Aos 14 anos, Roseli Marques dos Santos, que é filha de um indígena da etnia Guarani, foi levada de Horizontina a Porto Alegre para trabalhar em uma casa de família como doméstica. Alguns anos depois, a jovem se casou e passou a morar em um novo bairro com o marido, de onde decidiram nunca mais sair.
Dos 62 anos de vida, dona Roseli convive há mais de 40 anos com as enchentes no bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre (RS). Mãe de sete filhos – três biológicos e quatro adotivos – ela é avó de oito netos e tem cinco bisnetos. A família, apesar de ampla, se concentra nas ruas ao redor da Domingos de Abreu e convive diariamente na casa da matriarca, que afirma: “Daqui eu não saio. Eu não fico longe dos meus filhos, netos e bisnetos.”

A apreensão de Roseli está relacionada ao risco de um deslocamento forçado, já que outros moradores do bairro têm sido obrigados a deixarem suas casas devido às obras de reforma do dique de proteção contra as cheias do rio Guaíba. A prefeitura de Porto Alegre identificou a necessidade de desocupar 57 residências nas imediações da estrutura. Embora a casa de Roseli não esteja dentro da área de desocupação, ela teme que essa zona de despejo seja ampliada, especialmente após ter se endividado para reformar sua casa.
Dos quatro filhos que moram no bairro, todos são frequentemente ameaçados pelas enchentes e foram severamente atingidos em maio de 2024. Roseli lembra que, nas outras casas em que morou no bairro, “já estava acostumada com água até o joelho”. A mudança, há quatro anos, proporcionou à família melhoria na qualidade de vida.
O novo endereço era o local de convívio diário das crianças – já que a avó ajuda no cuidado e educação dos netos e bisnetos – e servia de abrigo quando a água subia um pouco mais nas outras ruas. Em maio de 2024, a situação mudou, e a enchente cobriu a casa inteira.
“Aqui nunca tinha enchido de água. E o que era a nossa vida? Nós já estávamos com uma vida estabelecida: meu marido aposentado, eu trabalhava menos, três ou quatro vezes por semana, só pegava uma costura ou outra.”

Endividamento, trabalho exaustivo e os reflexos na saúde
Depois de 42 dias fora de casa, quando puderam retornar, Roseli e o marido não viram outra alternativa a não ser reformar a casa. Para isso, foram obrigados a fazer cinco empréstimos, pelos quais acessaram R$ 60 mil para as reformas e compra dos móveis mais urgentes. “A Defesa Civil veio aqui e disse que a gente tinha que se virar. O telhado estava todo deslocado, as paredes apoiadas”, lembra. Ela acredita não ter sido contemplada no programa Compra Assistida porque a casa, apesar de muito prejudicada, não estava completamente destruída.
Ainda assim, afirma que se tivesse direito a uma nova residência, no valor de R$ 200 mil, como prevê o programa, não poderia aceitar: “Eu não posso ir no Compra Assistida, porque a minha filha não perdeu a casa, ela não vai. O meu neto perdeu a casa, mas também não vai. E pra eu ir, tenho que comprar um condomínio, levar meus netos e meus filhos. Eu não saio daqui, então eu vou reformar a minha casa”, decidiu.

Roseli, que trabalha costurando em casa para indústrias de roupas, agora precisa passar mais de 12 horas por dia na máquina. Enquanto isso, seu marido, aposentado devido a sequelas pulmonares deixadas pela pandemia da covid-19, teve que retornar ao trabalho na construção civil.
“O meu velho trabalha de servente de obra, ganha R$ 100 por dia. E eu trabalho aqui dia e noite. Eu ganho R$ 2,30 por cada peça que faço. Eu e ela [uma jovem ajudante] fizemos em torno de 600 peças. Às vezes, dá pra fazer mil por semana. De segunda a segunda, eu não paro nunca.” Apesar de ter criado um programa de crédito especial para empresas que necessitavam de recursos para retomar suas atividades após a enchente, o governo não disponibilizou nenhuma linha de financiamento para pessoas físicas que precisaram reforçar suas casas após a tragédia.
Apesar das dores intensas e inchaços nos pés, tornozelos e joelhos ocasionados pela gota, a jornada de trabalho é intensa e muito cansativa. “Agora eu levanto às 3 ou 4 horas da manhã, e, se você chegar aqui às 7 horas da noite, eu ainda estou nas máquinas, trabalhando.”

A situação financeira da família e o trabalho exaustivo resultaram não somente em fragilidades físicas, mas também no adoecimento mental de Roseli, que, nas consultas ao psiquiatra, recebeu a prescrição de remédios antidepressivos e ansiolíticos. Em um plano ideal, ela deveria priorizar o tratamento, mas isso não foi possível. “Eles me deram Risperidona, Depakene, Equilid e mais um outro. Mas aí eu me chapava (sic) e não conseguia trabalhar. Agora eu estou tomando muito pouco. Quando eu tomava, eu ficava muito tempo mal e não conseguia, esquecia de tudo. Tinha dias que eu não sabia montar as peças para costurar, coisa que fiz a vida inteira.”
Resiliência e esperança
Neste tempo de dificuldade, a alegria da nova vida é o que deu a Roseli esperança e força para seguir em frente. “Minha neta não queria mais filhos, mas engravidou e estava com quatro meses de gravidez. Foi o bebê que me salvou. Ele tem um mês e já conhece a minha voz, sabe?”
O nascimento do pequeno Luan trouxe novas perspectivas à bisavó, que encontra nele e em toda a família forças para continuar o trabalho necessário para pagar as dívidas. Quando perguntamos à Roseli se está feliz, a resposta é rápida: “Sim. Voltei a dançar, arrumei meu cabelo, tomo uns chopps. De vez em quando vamos ali no barzinho, sexta e sábado, pra dançar e distrair um pouco”.

A vida vai, aos poucos, seguindo seu rumo, mas a enchente reafirmou em Roseli uma decisão tomada décadas atrás e reafirmada inúmeras vezes durante nossa conversa: “Não é por causa da casa que eu não saio daqui. É porque eu não fico longe das minhas filhas. Eu não fico longe dos meus netos. Eu preciso ver eles, eu criei todos eles em roda de mim”.

* Essa é a primeira reportagem do especial que o Brasil de Fato RS, em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), está desenvolvendo sobre um ano da enchente que atingiu o Rio Grande do Sul.
