Está em tramitação na Câmara Municipal de São João del-Rei um projeto de lei (PL) que trata sobre a implementação da tarifa zero — gratuidade — no transporte público coletivo do município. A proposta foi enviada pela prefeitura no início de março e, se aprovada, pode entrar em vigor ainda neste ano, em junho.
Para entender melhor sobre o PL, o Brasil de Fato MG conversou com a vereadora Cassi Pinheiro (PT) sobre a iniciativa. Cassi é arquiteta e urbanista, formada pela Universidade Estadual de São Paulo (USP), e mestre em geografia urbana pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
“A pauta da mobilidade urbana é um assunto que me interessa muito e, agora, com a urgência do debate, que vem ganhando força nas cidades, entendemos que é o momento de tentar ampliar e fortalecer essa política nos municípios e territórios, que é onde de fato as políticas acontecem”, destaca a vereadora.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG – Como é o cenário do transporte em São João del-Rei?
Cassi Pinheiro – A falência da forma como o transporte público é operado já é um fenômeno mundial e, aqui em São João del-Rei, não é diferente. Mas, em nosso município, há um dificultador, a empresa que opera o serviço é quase um monopólio de transporte. Ela funciona de forma precária, sem contrato ou regulamentação, desde 2011.
Apesar das tentativas de licitações, a Viação Presidente vem operando por meio de decretos sucessivos, que são renovados semestralmente. Não temos nenhum controle de operação ou de linhas.
Durante a pandemia de covid-19, não só aqui, mas no mundo inteiro, a crise do transporte público se agravou ainda mais, a partir de uma redução drástica do número de usuários. Como o padrão de remuneração da empresa é por usuário, a queda de usuários leva a uma quase falência da empresa, que não consegue se sustentar. A qualidade vem caindo desde então. As linhas vão sendo cortadas e os horários reduzidos.
Como não temos nenhum tipo de controle, a empresa simplesmente foi cortando linhas com menos uso, sem nenhum tipo de regulamentação ou estudo. Com isso, a população passou a usar menos ainda o transporte público, porque ele não estava atendendo às suas necessidades.
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Hoje, temos diversos bairros que não são atendidos por nenhuma linha, principalmente os novos bairros. A cidade passa por um processo constante de expansão. Em muitos bairros, as linhas param muito cedo, em um horário que não é compatível com o cotidiano dos trabalhadores.
Nesse sentido, as pessoas passam a entender que o transporte não funciona. A população não acredita mais no sistema e começou a recorrer aos aplicativos ou, quem tem condição de arcar com o transporte individual, foi comprando seus próprios carros.
Assim, temos um trânsito cada vez mais complicado e incompatível com uma cidade do porte de São João del-Rei. A questão é crítica também porque não temos nenhum incentivo à mobilidade ativa. A cidade não tem ciclovias, por exemplo.
O movimento pela gratuidade do transporte público tem tomado corpo em todo o Brasil. Do que se trata exatamente o projeto de lei que tramita em São João del-Rei e qual a sua importância para a população?
O prefeito Aurelio Suenes (PL), que está na sua primeira gestão, não havia pautado essa questão na campanha eleitoral. Não era algo que ele vinha cogitando ou conversando sobre a possibilidade de implementar. Inclusive, esse é um projeto que eu levei para ele, por diversas vezes, na tentativa de começar a pensar gradualmente na implantação da tarifa zero.
Um dia, ele simplesmente avisou que faria um anúncio nas redes sociais, a cidade toda ficou na expectativa sobre o que seria e ele disse que iria implantar a tarifa zero integral em São João del-Rei a partir de junho, que é quando encerra o decreto da Viação Presidente.
Ou começamos a investir em outras formas de desenvolvimento ou vamos colapsar
Foi todo mundo pego de surpresa, porque é um prefeito do PL, um governo de direita que, portanto, não tem essa preocupação social de fato. A gente ficou com o pé atrás.
Estamos em processo de estudar e entender o que de fato está sendo proposto. O projeto chegou para a leitura dos vereadores recentemente. A princípio, o que foi proposto é um projeto bem genérico, que não aprofunda ou entra em detalhes, mas tem um dos itens muito claro, a gratuidade universal.
