A deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) entrou com uma representação criminal no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta sexta-feira (11), contra o governo do Distrito Federal (DF), a Polícia Militar, Detran e Corpo de Bombeiros do DF, além da Polícia Legislativa do Congresso Nacional, após ter sido agredida junto a um grupo de indígenas na noite de quinta-feira (10). A ação da polícia ocorreu no final de uma marcha, que era parte da programação do Acampamento Terra Livre (ATL), realizado na capital federal durante esta semana.
Visivelmente emocionada, a parlamentar ofereceu uma coletiva de imprensa na manhã desta sexta para denunciar a violenta repressão contra a manifestação indígena pacífica e anunciar o envio da representação criminal ao STF. “Por algum momento, eu pensei que era possível o nosso lugar aqui criar uma barreira de respeito aos povos indígenas. Mas eu estava muito enganada, porque não somente não serviu para proteger os povos indígenas num episódio como de ontem, como não serviu também nem para me proteger”, declarou.
A deputada indígena fez um longo relato sobre os eventos que sucederam a repressão contra a marcha indígena. “Era um ato pacífico, um ato na luta pelos direitos dos povos indígenas, dialogando com os Três Poderes”, afirmou. “Quando eu desci com o meu povo cantando, não tinha nenhuma grade. Eu até falei: ‘Como que eles estão jogando esse tanto de spray de pimenta, essa repressão policial, se não tinha nenhum impeditivo para descer?’”, relatou a parlamentar, dizendo ainda que em um primeiro momento, os bombeiros se negaram a prestar socorro.
E seguiu: “Vendo toda aquela situação de agressividade e que já tinha muita gente voltando, eu falei: ‘Eu preciso entrar na Câmara’, assim como fiz todos os outros anos para no meu exercício de parlamentar. O que qualquer um faria é dialogar e pedir que parasse aquela repressão’”. Em seguida, a parlamentar conta que foi impedida de entrar no edifício do Congresso pelos policiais legislativos, mesmo afirmando que era deputada.
“Além de me negar ajuda, duvidaram que eu era parlamentar e toda a nossa assessoria mostrou crachá. Chegaram a liberar a nossa assessoria, mas não me liberaram porque eu teria que ter a comprovação que era parlamentar”, disse Xakriabá. “Pode passar o paletó e também um salto alto que ninguém vai dizer que é uma ameaça. Mas não pode colocar o cocar na cabeça porque não são capazes de me reconhecer como autoridade”, completou.
A deputada estava com a mão enfaixada, devido a queimaduras que sofreu ao ser atingida por uma bala de borracha. “Na hora do cartucho que agarrou na minha mão, ele caiu e eu tentei pegar, por isso os dois dedos estão queimados. Eu tentei pegar, mas era tão quente, tão quente, que era impossível”, relatou a parlamentar, rejeitando qualquer comparação do ocorrido com os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.
“Não podemos ser comparados em nenhum momento com o ato do 8 de janeiro. Nós não quebramos nada. A única coisa que nós quebramos é o preconceito. Nós não tínhamos intenção de entrar no Congresso Nacional, nós não fizemos baderna”, ressaltou. “Comparar o povo indígena ao 8 de janeiro é, no mínimo, tentar distorcer e enviesar com uma narrativa colonial.”
A representação aponta o cometimento dos crimes de racismo, por impedir o acesso da parlamentar indígena ao Congresso, violência política e de gênero, por ataques direcionados a uma mulher indígena no exercício do mandato, lesão corporal, pelos ferimentos causados, e omissão de socorro, já que o Corpo de Bombeiros teria negado atendimento imediato a indígenas feridos.
Violência premeditada
Após a repressão à marcha indígena, foi revelado um vídeo, gravado na noite da quarta-feira (9), em que se vê o advogado da Apib, Victor Streit, em uma videochamada (abaixo) com a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal para definir os protocolos da marcha indígena que ocorreria no dia seguinte.
Em dado momento, vaza na chamada o áudio de uma pessoa identificada como “IphoneDeca”, que diz: “Deixa descer logo. Deixa descer e mete o cacete se fizer bagunça”. A gravação foi anexada à representação criminal, segundo nota do mandato da deputada Célia Xakriabá, “como prova de incitação à violência”.
“Essa denúncia é muito, muito, muito grave, porque demonstra uma permissibilidade para usar como estratégia de criminalização aos povos indígenas”, declarou a parlamentar na coletiva.
Racismo estrutural
Questionada pelo Brasil de Fato se havia conversado com o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), Xakriabá afirmou que espera dele a iniciativa de buscá-la para prestar o apoio devido.
