“Nós somos como as abelhas: essenciais, ameaçadas e ignoradas. A política feita por mulheres também é assim – ninguém liga, exceto nós mesmas. Se nos reunirmos e nos protegermos, vamos dar certo. Como as abelhas, seguimos garantindo a vida, mesmo sem sermos vistas.”
A afirmação foi feita pela ex-deputada federal e fundadora do Instituto e se fosse você?, Manuela d’Ávila, durante o evento “Mulheres em Lutas: diversas, mas não dispersas”, na quarta-feira (2). Com o auditório do Centro Cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) lotado, o debate foi um aquece para o 1º Festival Mulheres em Lutas (Mel), que será realizado em São Paulo (SP) entre os dias 11 e 13 de abril.
O encontro em Porto Alegre teve como debatedoras a reitora da Ufrgs, Márcia Barbosa, a escritora Winnie Bueno, a ex-parlamentar Áurea Carolina e a vereadora de Porto Alegre Atena Roveda (Psol). Antes do debate, houve a apresentação de Roberta Moura, cantora e contadora de histórias, e Renato de Lara, percussionista, que entoaram cantos e versos dedicados às orixás (yabás) Oyá, Oxum , Nanã e Yemanjá.

Durante quase duas horas as debatedoras falaram sobre suas trajetórias, percalços, conquistas e desafios no que tange a participação política das mulheres nos mais diversos segmentos.
Democracia é espaço onde tudo pode coabitar
Para Carolina, não dispersas significa cultivar o estar juntas, como contraponto. “Fomos treinadas pra disputar, competir, aniquilar.” Para ela, com o avanço extrema direita e outras situações de difícil compreensão, reverter isso tornou-se um desafio. Contudo, frisa acreditar no poder do hiperlocal, que é a política da proximidade, dos cuidados, do que parece pequeno, mas que importa muito. “Somos realizadoras do possível com nossos corpos e tecnologias coletivas”, acrescenta.
Em sua avaliação, a democracia é espaço onde tudo pode coabitar. Cita como exemplo os mandatos coletivos, como invenções ousadas. “Os partidos, como estão muito ocupados em disputas de teses e grupos e outras coisas, perdem a dimensão dessa organização mais sistemática de trabalho.”

Citando Negro Bispo, Carolina também fala sobre a palavra que aprendeu com ele, “resolutividade”, que está no saber ancestral de comunidades negras, indígenas e periférica. “Como que a gente lida com a vida aqui e agora. Como produz as melhores soluções possíveis, nas condições e limites que nós temos. A gente não paralisa diante de um impasse teórico, de um impasse de disputa que não tem pra onde ir. Pelo contrário, a gente vai focar no que é importante, política de cuidados. Política de cuidados é resolutividade.”
Por fim afirma ser preciso acabar com a farra das anistias partidárias. “Para mim está tudo no mesmo combo, de coisas, de cuidados, de ousadia e de determinação. De que podem querer nos afugentar, nos expulsar, a gente se recolhe, se regenera.”
A não dispersão transforma
Na avaliação da reitora da Ufrgs, ser diversa tem caráter político, democrático e é mais eficiente. “A não diversidade é movimento dos incompetentes. Nem chamo de extrema direita, são os incompetentes”, frisa.
Barbosa cita um fenômeno da física, a não dispersão, para ilustrar a transformação. “O líquido para o sólido começa em umas sementinhas isoladas que vão crescendo até chegar a um tamanho limite que explode e dá um susto na gente. Nós temos que começar do pequeno. A gente, crescendo, se fortalecendo, se conectando, vai fazer uma transição. Pequenos núcleos se conectam e mudam tudo.” A reitora ressalta que o mundo precisa de outro modelo — e precisa das “senhorinhas também incluídas”.

