A Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), viveu uma manhã de emoções, aplausos e entusiasmados pronunciamentos a favor da democracia, da liberdade e da justiça social. O ato no auditório 1 homenageou o jornalista Vladimir Herzog, morto há quase 50 anos pela ditadura militar.
Vários discursos, reunindo antigos e novos estudantes, lotando o espaço, ressaltaram a trajetória de Vladimir, a sua importância para a redemocratização do Brasil, o momento de dificuldades que o país enfrenta, a questão da anistia para as pessoas envolvidas no 8 de janeiro de 2023 e o crescimento da extrema direita no mundo.
O ato serviu também para reinaugurar uma nova placa no Diretório Acadêmico da Fabico, em homenagem a Vladimir Herzog. Em 1975, no auge da ditadura militar, os alunos haviam colocado uma placa no diretório, logo retirada por ação da diretoria da faculdade. Agora, recolocada de onde foi retirada, com um ato político chamado Vladimir Herzog 50 anos – Fabico Presente! teve o objetivo de preservar a memória dos que defenderam a democracia.

Foi destacado o trabalho da presidenta do Diretório Acadêmico da época, Miriam Gusmão, que resistiu até onde foi possível a retirada da placa, mas não entregou a chave do centro dos estudantes para que não fosse destruído todo o acervo ali existente.
Com arte do cartunista Neltair Rebés Abreu, o Santiago, a placa traz um texto sobre Vladimir Herzog: “Para que não se esqueça, para que nunca mais se repita. Ditadura nunca mais!”. O evento marcou a passagem do Dia do Jornalista, comemorado ontem (7).
A ideia da homenagem partiu dos alunos de 1975 e teve a adesão de entidades profissionais, jornalistas daquela época e dos tempos atuais. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) encampou a ideia e declarou 2025 o Ano Vladimir Herzog.

Manifestações
A diretora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Ana Taís Martins, ressaltou no seu pronunciamento que a luta pela liberdade continua. “Herzog não se calou e teve uma morte cruel e injusta. Seu nome nunca será esquecido. Este ato político significa um presente que atravessa o tempo.”
Eduardo Meditsch, professor universitário e pesquisador, uma das principais referências em estudos de rádio e em teorias do jornalismo, falou sobre os horrores de se viver na ditadura. “É pior que uma pandemia”, afirmou, dizendo que foi ele quem mandou fazer a placa em uma loja da Galeria Chaves, no Centro de Porto Alegre. “Foi um pavor, pensei que seria dedurado ou preso.”
Marcia Turcato, jornalista, autora do livro Reportagem: da ditadura à pandemia, integrante do grupo de estudantes que estava na Fabico em 1975 e uma das articuladoras do evento, lembrou que a ideia da homenagem e de reinauguração de placa de Vladimir aconteceu durante a enchente, quando as pessoas estavam recolhidas e não poderiam sair de casa com muita frequência. “Queríamos fazer um tributo ao jornalista morto pela ditadura e a partir daí mobilizamos as pessoas, procuramos todo mundo daquela época e os novos alunos e aqui estamos numa cerimônia de sucesso.”

Roberta Baggio, presidenta da Comissão da Memória e da Verdade, criada para analisar as arbitrariedades cometidas durante a ditadura na Ufrgs, relembrou os expurgos de professores e o trabalho que está sendo feito para restabelecer a verdade e mostrar o que realmente aconteceu naqueles tempos, “além de honrar quem nos antecedeu”.
Sérgio Gomes, diretor da Oboré – Projetos Especiais em Comunicações e Artes e integrante do Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog, fez um discurso emocionante e afirmou que “a homenagem dos estudantes da Ufrgs não preserva a vida de Vlado, mas os sonhos do Vlado e realiza as suas esperanças”.
Mateus Fonseca e Lucas Fagundes, em nome dos alunos atuais e do Diretório Acadêmico, foram enfáticos em seus pronunciamentos na defesa da democracia e da cidadania, da universidade pública e da luta permanente contra os que querem reviver agora os períodos duros da ditadura. “Estamos aqui”, garantiram.
Também foi apresentado um vídeo de Ivo Herzog, filho de Vladimir e Clarice Herzog, mostrando a sua alegria pela homenagem ao pai, “um homem que sempre lutou pela justiça social”. Ao final, o mediador do encontro, o professor do curso de Jornalismo Luiz Artur Ferraretto anunciou que o Auditório 2 da Fabico também passará a ser chamado Vladimir Herzog.
Estavam presentes na cerimônia o ex-governador Olívio Dutra e o ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont. José Nunes, presidente da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), e Laura Santos Rocha, presidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rs (SindJoRS), além dos diretores Vera Daisy Barcellos, Neusa Ribeiro, Adroaldo Corrêa e Celso Schröder, também participaram do ato.

