A 21ª edição do Acampamento Terra Livre chegou ao fim nesta sexta-feira (11), em Brasília (DF), com duros recados aos três Poderes, aos invasores de terras e aos mega empreendimentos que ameaçam a vida dos povos indígenas e os biomas brasileiros. O evento, que aconteceu de 7 a 11 de abril, também demarcou os 20 anos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A repressão do Departamento de Polícia Legislativa (DPO), ocorrida durante a marcha “A resposta Somos Nós”, realizada no fim da tarde de quinta (10), foi só mais um indício de que a luta desses povos é também para superar violências estruturais e estatais.
A carta final do acampamento denuncia a repressão sofrida durante o evento e reafirma a resistência diante dos ataques institucionais. O texto menciona a violência da Polícia Legislativa e da Polícia Militar contra mulheres, crianças, anciãos e lideranças tradicionais durante a marcha do dia 10 de abril.
A carta também cobra o fim da Câmara de Conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF) e a declaração de inconstitucionalidade da lei 14.701/2023, que, segundo o movimento, “criminaliza retomadas, indeniza invasores e altera profundamente o procedimento de demarcação”.
Outro ponto central do documento é a criação da Comissão Internacional Indígena para a COP30, que busca garantir protagonismo dos povos originários na conferência do clima que será realizada no Brasil. “Não há saída para a crise climática sem a demarcação das terras indígenas”, afirma a carta, que também exige a retomada imediata das demarcações como uma política climática efetiva.
O ATL
O evento reuniu cerca de 8 mil indígenas de 150 etnias de todo o Brasil. O coordenador geral da Apib, Kleber Karipuna, reforçou que a luta dos povos originários em defesa dos territórios acontece desde a invasão portuguesa no Brasil, e continua necessária em um cenário de ameaças constantes contra a vida. “Esses 20 anos de história [da Apib] começam desde lá quando começaram as grandes assembleias, grandes movimentos, as grandes mobilizações, lá na década de 70, pros anos 80, quando começamos a reconhecer a necessidade de fortalecer nossa unidade, mesmo com tanta diversidade”, declarou.
Foram realizadas plenárias de mulheres, de jovens, de lideranças LGBTQIA+, além de duas grandes marchas pelas ruas de Brasília. A primeira na terça (8), foi uma celebração dos 20 anos da Apib e uma demarcação política das principais bandeiras de luta da organização. Entre os principais temas debatidos no acampamento estão a demarcação de novas terras indígenas, o fim do marco temporal, a revogação da lei 14.701, que permite a instalação de mega projetos em terras indígenas, além de uma transição energética que respeite a soberania das comunidades tradicionais.
Agressão racista da polícia não vai calar uma luta ancestral
Ao fim da segunda grande marcha do evento, que seguiu do acampamento até o Congresso Nacional, a polícia legislativa atirou bombas de efeito moral contra indígenas. Em vídeo divulgado pela assessoria de imprensa da parlamentar, a deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) aparece relatando dor nos olhos enquanto tenta atravessar uma barreira formada pela Polícia Militar do Distrito Federal (PM-DF) para acessar o parlamento. “Sou deputada federal eleita”, repete.
Segundo notas emitidas pela Câmara dos Deputados e Senado, estariam tentando invadir a área limite acordada com os manifestantes. As bombas atingiram pessoas idosas, crianças e mulheres. A Apib alegou, em nota, que as agressões teriam sido um ato deliberado da força policial de um Congresso, cuja maioria é inimiga dos povos indígenas e as bandeiras que eles defendem.
As lideranças relataram que o protesto era pacífico e “que os indígenas que desceram em direção ao Congresso apenas portavam instrumentos ritualísticos, utilizados em cantos e rezas”, afirmou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), também em nota.

