Ana Cristina Gayotto de Borba esposa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jorge Luiz de Borba – é um dos 155 novos nomes incluídos na Lista Suja do trabalho escravo, atualizada nesta quarta-feira (9) pelo governo federal.
Num caso de repercussão internacional, uma fiscalização conjunta de cinco órgãos públicos concluiu que Ana Cristina manteve Sônia Maria de Jesus em regime de trabalho escravo doméstico por quase 40 anos na residência da família Borba, em Florianópolis. Ela e o marido, no entanto, negam qualquer irregularidade.
Também entram a rede varejista Oba Hortifruti e Marcos Rogério Boschini, genro de um dos condenados pela chacina de Unaí (MG), de 28 de janeiro de 2004, em que quatro servidores do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) foram assassinados. Além deles, uma prestadora de serviços do Rock in Rio, pecuaristas invasores da Terra Indígena Apyterewa (PA), produtores de café e de carvão vegetal estão na relação.
Divulgada pelo MTE desde novembro de 2023, o cadastro é atualizado semestralmente. Ele torna públicos os dados de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas por submeter trabalhadores a condições análogas às de escravo.
Os nomes são incluídos após os empregadores autuados em fiscalizações do governo federal exercerem o direito de defesa em duas instâncias na esfera administrativa, e permanecem no sistema por dois anos. Eles podem fazer acordos para irem para uma lista de observação, o que demanda o cumprimento de uma série de critérios e compensações.
Apesar de a portaria que regulamenta a Lista Suja não impor bloqueio comercial ou financeiro às pessoas citadas, a relação tem sido usada por bancos e empresas para gerenciamento de risco, dentro e fora do Brasil. Por essa razão, as Nações Unidas consideram o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo.
Na atualização desta quarta-feira, as atividades econômicas com maior número de novos empregadores são criação de bovinos (21), cultivo de café (20), trabalho doméstico (18), produção de carvão vegetal (10) e extração de minerais diversos (7). Com a atualização, a lista passa a contar com um total de 745 nomes (veja todos aqui).
Caso Sônia
Ana Cristina entrou para a lista após ser autuada pelos auditores fiscais do MTE em junho de 2023, durante a operação que resgatou Sônia Maria de Jesus. No auto de infração, o nome de Ana Cristina aparece como empregadora. Por essa razão, foi ela a incluída na Lista Suja. Apesar de o casal ser apontado como o responsável pela exploração da trabalhadora, os auditores identificaram um número maior de elementos de subordinação entre Ana Cristina e Sônia.
A família sempre negou que Sônia atuasse como doméstica e alega que ela é membro da família. Durante o resgate, porém, os auditores-fiscais descobriram que Sônia, aos 50 anos na época, trabalhava para a família desde os 9, quando foi levada de uma creche na Grande São Paulo pela mãe de Ana Cristina, Maria Leonor Gayotto.
Sônia trabalhava na residência dos Borba cuidando de Maria Leonor e exercendo tarefas domésticas, como arrumar as camas, passar a roupa e lavar a louça. Além de não ter carteira de trabalho, salário, descanso remunerado, férias, 13º e outros direitos, Sônia também tinha passado a maior parte da vida sem documento de identidade, o qual obteve apenas em 2019.
Cega de um olho e surda, Sônia também não havia sido alfabetizada em Libras (língua brasileira de sinais) nem em português, comunicando-se por gestos. Segundo a fiscalização, ela fazia refeições com as demais empregadas e dormia ora em um quarto anexo à área de serviço da residência (onde ficavam seus pertences), ora em um quarto de hóspedes dentro da casa.
Após o resgate, o casal negou todas as acusações, disse que Sônia foi criada como filha e entrou com ação para ela ser restituída ao convívio dos Borba. Com aval do STJ e do STF, tiraram Sônia de um abrigo e a levaram de volta para casa, apenas três meses após o resgate. A situação levou organizações sociais e sindicatos a pedir à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão ligado à OEA (Organização dos Estados Americanos), que o Brasil seja questionado sobre o caso.
