O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição, Bernard Duhaime, divulgou nesta segunda-feira (7) um documento com observações preliminares da visita que realizou ao Brasil entre os dias 30 de março e 7 de abril. O foco foi a avaliação das medidas adotadas pelo Estado brasileiro diante das graves violações cometidas durante a ditadura militar (1964-1985) no país.
Entre as principais conclusões registradas no documento de 10 páginas, escrito em primeira pessoa, o relator apontou que a violência policial e a tese do marco temporal representam uma continuidade dos crimes cometidos pelo regime ditatorial contra a população negra e os povos indígenas. “Essa violência adotou as formas do colonialismo, escravidão, ditadura e as atuais instâncias de violência institucional direcionada aos setores mais marginalizados da sociedade, como povos indígenas, pessoas afrodescendentes e camponeses. Os danos produzidos por essas práticas têm sido vivenciados em todo o território do país e sentidos ao longo de sucessivas gerações.”
Duhaime deu atenção especial à situação dos povos originários e se reuniu com representantes do Fórum de Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas. O relator criticou a tese do marco temporal por “omitir”, nas suas palavras, que diversas comunidades foram expulsas de seus territórios durante o regime militar, até 1985. Segundo a tese do marco temporal, indígenas só podem ter demarcadas as terras ocupadas por eles em 1988, ano da promulgação da Constituição.
Ele também denunciou a continuidade da brutalidade policial, miliciana e paramilitar, sobretudo contra minorias específicas. “Execuções sumárias, tortura e detenções arbitrárias continuam a permear a sociedade brasileira em taxas alarmantes, afetando particularmente povos indígenas, camponeses e pessoas afrodescendentes”, ressaltou.
Para Duhaime, é urgente uma reforma na segurança pública e a responsabilização de agentes envolvidos em abusos. Segundo ele, a ausência de punição “encoraja e perpetua ainda mais tais práticas”.
No texto, o relator elogiou a contribuição da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos para a recordação das graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura. No entanto, destacou que os dados se concentraram em perseguições políticas, deixando de fora a maior parte dos crimes cometidos contra indígenas, especialmente aqueles não envolvidos diretamente na resistência ao regime. “A natureza dos danos sofridos por setores específicos da sociedade não foi totalmente documentada nem foi objeto de ações estatais contextualizadas de forma adequada”, pontuou.
Duhaime mencionou o relatório Figueiredo e arquivos do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que registram massacres, deslocamentos forçados, trabalho escravo, tortura e desaparecimentos. “Muitas dessas graves violações de direitos humanos ocorreram no contexto da expansão das fronteiras agrícolas, de grandes obras de infraestrutura, como estradas e barragens, ou como resultado da extração de indústrias extrativistas”, denunciou.
Apesar do histórico de violações, o Alto Comando das Forças Armadas e o Ministério da Defesa se recusaram a se reunir com o relator durante a visita ao Brasil. Ele lamentou a decisão e abriu espaço para que os órgãos encaminhem informações por escrito até o fim deste mês.
O relatório final de Bernard Duhaime será apresentado em setembro, durante a 60ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça. O documento trará recomendações formais ao Estado brasileiro e a outros atores envolvidos.