Cerca de 7 mil indígenas marcharam da Fundação Nacional de Artes (Funarte), em Brasília, até a Praça dos Três Poderes, na tarde desta quinta-feira (10), durante a segunda marcha da 21ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL). Em meio à multidão, um grupo de indígenas da Amazônia protestou contra a Ferrogrão – ferrovia que ameaça cortar a floresta e atravessar territórios tradicionais. “Não deixe a Ferrogrão destruir o Tapajós”, dizia um dos cartazes na marcha.
Pensado para escoar commodities como soja e milho do Centro-Oeste até os portos da Amazônia – como alternativa “mais barata” ao Porto de Santos (SP) –, o projeto prevê quase mil quilômetros de ferrovia, ligando Sinop (MT) a Miritituba, no Pará, passando por Itaituba, município do oeste paraense e sede da COP30. Se sair do papel, a Ferrogrão pode desmatar até 49 mil quilômetros quadrados – uma área 1.210% maior que a área desmatada na Amazônia em 2024, que foi de 3.739 km², e superior ao território do estado do Rio de Janeiro ou de países como Eslováquia, Dinamarca e Holanda.
Para Takakpe Tapayuna Metektire, secretário da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), o impacto do projeto não ameaça apenas os povos que vivem próximos à ferrovia, mas toda a população. Ele critica o modelo de desenvolvimento baseado na exportação de commodities.

“Muita gente não entende, mas o agronegócio não produz comida para alimentar as pessoas. O agronegócio quer soja e milho, para exportar. Enquanto isso, o preço da comida de verdade fica cada vez mais caro para todo mundo. Mas se destruírem a floresta só para aumentar o lucro de alguns, isso não vai prejudicar apenas quem vive nos territórios. Quem vive na cidade também sente as consequências. Afinal, a comida está cara para todo mundo, para indígenas e não indígenas. Por isso, todos precisam entender que proteger a Amazônia e os territórios indígenas é proteger o futuro de todos nós. Portanto, não precisamos exportar mais soja, precisamos de uma alternativa econômica que nos garanta vida”, conclui.
A liderança indígena Auricélia Arapiun, do Baixo Tapajós (PA), aponta ainda que a Ferrogrão confronta diretamente os compromissos climáticos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris – e que devem ser revisados durante a COP da Amazônia.
“Como vamos zerar o desmatamento ilegal até 2030 com um projeto que demanda mais desmatamento – legal ou não? Não é possível falar em ser líder contra as mudanças do clima com um projeto de destruição da Amazônia. A Ferrogrão é um projeto feito para desmatar a floresta e fortalecer o agronegócio”, afirma Auricélia, que também integra a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Os indígenas também denunciam as violações socioambientais e o descumprimento do direito à consulta livre, prévia e informada – previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e incorporado à legislação brasileira. Desde o início da concepção da Ferrogrão, as comunidades indígenas e tradicionais afetadas jamais foram ouvidas.
“É inadmissível que um projeto dessa dimensão avance sem que os povos indígenas sejam consultados. Nós queremos respeito e isso significa que nossos direitos garantidos em leis e tratados internacionais não podem ser violados. Qualquer obra perto dos nossos territórios precisa passar primeiro pela consulta com os povos indígenas. Até hoje, nós não fomos ouvidos. Por isso, estamos unidos com os parentes Tupinambá, Munduruku, Panara, entre outros, todos juntos contra a Ferrogrão. Afinal, não existe democracia quando os primeiros afetados são os últimos a serem ouvidos”, denuncia Karanhim Metuktire, liderança Kayapó e coordenador executivo do Instituto Raoni (MT).
Impactos da Ferrogrão
Se aprovado, o traçado da Ferrogrão deve atravessar uma das regiões mais sensíveis da Amazônia, impactando diretamente florestas públicas não destinadas, Terras Indígenas e Unidades de Conservação (UCs). Um parecer técnico elaborado pelo Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra), lançado no último mês, revela que o desmatamento induzido pela ferrovia tende a agravar a degradação dos biomas essenciais à manutenção dos recursos hídricos da bacia do Tapajós. O projeto também deve intensificar o tráfego de embarcações e a pressão sobre o rio Tapajós, um dos principais afluentes do Amazonas.
Segundo o estudo, a movimentação de cargas na hidrovia pode comprometer a pesca, dificultar o acesso a recursos naturais e afetar diretamente a vida de comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Além disso, a expansão logística pode provocar erosão nas margens do rio, ameaçando sítios arqueológicos e lugares sagrados para os povos indígenas.
O risco é agravado pela crise climática, já evidenciada pela seca histórica de 2023-2024. O relatório alerta ainda que a construção da ferrovia pode exigir intervenções como a dragagem do Tapajós, potencializando a degradação dos ecossistemas aquáticos e afetando a disponibilidade de água para as populações locais.
“Não há impacto positivo quando o nosso rio está sob ameaça. Querem aumentar a produção, querem aumentar o desenvolvimento, mas em nome de quem? Que desenvolvimento é esse? Para quem? Enquanto os povos indígenas, enquanto os peixes, enquanto os rios estão morrendo?”, questiona Auricélia.
O Brasil de Fato consultou a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) em março de 2025 sobre a consulta aos povos afetados pela Ferrogrão, para esta matéria.
Em resposta, a agência vinculada ao Ministério de Transportes informou que o projeto da Ferrogrão (EF-170) segue em fase de atualização e aprofundamento de estudos técnicos e regulatórios.
“Os estudos de viabilidade foram elaborados e supervisionados pela Infra S.A., que contratou a empresa EDPL como consultora (…) A Agência reforça seu compromisso com o respeito e a proteção dos povos tradicionais. As minutas contratuais preveem obrigações relacionadas ao licenciamento ambiental, incluindo verba destinada a essas questões e o cumprimento de parâmetros de desempenho socioambientais”, informou, em nota enviada por e-mail.
*Esta matéria foi produzida em parceria com a Amazon Watch.