O processo ainda deve ser analisado pela 2ª Turma do Supremo. O desembargador e a esposa ingressaram também com pedido de paternidade socioafetiva. A advogada da família foi procurada novamente pela reportagem, mas não houve retorno. O espaço segue aberto a manifestações.
Fazenda de condenado pela chacina de Unaí entra na Lista Suja
Quem também entrou para o cadastro foi Marcos Rogério Boschini, administrador da fazenda São Paulo, em Água Fria de Goiás (GO), onde 84 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão na lavoura de cebola.
O dono da propriedade onde ocorreu o resgate – e sogro de Boschini – é o ex-prefeito de Unaí (MG) Antério Mânica, condenado e preso como um dos mandantes da chacina de Unaí. Em 28 de janeiro de 2004, os auditores-fiscais do trabalho Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e o motorista Ailton Pereira de Oliveira foram executados em uma fiscalização rural de rotina em fazendas no noroeste de Minas Gerais.
No caso da lavoura de cebola, o alojamento que atendia aos trabalhadores estava superlotado, com mofo e forte odor, segundo a equipe de fiscalização. Abrigava os 84 resgatados, apesar de o espaço comportar não mais que 30 pessoas. Por vezes, a fossa transbordava espalhando o mau cheiro.

Alojamento da fazenda São Paulo, de Marcos Rogério Boschini, onde 84 trabalhadores foram resgatados do trabalho escravo na lavoura de cebola (Foto: Divulgação/MPT)
Cerca de 500 famílias do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra ocuparam a fazenda na segunda-feira (7). Segundo o movimento, a área é terra pública e teria sido adquirida de forma ilegal
À Repórter Brasil, Boschini considera uma “injustiça” a inclusão de seu nome na lista. “O próprio MTE liberou as atividades para seguimento normal, com apenas três dias úteis após a fiscalização, dando por cumprida todas a exigências por eles feitas”, declarou o vereador. “As falhas foram administrativas simples”, afirmou.
Pecuária tem mais nomes de empregadores incluídos
A pecuária lidera o ranking de atividades com mais nomes novos na lista, com 21 inclusões. Quatro casos ocorreram durante a operação de desintrusão da Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), realizada no final de 2023.
Um dos trabalhadores resgatados atuava na fazenda Sol Nascente, de Antônio Borges Belfort (PL), vereador do município. Segundo o relatório de fiscalização, na propriedade ocupada por Belfort dentro da área indígena não havia água potável na frente de trabalho, nem banheiro disponível para o empregado, que precisava “fazer suas necessidades fisiológicas no mato, como os animais”.
O vereador é réu na Justiça Federal por criar gado ilegal em terra indígena e usar trabalho escravo na propriedade. O político era um dos maiores criadores de gado na Apyterewa, segundo os cálculos do Ministério Público Federal do Pará, que contabilizou quase mil cabeças comercializadas pelo fazendeiro com origem na área protegida.
Questionado pela Repórter Brasil, Belfort disse que tinha uma casa “dentro de uma situação indígena” e que “nunca um trabalhador foi maltratado”. “Do jeito que a pessoa fizer aqui, para esse pessoal do Ministério do Trabalho é trabalho escravo”, declarou. “Eu vou provar na Justiça. Quero que eles me provem a situação de trabalho escravo lá”, concluiu.
Outro caso da pecuária envolve o ex-vice prefeito de Tucumã Wanderley Dias Vieira (PSD). Em outubro de 2023, dois trabalhadores foram resgatados na fazenda Primavera, que pertence ao político e é vizinha à TI Apyterewa. Eles trabalhavam sem registro e dormiam em meio a galões usados para armazenar agrotóxicos.
A Repórter Brasil o procurou e aguarda um posicionamento.

