Depois de uma vida dedicada à pesca, Jerônimo Nunes Coutinho lamenta ao ver o que restou do seu barco, encostado num tronco de árvore no quintal da pequena propriedade rural onde vive, em São Mateus (ES). “Dá vontade de chorar. Esse barco, eu pescava… Hoje, só existe os restos mortais”, lamenta, em entrevista ao Brasil de Fato.
Ele é uma das pessoas que teve a vida impactada pelo rompimento da barragem do Fundão, da empresa Samarco Mineração S/A, no município de Mariana (MG), em novembro de 2015.

O crime ambiental matou 19 pessoas e despejou 44 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro na bacia do rio Doce. Poucos meses depois, a lama chegou até o Espírito Santo e seguiu para o mar.
“Em janeiro, na primeira lua de 2016, chegou em nosso município São Mateus. Já estava dentro dos manguezais”, lembra Adeci Sena, pescador, que atualmente trabalha como funcionário na prefeitura da cidade. “Se eu não tivesse outra renda, eu não saberia como viver (…) A gente passa um momento difícil para os pescadores”, diz.
Quase dez anos depois do rompimento da barragem, os pescadores de São Mateus ainda sentem os impactos da tragédia. “Deu uma parada de morrer os peixes, mas quando a chuva vem, aquele rejeito que tá por cima da terra mistura com a água, aí morrem os peixes, morrem os animais e a gente vai naquele clamor”, relata Coutinho.
O relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Pesqueiras no Brasil, lançado na terça-feira (1º), indica que empresas privadas, como a Samarco, são os principais agentes causadores de conflitos em comunidades pesqueiras no Brasil.
Organizada pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), a pesquisa, realizada em 16 estados brasileiros, revela que 77,6% dos conflitos nesses territórios são causados por corporações.
“As denúncias e testemunhos apresentaram vários casos de contaminação das águas e, sendo assim, dos territórios pesqueiros, pelos empreendimentos vinculados à mineração, a produção de energia seja hidrelétrica ou eólica, ao agronegócio e ao transporte hidroviário”, informa o documento.
O crime da Samarco é mencionado como um caso de destaque nos testemunhos dos pescadores entrevistados pela CPP. Em São Mateus, a tragédia moldou o cotidiano das comunidades.
“Acabou com tudo, não existe mais nada. O rio deserto, as abelhas não existem. É desse jeito, isso dá vontade de chorar”, diz Coutinho. Hoje, ele não pesca mais e vive com a ajuda da família.
De acordo com um estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Pesca de São Paulo e da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e publicado em 2024 na revista Ocean and Coastal Research, quase metade dos pescadores do Espírito Santo tiveram que abandonar a atividade. Os pesquisadores ouviram 441 pescadores artesanais. Desses, 96% informaram ter sofrido impactos do rompimento da barragem.
“Nós fomos impactados. E também impactou nós na saúde, porque a água foi também poluída”, conta Sena. Entre os danos à saúde, os pescadores relatam aumento nos casos depressão e de câncer, doença que vitimou um irmão e uma irmã de Adeci. Adilson de Sena morreu em 2024 e Maria das Graças de Sena faleceu no início de 2025.
Lama matou peixes e animais
A diminuição de pescado é o impacto mais observado pelas comunidades, aparecendo em 77,6% dos relatos. Em São Mateus, a chegada da lama tóxica afetou o mangue, os rios e o mar de forma devastadora.
“Começou a morrer os manguezais e as espécies começaran a morrer, que é o caranguejo, é o peixe, o siri, o camarão da água doce”, lembra Sena.

Além de pescar, Coutinho produzia alimentos orgânicos, como frutas e hortaliças, e criava animais para vender na feira. “Eu pescava, até a faculdade da minha filha consegui pagar”, conta.
Mas o impacto ambiental do vazamento da lama tóxica foi tamanho que animais como porcos e vacas que beberam a água contaminada morreram.
“Quando a maré enche, a água vem. Vem e tem aquelas bacias no terreno. Acumulou a água e os animais beberam, morreram todos. Até hoje não fui indenizado”, diz.
Por lá, até as abelhas desapareceram. De um rio, antes farto, restou uma água avermelhada. “É muito raro pegar um peixe”, lamenta.
O pescador relata que os caranguejos voltaram a aparecer no mangue. “O caranguejo é muito resistente. Ele tá voltando aos poucos, mas eu não como, não pego e não levo para ninguém comer, porque contaminado eu não quero para mim, não quero para os outros”, diz Coutinho.
Sena e Coutinho informam que nem todas as pessoas afetadas pelo crime ambiental foram indenizadas.
Resposta da empresa
Segundo a Samarco, São Mateus (ES) aderiu ao Acordo de Reparação da Bacia do Rio Doce, que prevê o repasse de R$ 197 milhões para o município. A adesão reforça o compromisso com as ações detalhadas no Acordo, dentre elas, proteção e assistência social.
“O município está incluído em várias frentes de indenização. Além da opção para adesão ao Programa Indenizatório Definitivo – PID para a população em geral conforme critérios de elegibilidade previstos do acordo, agricultores familiares e pescadores profissionais do município, que forem elegíveis, poderão ingressar na plataforma específica para esse público, aberta no dia 05 de abril, e terão 60 (sessenta) dias para ingresso. O processo de adesão segue aberto e os pagamentos serão iniciados ainda em 2025”, informa a empresa, por meio de nota encaminhada pela assessoria de imprensa.
Segundo a empresa, o atendimento psicossocial às comunidades atingidas não é tratado de forma específica no acordo, “mas as equipes de campo para atendimento social estão aptas a dar orientações às comunidades em caso de necessidade de indicação de atendimento especializado”.
“No campo socioeconômico, destaca-se o atendimento às comunidades quilombolas de Sapé do Norte, nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. Desde 11 de março, está em curso a coleta de assinaturas do Termo de Quitação para o recebimento retroativo do Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), conforme lista validada pelos Ministérios da Igualdade Racial e do Desenvolvimento Agrário. Os pagamentos do AFE retroativo para essas comunidades já foram iniciados”, diz a empresa.