A prefeitura não abre, no projeto, possibilidade para nenhum tipo de cobrança e pedidos específicos. Ou seja, teoricamente, a proposta contemplaria toda a população.
Paralelamente, com a repercussão, as pessoas começaram a falar sobre isso, e o prefeito começou a dar uns passos atrás, indicando que não vai ser para todo mundo, que quem não estiver em dia com o município — com débitos e impostos atrasados — não poderá usar o transporte gratuito e continuará pagando caro. Estamos questionando bastante isso.
Até agora, não temos uma resposta sobre como ele faria isso, já que a prefeitura não poderia, via decreto, contradizer o que está no projeto de lei apresentado por ela. Estamos trabalhando, junto com a comissão de Transportes da câmara, da qual eu faço parte, para que o PL vá para votação de forma a garantir o acesso ao transporte gratuito para todas as pessoas.
Outra questão importante é que o prefeito fala de um aumento na quantidade de quilômetros rodados, em torno de 20% estimado, a partir da implantação. Só que sabemos que, atualmente, as linhas já estão muito abaixo da demanda, e 20% não chegam nem perto de atingir o que tínhamos antes da pandemia.
Já sabemos também que, se o projeto for implantado dessa forma, ele não vai atender a todos. Muita gente vai ficar de fora, continuaremos tendo problemas com os horários, etc. Está sendo feito um estudo agora para uma licitação. Estamos esperando a entrega desses relatórios, para ter uma noção real da demanda por transporte público atual da cidade.
Há muitas cidades com mais de 100 mil habitantes — em São João del-Rei são 90 mil — que apresentam aumento em torno de 375% no uso do transporte público, uma vez aplicada a gratuidade.
Então, estamos prevendo que, se não for uma política muito bem estruturada, ela tende a dar muito errado. Porque a demanda vai aumentar e, se a política não estiver estruturada para atender a isso, ela também não vai funcionar.
Apesar da minha divergência ideológica com o prefeito e com a forma como ele tem apresentado o projeto, como defensora da tarifa zero, compreendo a potência dessa política e estou trabalhando muito para que ela dê certo. Não posso jogar contra só porque não estou na base do prefeito. Vou continuar trabalhando para fazer com que o projeto seja sustentável, permanente, e que se amplie, de forma a atingir verdadeiramente toda a população. Que seja um exemplo para que outras cidades da região também consigam implementar a tarifa zero.
Como a tarifa zero é possível? De que maneira ela pode ser financiada?
Existem três formas de operar o transporte público: por fornecimento, que é quando a própria prefeitura executa o serviço; por contratação de serviço; ou por concessão. O projeto abre duas possibilidades para o custeio, o fornecimento e o serviço. O PL não especifica qual vai ser adotada.
No custeio, o projeto também coloca de forma bem genérica alguns poucos itens, que são dotações orçamentárias próprias do município. Para este ano, a proposta indica algumas fontes: infraestrutura urbana, asfaltamento de vias públicas e obras de saneamento. Segundo a prefeitura, esses recursos destinados para saneamento já não seriam usados.
Para além do recurso próprio, o PL aponta a possibilidade de transferências de outras esferas do governo, na expectativa de receber algum apoio do governo federal e estadual, em políticas que possam vir a ser implementadas.
Esse é um ponto que nos preocupa muito, porque, para garantir a sustentabilidade do serviço, sabemos que é preciso fontes de recurso permanentes. Não dá para ficar sempre tirando do orçamento do município.
Tarifa zero significa menos emissão de gases poluentes
Por isso, um dos questionamentos que eu já coloquei para a prefeitura e uma proposta que vou colocar na emenda que faremos ao projeto seria usar o recurso do rotativo para essa finalidade.
O contrato do rotativo na cidade já está em encerramento, e a empresa que era responsável operou de forma totalmente irregular. Como o rotativo é uma forma de desincentivar o uso do transporte individual, o mais lógico é que o recurso seja destinado para o transporte público coletivo.