Alimentos eram armazenados ao lado de agrotóxicos no alojamento dos empregados do ex-vice prefeito de Tucumã Wanderley Dias Vieira (Foto: Reprodução/MTE)
Oba Hortifruti entra na Lista Suja de trabalho escravo
O sacolão Oba entrou no cadastro por submeter 21 empregados ao trabalho análogo ao de escravos em uma de suas lojas na zona norte de São Paulo (SP). De acordo com a fiscalização, realizada em julho de 2023, os trabalhadores eram funcionários da unidade que atuavam no corte de vegetais e no atendimento aos clientes, entre outras funções, e estavam alojados em uma residência próxima.
Segundo a fiscalização, eles dormiam em colchões sujos e malcheirosos em uma casa atingida por um incêndio semanas antes, onde ainda pairava o cheiro de material queimado. O relatório da autuação, acessado pela reportagem, ressalta que ainda havia o risco de incêndio, em razão de fios queimados e desprotegidos no local.
Sem receberem roupas de cama, os trabalhadores usavam trapos e cobertores obtidos por conta própria. Repousavam também em sofás encardidos e com revestimentos rasgados, localizados em uma área externa da residência.
O alojamento não tinha armários, e os banheiros eram úmidos e tinham cheiro forte de suor e urina. Na cozinha, a fiscalização encontrou utensílios e eletrodomésticos imundos, que se misturavam a pratos com restos de comida.
Rede com mais de 70 unidades, especialmente no estado de São Paulo, mas também em Goiás e Distrito Federal, o Oba assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público do Trabalho após o resgate. A empresa se comprometeu a não reincidir no crime de trabalho escravo e a arcar com as reparações de danos morais individual e coletivo.
A empresa foi procurada pela reportagem, mas não retornou. O espaço segue aberto a manifestações.
Terceirizada do Rock in Rio entra para o cadastro

Força-tarefa resgatou 14 trabalhadores no Rock in Rio 2024 (Foto: Reprodução/MTE)
A FBC Backstage Eventos Ltda entrou na lista por submeter 14 trabalhadores a condições de trabalho análogas ao de escravo durante a edição de 2024 do Rock in Rio, conforme já noticiado pela Repórter Brasil. A empresa, que havia sido contratada pela Rock World, organizadora do evento, se recusou a assinar um TAC com o MPT.
Segundo a fiscalização, parte dos trabalhadores era levada a dobrar a jornada por dias seguidos na esperança de receber mais e chegava a trabalhar por 21 horas em um único turno.
“Eles começavam a jornada às 8h e iriam até as 17h. Quando dava o horário, o supervisor perguntava: quem quer dobrar? E eles iam até as 5h da manhã. O problema é que já retornariam três horas depois”, afirmou à época o auditor fiscal do trabalho Alexandre Lyra, um dos coordenadores da operação. Em razão dessa oferta de pagamento maior, eles ficavam e dormiam no chão, em cima de jornal, papelão, usando mochila de travesseiro e utilizando banheiro improvisado.
Os fiscais do trabalho encontraram os 14 trabalhadores precariamente sobre papelões, sacos plásticos ou lonas, alguns com cobertores, demonstrando que havia um planejamento prévio para pernoitar no local. Parte das trabalhadoras resgatadas tomava banho de canequinha no banheiro feminino pela falta de chuveiro. Para garantir que homens não entrassem no local durante seu banho, tinham que tirar a maçaneta da porta do sanitário.
As vítimas atuavam como carregadores de grades, equipamentos, bebidas e estruturas metálicas, na montagem do festival e na limpeza de alguns espaços. Elas haviam sido contratadas com a promessa de receber diárias que variavam de R$ 90 a R$ 150, a depender do número de horas trabalhadas, mas os valores prometidos não foram totalmente pagos.
A empresa foi procurada pela reportagem, mas não retornou até o momento.
Constitucionalidade da Lista Suja
O Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da lista, por nove votos a zero, ao analisar a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 509, ajuizada pela Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), em setembro de 2020.
A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.
O relator destacou que um nome só vai para a relação após um processo administrativo com direito a ampla defesa.
Trabalho escravo hoje no Brasil
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 65 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.
Artigo original publicado em Repórter Brasil .