“Nós fizemos esse encaminhamento ao presidente da casa, mas eu não cheguei a falar diretamente com ele. Mas também não sou eu que tenho que falar. Eu acho que, no mínimo, é ele [Hugo Motta] reconhecer esse espaço de violência. Não sou eu que tenho que procurar para ser assegurada”, declarou.
Durante a coletiva, a deputada afirmou que foi assediada diversas vezes no Congresso por seus próprios pares. “Quantas vezes fui assediada no elevador aqui dentro da Casa. Deputado que pega no meu rosto, na minha bochecha, fala se eu não quero casar com eles. Eu estou aqui é para defender meu povo. Eu não estou aqui para buscar casamento, porque o meu compromisso é com a nossa luta”, afirmou.
“Vocês não sabem o que é o gatilho do racismo”, disse a deputada. “Tentam nos matar a coragem, o sorriso, a nossa potência e a nossa alma, porque nós não queremos estar no Congresso Nacional só para ser parlamentar, nós queremos estar inteiras e vivas”, declarou.
Apoio dos correligionários
O deputado Glauber Braga (Psol-RJ) acompanhou toda a coletiva da deputada indígena. Na última quarta-feira (9), ele iniciou uma greve de fome e decidiu permanecer no edifício da Câmara dos Deputados após o Conselho de Ética da Casa aprovar o parecer que recomenda a cassação de seu mandato. Ao final da coletiva, ele deu uma breve declaração.
“Eu estou aqui em solidariedade a Célia, em relação ao ocorrido e em solidariedade aos povos indígenas. É um absurdo que não pode ser naturalizado de jeito nenhum”, afirmou o parlamentar, pouco antes de deixar o salão verde da Câmara e retornar ao plenário do Conselho de Ética, onde permanece em jejum.
A deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP), disse que se encontrava no prédio da Câmara, quando se surpreendeu com o barulho das bombas, e que ao buscar saber do que se tratava, encontrou a colega bastante debilitada. “Eu estava dando uma entrevista quando eu ouvi barulhos de bomba e logo eu entendi que se tratava de um ataque à marcha do ATL, algo que não aconteceu nos anos anteriores. Depois eu encontrei a Célia, já estava muito debilitada. Foi um ataque muito grave e que aciona vários gatilhos do racismo e de outras dores e violências que ela sofreu anteriormente”, relatou a deputada.
Bomfim se associa à suspeita de que a repressão aos indígenas foi uma ação premeditada, citando a ausência de barreiras de contenção e a possível existência de uma ordem informal para atacar. “A gente está falando de uma armação contra os povos indígenas, no ano de COP, no ano em que o mundo inteiro debate a emergência climática e a necessidade de respeitar os povos indígenas. Foi uma vergonha em pleno ATL e a gente está aqui para prestar solidariedade a Célia e a todos os indígenas”, afirmou.
Outro lado
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) afirmou que realiza reuniões que antecedem qualquer ato público ou manifestação com o objetivo o planejamento e a execução de ações das forças de segurança pública locais e federais, “visando a segurança, preservação da ordem pública, mobilidade e prestação dos serviços públicos, conforme atribuições legais das respectivas Instituições, Órgãos e Agências (IOAs) envolvidas”.
Sobre o áudio vazado na reunião com os representantes indígenas, a SSP-DF afirmou que a declaração “não foi proferida por nenhum servidor do Governo do Distrito Federal, nem por qualquer servidor ligado à área de Segurança Pública, seja no âmbito Distrital ou Federal, ou mesmo pelas Polícias das Casas Legislativas ou do STF”. A SSP informou ainda que o caso será apurado para que sejam tomadas as devidas providências.
“A SSP-DF reitera que não coaduna com qualquer manifestação de caráter violento, que as reuniões são gravadas e os órgãos, nas três esferas de poder, tanto a nível Distrital como Federal, são convidados formalmente e indicam servidores que agem em nome das referidas instituições”, diz a nota.
O Corpo de Bombeiros do Distrito Federal afirmou que “as ocorrências na noite de quinta-feira (10) seguiram os protocolos de atendimento, sendo todas as vítimas atendidas prontamente. Inclusive com uso estratégico de equipes posicionadas no local, preventivamente”.
O Brasil de Fato entrou em contato com o governo do Distrito Federal (DF), o Detran, além do Senado Federal e Câmara dos Deputados, e aguarda o posicionamento que, tão logo chegue, será incluído na matéria. A reportagem também entrou em contato com o gabinete do deputado Hugo Motta e aguarda retorno.