Trajetória de Vlado
Vladimir Herzog não é natural de algum canto do Brasil. Veio de longe, mas lutou aqui por democracia e justiça. Nasceu em Osijek (então parte da Iugoslávia, atualmente Croácia) em 27 de junho de 1937. Morou em Banja Luka, onde seus pais tinham um comércio, até agosto de 1941, quando o exército nazista ocupou a cidade. A família decidiu mudar de ares e foi para a Itália.
No novo país, até 1944, a família Herzog morou em três cidades italianas: Fonzaso, Fermo e Magliano di Tenna. Depois, mudaram-se para um campo de refugiados em Bari, onde permaneceram por dois anos. No fim de 1946, emigraram para o Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro do dia 24 de dezembro. Era um guri de 9 anos.
Logo depois foram para São Paulo. Estudou no Colégio Estadual de São Paulo, participou de grupos de teatro amadores e ingressou na Faculdade de Filosofia na Universidade de São Paulo – onde conheceu Clarice Ribeiro Chaves, sua futura esposa.
Sua carreira como jornalista começou em 1959, como repórter em O Estado de S. Paulo. Ali, cobriu a inauguração de Brasília, a visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil e a posse de Jânio Quadros. Em 1962, foi à Argentina cobrir o Festival de Mar del Plata.
Entusiasmado, na volta iniciou a carreira no jornalismo cultural, em especial à crítica de cinema.
Apaixonado pelo cinema Vlado também se dedicou à produção cinematográfica, produzindo o documentário em curta-metragem Marimbás e colaborando em outras duas obras – Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla) e Viramundo (Geraldo Sarno).
Como jornalista e comunicador, passou pela TV Excelsior, Rádio BBC de Londres – o que o levou a morar na Europa e revisitar as cidades de seu passado –, Revista Visão, agência de publicidade J. Walter Thompson, TV Universitária da UFPE, jornal Opinião e foi professor de jornalismo da FAAP e da ECA-USP. Pela TV Cultura, teve duas passagens: em 1973 e em 1975, quando assumiu a direção do jornalismo em setembro de 1975. Os dados biográficos foram cedidos pelo Instituto Vladimir Herzog.
Em 24 de outubro de 1975, com 38 anos, um dia antes da sua morte, militares haviam procurado Vlado na TV Cultura. O próprio jornalista combinou que estaria disponível na manhã do dia 25 para o interrogatório. Vlado compareceu espontaneamente à sede do (DOI-Codi/SP), na Vila Mariana, para depor. Ali, foi assassinado.
Além da tortura e violência, forjaram uma falsa versão de suicídio, que não se sustentou e levou uma multidão de mais de 8 mil pessoas à Catedral da Sé e todo o entorno para a missa de 7º dia do jornalista. O ato ecumênico que se viu ali, com D. Paulo Evaristo Arns, o Rabino Henry Sobel e o reverendo Jaime Nelson Wright, foi um marco na luta pela Democracia e o início da derrocada do regime ditatorial.
Reações
Em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu, de forma oficial, que Vlado foi assassinado e concedeu uma indenização à sua família, que recusou. Os familiares julgaram que “o Estado brasileiro não deveria encerrar o caso dessa forma. Eles queriam que as investigações continuassem. O atestado de óbito, porém, só foi retificado mais de 15 anos depois”, destacou a ABI.
Só em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, bem como pela ausência de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato de Vlado. O tribunal internacional considerou, ainda, o Estado como responsável pela “violação ao direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog”, mencionou a ABI.
Instituto
O Instituto Vladimir Herzog (IVH) é uma organização da sociedade civil criada em junho de 2009 para celebrar a vida e o legado de Herzog. A instituição tem como missão trabalhar com a sociedade pela defesa dos valores da Democracia, dos Direitos Humanos e da Liberdade de Expressão. Nossas ações se organizam em três programas: Educação em Direitos Humanos; Jornalismo e Liberdade de Expressão; Memória, Verdade e Justiça. Dedicamos também nosso trabalho, de forma transversal, às temáticas de gênero, raça e meio ambiente, conforme relata o IVH.

A atuação da organização parte do reconhecimento de que o Brasil vive um momento de aumento crescente de discursos e práticas de ódio, naturalizando cada vez mais as violências sociais já existentes. As causas são complexas e historicamente determinadas, mas podemos afirmar que o país não promoveu processos de elaboração coletiva de momentos históricos de grande violência social.
Sem a reparação social e política, o país hoje se depara com uma crescente cultura de violência e discriminação que viola os direitos fundamentais e os acordos internacionais de Direitos Humanos dos quais é signatário. “Aí se encontra o trabalho do IVH e de seus parceiros para honrar a trajetória e os valores de Vlado: ajudar na construção de um novo paradigma para nosso tempo, a ser erguido sobre os princípios elementares da dignidade humana. Temos o privilégio de caminhar no presente, com a sociedade, em direção a um país mais íntegro, mais justo, mais democrático e socialmente responsável”, diz informações do IVH, que participará das homenagens da ABI ao jornalista.
Só agora, em 31 de janeiro de 2025, a 2ª Vara Federal Cível do Distrito Federal concedeu à publicitária Clarice Herzog, 83, viúva do jornalista Vladimir Herzog, pensão vitalícia em decorrência do assassinato do marido. A decisão, proferida em liminar (urgente e temporária) confere a Clarice pagamentos pelo governo no valor de quase R$ 35 mil mensais em reparação pela morte de Herzog e afirma que há plausibilidade no pedido após a declaração do jornalista como anistiado político e a confirmação da execução pelo relatório da CNV (Comissão Nacional da Verdade).
Segundo o juiz Anderson Santos da Silva, o poder público brasileiro é responsável pela violação dos direitos e garantias no caso Herzog, já julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para ele, a idade de Clarice e o diagnóstico de doença de Alzheimer em fase avançada também são fatores relevantes para conferir a liminar.
