linha narrativa que desse conta dos principais acontecimentos políticos, mas que pudesse destrinchar o Brasil porque isso, na verdade, começou quando a gente fez, em parceria com [museu virtual] Rio Memórias, a exposição Rio 64, capital do golpe, em que a gente contou a história do Rio de Janeiro no ano de 1964. Então, nós pegamos acontecimentos desde o 1º de janeiro até meados de abril, até a posse do Castelo Branco, dia 15 de abril.
À medida que a gente foi levantando essas imagens, a gente foi encontrando muito mais coisas, muito mais coisas que não tinham a ver com o Rio de Janeiro e que não entrariam na exposição porque a ideia do Rio Memórias é contar a história da cidade do Rio de Janeiro. Com esse material, a gente começou a pensar quais seriam as possibilidades de trabalhar com aquilo. O fato também de a professora Heloísa estar escrevendo um livro sobre o golpe já era um assunto que estava à tona dentro do grupo de pesquisa. Então, como ela faz parte do conselho editorial [do Senado], ela conseguiu essa possibilidade de a gente construir um livro que pudesse contar a história do golpe e que fosse além do Rio de Janeiro, que a gente conseguisse encontrar outras imagens. Então, a gente encontrou muita coisa.

O que acontece é que, às vezes, a gente tem muita imagem do mesmo evento, do mesmo dia, do mesmo lugar, do mesmo acontecimento, então, a gente foi selecionando não só aquelas que fossem mais inéditas, mas também as que fossem mais intrigantes, que tivessem um impacto importante e que pudessem conversar com um texto que falasse da imagem, mas que também pudesse trazer um contexto maior. Nossa ideia foi fazer essa análise. A gente tentou fazer aí um pouco de jornalismo: olhar a semiótica das imagens para poder realmente trazer informações que eram muito importantes sobre o golpe. A gente pensou em quais eventos e momentos precisavam ser contados.
Lógico que, se a gente fosse contar tudo que aconteceu, seria muito maior, mas a gente tentou realmente fazer uma seleção que fizesse sentido e que desse conta tanto da ação política, da ação militar, da ação civil quanto dos impactos [do regime] em diferentes níveis da população, porque a gente quis mostrar as pessoas na rua. A gente falou também dos processos nas favelas, nas desapropriações, e [falou] da luta camponesa. A gente buscou trazer tudo, inclusive a própria resistência do Exército, quando a gente fala dos tenentes. A gente tentou construir essa narrativa. Mas a verdade é que ainda existe muito mais material, então, a gente ainda consegue, talvez, ampliar essa história que a gente trouxe aqui.
Que tipo de dilema um historiador como você enfrenta na hora de executar um trabalho dessa natureza? Eu me refiro ao levantamento de documentos, informações, fotos. Quais questões surgem numa hora dessas para um pesquisador que lida com a historiografia?
O nosso trabalho é pegar a verdade factual e contar isso para as pessoas, trazendo também quais foram as consequências. Lógico que, no nosso caso, a gente vai estar sempre ao lado da democracia, mas a gente tomou o cuidado de não fazer um trabalho que pudesse ser opinativo, que fosse um ensaio ou que parecesse que a gente estava apenas emitindo uma opinião. Nós, como historiadores e estudantes de universidade federal, temos um valor que para a gente é inestimável, que é o valor democrático. É a defesa das instituições democráticas, mas a gente tem que tomar um certo cuidado quando vai escolher [documentos] ou escrever [textos], justamente para oportunizar que pessoas, que às vezes ainda têm uma dificuldade de entender o processo do golpe militar, possam ler e tirar suas próprias conclusões.
Então, [nosso papel] é fazer um texto que mostre para as pessoas o que aconteceu, mas que não seja o que muita gente acha que a gente faz – e a gente não faz –, que é trazer uma doutrinação. [A ideia é] que seja um texto de reflexão e de conhecimento histórico. Acho que o mais difícil pra gente foi ter esse cuidado e fazer também as apurações. E uma hora a gente também tem que escolher, excluir alguma imagem e uma história, justamente porque a gente não conseguiu fontes para embasarem aquela narrativa. Não seria correto nem ético da nossa parte contar algo sem muito embasamento, pois correria o risco de alguém olhar e chegar a uma conclusão não baseada numa verdade factual. Acho que o mais difícil é isso. É a gente contar aquilo que aconteceu e também não deixar de lado o que a gente defende. Qualquer um que possa ler [o livro] vai conseguir chegar às suas próprias conclusões.