De péssima qualidade e com uma das tarifas mais altas do país. É assim que a população de Belo Horizonte avalia o transporte público do município. Linhas que não dão conta da cobertura da cidade, horários descumpridos, superlotação e problemas nos veículos são algumas das principais queixas.
Um estudo, publicado pelo Instituto Cidades Responsivas no início deste ano, indicou que a capital mineira possui uma média de 105 reclamações por dia em relação aos ônibus. Ou seja, uma reclamação a cada 15 minutos.
A manicure Carmen dos Santos, de 47 anos, que depende do transporte público para se deslocar até as casas de suas clientes, relata um cotidiano de transtornos.
“A gente paga caro para pegar o ônibus e muitas vezes tem que ficar em pé, quase esmagada, porque está lotado. Quando chove, a água cai na nossa cabeça. Além disso tem a espera. Já fiquei quase uma hora esperando”, descreve.
A trabalhadora caracteriza a situação como “caótica” e diz que nada explica porque um serviço tão caro tem uma qualidade tão ruim.
Entre as capitais brasileiras, Belo Horizonte tem uma das tarifas de ônibus mais caras. Enquanto o belo-horizontino paga R$ 5,75 para acessar o transporte, o morador do Rio de Janeiro — cidade aproximadamente quatro vezes maior em extensão que BH — paga R$ 4,70, por exemplo.
É em meio a esse cenário que tramita na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) o Projeto de Lei (PL) 60/2025, que propõe a gratuidade nos ônibus do município. Especialistas têm avaliado que a proposta, de autoria da vereadora Iza Lourença (Psol), pode melhorar a qualidade do serviço, ampliar o acesso da população aos equipamentos públicos e ainda fortalecer a economia da cidade.
Modelo em crise
Para o urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Roberto Andrés, o projeto pode ser uma resposta ao atual modelo que, na avaliação dele, além de gerar consequências “caóticas”, como destacou a manicure Carmen dos Santos, está em crise.
“E os impactos à população são tremendos. São pessoas que não conseguem se deslocar, que não conseguem ir à escola, ao posto de saúde, procurar emprego. São pessoas que gastam horas por dia em um ônibus lotado e chegam esgotadas, massacradas, em suas casas. É um sistema que expulsa o usuário dos ônibus, aumentando carros e motos nas ruas, de modo que aumentam os congestionamentos e os acidentes”, chama a atenção.
“Quando a gente pensa que não tem leitos suficientes de hospitais em Belo Horizonte ou prontos-socorros dedicados a acidentes de motos, isso é também uma decorrência da ausência de uma boa política de transporte e mobilidade. Esses impactos afetam toda a sociedade, mas prejudicam em especial as pessoas mais vulneráveis”, continua Andrés.
Apenas em 2024, a capital mineira registrou mais de 15,1 mil ocorrências envolvendo motocicletas, o que representa um aumento de 12,6% em relação ao ano anterior, de acordo com dados do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Luta pela gratuidade nos ônibus de BH ganha novo fôlego
Em contraposição a esse cenário, a Constituição Federal determina o transporte público como um direito essencial, assim como a saúde e a educação, por exemplo. Dessa forma, para Roberto Andrés, resolver a questão do financiamento é um dos passos para superação do atual modelo. Por isso, o debate sobre a gratuidade nos ônibus é fundamental.
“A gente precisa que a população possa se deslocar pela cidade. Serviços públicos essenciais não são passíveis de cobrança do usuário e devem ser financiados pela coletividade. A gente não cumpre no Brasil algo que está estabelecido na Constituição. Os benefícios da tarifa zero para a população são muitos. Nas cidades onde existe a gratuidade, são de três a quatro vezes mais pessoas circulando”, destaca.
“São pessoas indo à escola, ao posto de saúde, ao comércio, procurar emprego, etc. Tudo isso gera aumento na venda do comércio, redução de trânsito, redução de congestionamento, redução de poluição e de acidentes. São benefícios para toda sociedade”, continua o urbanista.
As mobilizações pela gratuidade nas tarifas de ônibus ganhou um novo fôlego na capital mineira com o PL 60/2025, que está em análise na Comissão de Legislação e Justiça (CLJ) da CMBH, mas já começou a tramitar na Casa com o apoio da maioria dos vereadores.
BH já teve greve de passageiros
Ao mesmo tempo, a luta pela qualidade do transporte é histórica no município. Ainda na década de 1950, Belo Horizonte chegou a ter uma greve de passageiros. Entre as décadas de 1970 e 1980 também houve um amplo movimento de usuários que pautavam a ampliação e instalação de novas linhas de ônibus, em especial no Barreiro, que fica na região oeste da cidade.
Mais recentemente, no início dos anos 2000, fortaleceu-se também a articulação de estudantes pelo passe livre. E, em meio às manifestações de junho de 2013, surgiu o Movimento Tarifa Zero.
“A principal pauta das manifestações era o transporte e, a partir disso, organizamos o pleito por transporte totalmente gratuito em Belo Horizonte. Fizemos um projeto de lei de iniciativa popular, ainda em 2013. De lá para cá, fomos fortalecendo o movimento”, relembra o economista e membro do Movimento Tarifa Zero André Veloso.
Entre as principais ações desenvolvidas pelo coletivo no último período está o questionamento ao atual contrato de gestão do serviço.
Em 2008, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) celebrou contratos de concessão com quatro consórcios, que passaram a ser responsáveis pelas redes de transporte e serviços (RTS) da cidade. A responsabilidade foi distribuída de acordo com a divisão do município em quatro áreas. Para André Veloso, os contratos estão na raiz do problema do sistema de transporte público da cidade.
Avanços
Ainda assim, na avaliação do economista, mesmo diante do atual cenário, o movimento conquistou avanços importantes no último período, e o PL 60/2025 pode permitir a cidade avançar ainda mais.
“Ainda estamos muito longe do que a gente quer, mas conseguimos vitórias importantes, como a lei do subsídio, o maior controle sobre o transporte, as condições de alguma participação popular. Agora, a gente está mais perto ainda de conseguir a tarifa zero, por causa desse projeto de lei”, finaliza Veloso.
Desde 2022, a PBH concede subsídio financeiro às empresas que administram o transporte público, como forma de evitar o aumento do valor cobrado aos usuários dos ônibus.