Defendo o mesmo para as multas de trânsito, a fim de desincentivar o transporte individual, destinando o valor das multas para o transporte coletivo. Esses dois itens são importantes de constar no projeto, mas há outras fontes possíveis.
Outra possibilidade aventada é usar o imposto sobre o combustível, que já está aprovado e é constitucional, mas está terminando de tramitar na câmara, para ser destinado para o transporte público.
Como a proposta pode contribuir para a economia da cidade?
Pelos levantamentos de outras cidades, vemos que a tarifa zero aumenta e muito o consumo no comércio. Então, pela arrecadação em imposto, isso acaba voltando para a cidade. É mais dinheiro que fica no bolso da população, o que gera retorno para a cidade.
Como somos uma cidade turística, isso pode aumentar o consumo e retornar para a cidade em forma de imposto. Também pode beneficiar os comerciantes, que vão conseguir contratar mais trabalhadores. O trabalhador vai ter condição de trabalhar sem o custo com o transporte, em uma cadeia que só tende a fortalecer o município.
De que modo a proposta da tarifa zero pode contribuir com a mitigação da crise climática?
Estamos no momento do ponto de retorno. Ou começamos a investir em uma economia de baixo carbono e em outras formas de desenvolvimento ou vamos colapsar. A tarifa zero é um ponto fundamental para diminuir o uso do transporte motorizado individual.
Com a falência do transporte público, percebemos cada vez mais o aumento da população que abandona os ônibus em prol do transporte individual, emitindo mais gases poluentes. Com a tarifa zero conseguiríamos ter muito menos veículos circulando e, consequentemente, muito menos emissão de gases poluentes. É uma lógica muito natural.
Com mais ônibus, é possível mitigar a crise ambiental, uma vez que já não estamos no ponto de resolver. Conseguimos reduzir a emissão e caminhar para uma sociedade que se sustente por mais um tempo.
O prefeito de São João del-Rei é integrante do PL e, no último período, tem sido comum que causas defendidas historicamente pela esquerda sejam cooptadas por políticos de direita e de extrema direita. A tarifa zero se inclui nesse processo?
Sabemos que as políticas da esquerda são as que de fato estão focadas nas necessidades da população. Então, é compreensível a lógica deles de tentarem se apropriar dessas políticas, que são as que funcionam.
No caso da tarifa zero, é uma política que tem, dependendo do discurso, um teor muito populista. Dependendo de como é apresentada, a medida é muito bem aceita, afinal, quem não quer gratuidade para usar o transporte público, principalmente quando associada a uma melhora na qualidade desse transporte?
Essa é, claramente, a intenção do prefeito de São João del-Rei, principalmente quando a gente vê o discurso de “mas só vai usar quem estiver ok com o município”. Ou seja, ele não tem a intenção de usar o transporte público como um instrumento de justiça social, mas quer apenas se reeleger.
Precisamos nos pautar na lógica do transporte para todos, como um direito que garante o acesso a todos os outros direitos sociais
Sabemos que a taxa de reeleição de prefeitos que implantaram a tarifa zero é de quase 100%. A situação da nossa cidade não difere, eu imagino, de grande parte das cidades com prefeitos de direita que têm implantado a tarifa zero.
Eu entendo que a esquerda tem a função de continuar fazendo a disputa da narrativa. Estamos preocupados em acabar com a forma como o transporte público se estrutura, que é uma mobilidade racista, na qual as pessoas que estão nas periferias, a maioria da população negra, tem o seu direito à cidade limitado.
O prefeito fala muito em “eficiência”. Se for apenas pautado nessa lógica da eficiência, o projeto não vai atingir a todo mundo, já que é caro levar ônibus de graça para onde tem pouca gente ou para locais de difícil acesso, por exemplo.
Precisamos nos pautar na lógica do transporte para todos, como um direito que garante o acesso a todos os outros direitos sociais, inclusive o acesso à cultura, ao lazer, etc. Não é só porque as pessoas querem, é porque as pessoas precisam e, com isso, a gente consegue garantir uma série de outros direitos.