Ao trazer sua vivência e trajetória no campo das Ciência Exatas, ela afirma que ser física, significa, na maioria das vezes, ser a única mulher na sala. Segundo relata a reitora, muitas mulheres no segmento optam por ficar parecidas com os homens (físicos), o que não é uma boa imagem. “Algumas de nós vão ter que entrar no sistema e explodir por dentro – com apoio da rede.”
Para a reitora, na construção de um novo mundo, haverá lugar para todo mundo, juntos compartilhando um desenho que é amor. “A gente vai ter que se desfiar do desenho velho e desenhar esse mundo diferente, conversando, nessa escuta, nessa coesão, que é muito complicada.”
“A diversidade pode silenciar. É preciso cuidado”
O alerta é feito por Winnie Bueno que destaca que a diversidade não pode ser um instrumento de silêncio. Para a ativista, é impensável falar da luta de mulheres no Brasil sem falar na luta de mulheres negras. E destaca que o feminismo negro não é apêndice, vertente isolada ou desdobramento do feminismo branco.
“É projeto radical de reorganização do mundo. O que a gente propõe é refundar a partir de outras bases que estão afastadas, inclusive, dessa lógica que é violenta, que se baseia no consumo, que exclui o todo tempo. Olhar para os feminismos negros, olhar para os transfeminismos, é fundamental para pensar esse movimento”, enfatiza.
Segundo expõe Bueno, o movimento das mulheres negras e intergeracional. “Pensamos o movimento de mulheres a partir daquelas que vieram antes de nós. Isso tem a ver com a própria epistemologia dos terreiros. Vamos sempre se referenciar naquelas que vieram antes e que ainda hoje estão lutando com a gente. Honramos quem veio antes.”

Em sua fala a escritora citou a intelectual Lélia Gonzalez e a historiadora Beatriz Nascimento. De acordo com Bueno há um processo de silenciamento das experiências das mulheres e homens negros. “É um processo longo de epistemicídio, onde o pensamento político, o pensamento social que é enunciado, a partir de corpos negros, é desvalorizado. Machado de Assis é negro. Mas silenciaram isso.”
“Nos tornamos ativistas porque enfrentamos racismo e sexismo desde cedo. Não temos opção”, ressalta a escritora. Ao mesmo tempo, pontua que a esperança é ativa e que, para mudar o mundo, não pode ser “com os mesmos homens brancos de sempre”. “Chegou a hora da gente desorganizar isso e botar aqueles e aquelas que historicamente sustentam esse país para ser protagonistas da mudança.”

“Querem nos empurrar pro silêncio. Mas não vamos aceitar”
“A bala me atingiu no peito da existência. Depois disso, não quis mais costurar minha vida a nenhuma norma”, reflete Atena Roveda. Segundo ela, mulheres trans incomodam. “Querem nos empurrar pro silêncio. Mas não vamos aceitar.” Citando a emblemática frase da escritora francesa Simone de Beauvoir, “não nasce-se mulher, torna-se”, a vereadora chama atenção de que não há um destino definido sobre as existências, seja econômico ou social.
“Em setembro deste ano completo 11 anos de ser uma travesti em Porto Alegre. O nosso destino todo aqui dentro é um só, a cova. Isso é o que nos une, a cova que eles querem fazer com que entremos. A cova do silêncio, da violência, da agressão, do silenciamento, da experiência ruim, do acostumar-se (…) Eu não vou conviver com esse espinho não, querido.”

Roveda reforça a necessidade de subverter a lógica do exercício do poder político. “Eu sou uma figura pública, a minha responsabilidade é sim um milhão e trezentas mil. Antes eu era uma travesti que escrevia livro, publicava. E de repente eu tenho que analisar 94 bairros e receber demandas que me preocupam.”
Dentro do ambiente da política, nos embates no parlamento, a vereadora afirma que fingir na política doeu, mas virou ferramenta. “Sorriso, silêncio, unhas pintadas: tudo é resistência. Política é encontro entre existências. Se for pra sofrer, que seja mudando o mundo”, finaliza a parlamentar.

Sejamos abelhas
“A nossa existência, das mulheres, das mulheres e dos homens negros, das mulheres trans, é uma existência ameaçada. E a sensação que eu tenho é que, tal qual as abelhas, ninguém, exceto nós, está nem aí. Ao mesmo tempo, talvez o único caminho para a construção de uma alternativa para salvar a nossa espécie”, afirma d’Ávila.
Para que as existências floresçam, prossegue a ex-deputada, é preciso, tal como as abelhas, que as mulheres se sintam seguras e protegidas para entregar à sociedade, ao mundo, aquilo que elas podem entregar. “A única alternativa verdadeiramente diferente e que pode transformar, romper, construir um novo mundo, passa pelas mãos das mulheres”, conclui.
