O povo indígena Krenak conseguiu, após anos de luta, a responsabilização do Estado brasileiro por violações de direitos humanos cometidas contra a etnia durante a ditadura militar.
O julgamento da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) aconteceu no Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), localizado em Belo Horizonte, na última terça-feira (8). A Justiça definiu, por unanimidade, a manutenção da condenação de todos os envolvidos.
O processo, que tramitava desde 2015, tratava sobre violações de direitos, expulsão do território, tortura, trabalho forçado, maus tratos e a criação de um presídio em terras Krenak, entre 1957 e 1980.
Entre os condenados estão a União Federal, a Fundação Nacional do Índio, o Estado de Minas Gerais, a Fundação Rural Mineira (Ruralminas) e Manuel dos Santos Pinheiro, falecido capitão da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG).
Na ação, o MPF solicitou “o reconhecimento das violações aos direitos humanos perpetradas contra o povo indígena Krenak pelo Estado brasileiro”, por meio de um pedido público de desculpas.
Além disso, foi requerida a reparação econômica coletiva, uma vez que, na avaliação do órgão, os atos da ditadura provocaram a desagregação social e cultural dos Krenak, colocando em risco a “sua própria existência enquanto povo”.
Para Daniel Krenak, liderança da etnia indígena, o julgamento foi uma oportunidade de exigir justiça para os povos originários, a fim de que não se repitam mais situações de negação de direitos civis e sociais.
“O povo Krenak espera que, por meio do julgamento, a Justiça brasileira comece a considerar em seu ordenamento reparações históricas para crimes cometidos pelo governo brasileiro, trazendo luz para o tema, e pressionando o nosso país a elaborar políticas de reparações dignas aos indígenas”, destaca.
A liderança indígena reforça ainda a urgência de políticas públicas de valorização e reconhecimento dos povos tradicionais.
“Os povos indígenas fazem, até hoje, uma contribuição social e humana a todas as outras culturas existentes, por meio dos conhecimentos tradicionais e da relação com a biodiversidade do planeta. Precisamos construir projetos governamentais que respeitem essa situação”, ressalta.
Entenda o caso
A ação julgada nesta semana indica que o governo militar foi fortemente marcado pela destruição biológica e cultural de diversos povos originários, pela sistemática expulsão desses povos de suas terras, vulnerabilização e desrespeito a suas instituições.
“No período, houve forte intervenção governamental e empresarial nas terras indígenas, as quais provocaram mortes, violações à integridade física dos índios e profunda desintegração nos modos de vida de várias etnias, colocando em risco sua existência enquanto povo” , afirma o processo.
Uma das ferramentas de violação construída pela ditadura militar foi o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, mais conhecido como Presídio Krenak.
Instalado pela PMMG em 1969, o presídio se localizava na terra índígena Krenak, às margens do rio Doce, entre os municípios de Resplendor e Conselheiro Pena, e era de responsabilidade da administração do Policial Militar Manoel dos Santos Pinheiro, chefe da Ajudância Minas-Bahia.
O presídio recebeu, durante o seu período de funcionamento, pelo menos 94 pessoas de mais de 15 etnias, de diversos estados do país. Eram encaminhados para lá, com tempo de pena indeterminado, indígenas que tinham o comportamento considerado “desviante” ou “criminoso”.
Ali, essas pessoas eram submetidas ao trabalho forçado, torturas e maus tratos. “Eram muitos no presídio, mas todos apanhavam. Bastava dizer ou fazer alguma coisa que os policiais não gostassem”, relatou Gustavo Maxakali no processo.
A partir da implantação do presídio em terras Krenak, aconteceu ainda uma forte militarização do território, com a ampliação do controle sobre os membros da etnia que não estavam confinados.
O processo judicial também destaca que os militares limitavam o direito de ir e vir dos indígenas, intervinham nas formas de expressão de sua cultura e monitoravam o seu comportamento sexual.
Deslocamento forçado
Apesar de terem sua terra demarcada pelo estado de Minas Gerais desde 1920, com o tempo, a invasão das terras por fazendeiros e não indígenas cresceu exponencialmente, por vezes, incentivada pelo próprio o Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Em 1970, os Krenak ganharam na justiça o direito, por meio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), da reintegração de posse de suas terras contra os posseiros. Porém, os fazendeiros resistiram.
Como consequência, o processo foi arquivado e, em 15 de dezembro de 1972, todos os Krenak e todos os confinados no presídio foram deslocados forçosamente para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia, também em Minas Gerais.
O episódio é chamado pelo povo de “o exílio”. Na ocasião, eles foram expostos à fome, à convivência com etnias rivais, ao clima frio, com o qual não estavam habituados, e à ausência do rio Doce, que era o centro de suas atividades culturais.
Retorno
“Oito anos após a remoção, os Krenak decidiram fugir da fazenda e começaram a retornar às suas terras, a despeito do grande temor de serem recebidos com violência pelos fazendeiros e pelos agentes do Estado”, destaca a ação do MPF.
Somente 25 anos após o exílio, em 1997, os Krenak conseguiram retomar parte de seu território e, em 2001, foi finalmente homologada a demarcação da Terra Indígena do Povo Krenak. Durante a Comissão Nacional da Verdade, o Brasil reconheceu a violação sistemática de direitos dos povos indígenas pelo regime militar.
Com a condenação de todos os responsáveis apontados pelo Ministério Público Federal, Daniel Krenak destaca a importância de revelar todas as atrocidades sofridas pelos indígenas durante o período.
“É fundamental, para acabar com a maneira errada de entender a ditadura militar, defendendo os absurdos ocorridos em nosso país. Precisamos investir na educação, exigir que a proposta de justiça de transição considere as diversas formas de cultura, bem como, exigir do Legislativo brasileiro leis mais inclusivas para as populações indígenas”, finaliza.