Um grupo de 15 indígenas, representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), se reuniu com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, no fim da tarde desta terça-feira (8), em Brasília, para discutir o futuro da Lei 14.701, do marco temporal. A lei é questionada no Supremo em cinco ações relatadas pelo decano da corte. A demora causa danos ao travar processos de homologação de Terras Indígenas (TIs), paralisados por decisões baseadas na legislação que os indígenas e o próprio STF consideram inconstitucional.
Antes da reunião com os indígenas, o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (PP-PB), solicitou a prorrogação do processo conciliatório, um dia após se reunir com Mendes. Em tese, a última reunião teria acontecido na última quarta-feira (2).
O coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, criticou a decisão. “Até quando vamos esperar?”, questionou, em assembleia sobre o tema realizada na tarde desta quarta-feira (9), no ATL. “Esse tempo, para os povos indígenas, são décadas, séculos.”
Na avaliação de fontes que acompanham o processo de conciliação, o pedido de Motta vai ao encontro das aspirações do ministro Gilmar Mendes, que estaria preocupado com sua imagem, principalmente pelo histórico de envolvimento do magistrado com a pauta indígena. De acordo com essa análise, Mendes também teme que exista alguma resistência dos demais ministros da corte com o resultado da Câmara de Conciliação. Dessa forma, o ministro quer ganhar tempo para discutir alternativas viáveis e mais palatáveis.
O grupo de indígenas também foi recebido pelo ministro Cristiano Zanin, logo antes da reunião com Mendes. A ideia dos movimentos é convencer outros ministros a rejeitarem a proposta em plenário, caso Mendes insista em levar adiante o Projeto de Lei Complementar.
Após o encontro, a Apib fez uma publicação nas redes sociais sobre a reunião, na qual reforçam a posição sobre o marco temporal e a Câmara de Conciliação no STF.
“Reforçamos que nossos direitos não estão em negociação e que a minuta resultante da câmara de conciliação não resolve o problema dos conflitos territoriais, ao contrário, é uma ameaça à democracia, tende a acentuar o etnocídio e impõe um retrocesso vexatório internacional”, diz a publicação.
“Deixamos claro para ele que a demarcação das terras indígenas precisa ser compreendida como uma política de enfrentamento ao aquecimento global. Aquela que apresenta os resultados mais eficazes e que precisa ser efetivada, especialmente neste momento em que o Brasil está prestes a sediar a COP30”.
Finalmente, os indígenas pediram que o ministro relator das ações contra a Lei 14.701 preze pela coerência, garantindo o respeito das decisões da Suprema Corte. “É preciso que o ministro mantenha a coerência com o julgamento da própria corte, que definiu pela inconstitucionalidade do marco temporal, e defina pela inconstitucionalidade também da lei 14.701/2023, que continua em vigor”, escreveu a Apib.
Já o Conselho Missionário Indigenista (Como), divulgou nota nesta quarta-feira (9), em que afirma não ser “a primeira vez que os povos indígenas se veem diante de uma encruzilhada”.
“É necessário lutar para que a Lei 14.701/2023 seja declarada inconstitucional, sem que seja substituída por outra versão supostamente melhor”, defendeu a organização.
Acordo sem voz
Na tarde desta quarta-feira, os indígenas reunidos no 21º Acampamento Terra Livre (ATL), fizeram uma assembleia com a presença de advogados da Apib para discutir com os demais parentes a situação no Supremo Tribunal Federal.

“Ainda existe uma indefinição sobre esse tema, ainda existe uma ameaça sobre os nossos direitos em relação a esse tema do Supremo Tribunal Federal”, disse o coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, que relembrou a alegria dos indígenas, quando o STF determinou a inconstitucionalidade do marco temporal, em setembro de 2023.
Um dos pontos mais criticados pelos indígenas é a previsão de pagamento de indenização por terra nua, ou seja, aquelas terras que não foram transformadas pela ação humana, que estão sobrepostas a terras indígenas, e que muitas vezes, foram objetos de grilagem. Além de legitimar irregularidades na titulação de terras a entes privados, os indígenas afirmam que a medida pode inviabilizar novas demarcações, por dificuldade orçamentária do Estado.
“Se a gente permitir que isso passe, será mais uma das desculpas para não demarcar território indígena. Se a terra nua passar a ser indenizada, vai ser exatamente para inviabilizar totalmente a demarcação desses territórios”, disse o advogado indígena Guila Xucuru, que acusou o STF de retomar o regime de tutela dos povos indígenas, após as conquistas da Constituição de 88.
“Quando o Supremo Tribunal Federal se permite se encontrar nessa situação de negociar direitos indígenas que o próprio STF reconheceu, a gente vê o surgimento de uma aberração. A mesma instituição que diz que é inconstitucional [a tese do marco temporal], reconhece a pressão dos ruralistas e dos latifundiários do país e aceita negociar sua própria decisão”, completou Xucuru.
Entenda
As ações relatadas pelo ministro Gilmar Mendes questionam a Lei 14.701, por contrariar entendimento já firmado pelo STF de que é inconstitucional a tese do marco temporal. Mas em vez de declarar inconstitucional a lei aprovada pelo Congresso, o ministro Gilmar Mendes manteve os efeitos da norma e estabeleceu uma Câmara de Conciliação para tratar do assunto que, por sua vez, teve os trabalhos encerrados na última quarta-feira (2).
Em agosto de 2024, a Apib, que é parte de uma das ações no Supremo, se retirou da Câmara de Conciliação alegando se tratar de uma tentativa de conciliação “forçada e compulsória” sobre algo que não se pode conciliar.
Como resultado de nove sessões de negociação coordenadas pelo gabinete do ministro, o magistrado apresentou um anteprojeto de Lei Complementar para substituir a Lei 14.701. A proposta exclui a tese do marco temporal, mas inova em uma série de matérias que são consideradas nocivas pelas organizações indígenas, como mineração em Terras Indígenas (TIs) e obstáculos no processo de demarcação, o que não tem a anuência dos indígenas.