Corroboram para essas acusações, além da própria ação desproporcional da polícia, um áudio gravado durante reunião da associação com a SSP-DF, no formato on-line, ocorrida no dia anterior à marcha, para acertar detalhes do trajeto. No trecho divulgado pela Apib, é possível ouvir uma voz de um homem da secretaria afirmar: “Deixa descer e mete o cacete se fizer bagunça”. Norivaldo Mendes, coordenador executivo da Apib pela Aty Guasu, enfatiza que, até a agressão, a manifestação ocorreu de forma pacífica.
“Como não havia nenhuma barreira, as pessoas estavam descendo [ao gramado nas proximidades do Congresso] fazendo seu ritual, sem arma nenhuma, sem arco, sem flecha, quando foram agredidas”, relatou Norivaldo, durante entrevista coletiva concedida nesta sexta.. Segundo ele, os indígenas respeitam o Congresso como casa deles, e uma reação violenta sem qualquer tentativa de diálogo só reforça que a intenção da DPO era mesmo agredir.

A resposta somos nós!
A marcha “A resposta somos nós!” defendeu bandeiras antagônicas aos interesses dos empresários e das indústrias que financiam os mandatos da maioria dos congressistas brasileiros. Os indígenas afirmaram que a resposta para uma transição energética que não cause genocídio e ecocídio está no próprio modo de vida ancestral dos povos originários. E que uma Câmara de Conciliação, ou qualquer tentativa de apenas mitigar o avanço das invasões dos territórios indígenas, não é uma opção.
“O governo Lula foi para a COP 28 falar em transição energética, sobre a importância do fim do uso de combustíveis fósseis, e quando voltou ao Brasil leiloou vários poços de petróleo na Amazônia. Os governantes costumam falar nessas conferências que se orgulham de ter a maior floresta em pé do mundo aqui, mas não dizem que ela só está assim graças aos nossos guerreiros e nossas guerreiras indígenas”, argumentou Luene Kripuna, do Oiapoque, no Amapá, uma das principais vozes de resistência contra a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.
O coordenador da Apib pela Arpinsul, Kretã Kaingang, reiterou a importância do respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que prevê a obrigatoriedade da consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais, antes que projetos depredadores se instalem em seus territórios. “Na consulta livre, prévia e informada, quando se tratar de petróleo e gás e mineração, seja ela por ouro, seja ela por prata, seja ela por diamante, qualquer outro tipo de exploração mineral dentro dos territórios indígenas, a resposta sempre tem que ser: não vamos aceitar”, reforçou.
Por uma COP 30 com protagonismo dos povos indígenas
Além dos povos originários brasileiros, o ATL indígenas de mais 15 países, com representações dos oito países da bacia Amazônia, da Austrália e Fiji, além de lideranças da Aliança Global de Comunidades Territoriais (GATC), que representa povos indígenas e comunidades locais de 24 países. Na quinta-feira, essas delegações participaram do “Encontro com Embaixadas: A Resposta Somos Nós – Visões dos Povos Indígenas para a COP-30”, com o objetivo de levar as demandas dos povos indígenas às embaixadas dos países Alemanha, Áustria, Austrália, Canadá, Dinamarca, Espanha, França, Finlândia, Irlanda, Noruega, Países Baixos, Peru, Reino Unido, Suécia e Suíça.
As ministras do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, estiveram presentes no lançamento de uma Contribuição Nacional Determinada Indígena (NDC), e de uma Comissão Internacional Indígena para a COP30, que vai ser realizada em Belém, no Pará, em novembro deste ano. “Nós sempre lutamos para que os povos indígenas estivessem no centro desse debate [da COP], porque comprovadamente os territórios indígenas funcionam como essa grande barreira contra o avanço das monoculturas, da mineração e do garimpo”, concluiu Sônia Guajajara.
ATL é demonstração de força e resistência e inclusão
“Já participei de vários encontros aqui da ATL, e é um movimento que vem vários povos de outros lugares também, lutando por uma causa só pela demarcação, e pra melhorar o atendimento da saúde, educação”, explica Tapixi Guajajara, que já perdeu as contas de quantos acampamentos já participou. Ela e a delegação da qual faz parte realizam várias formas de captação de recursos para que o povo dela esteja presente na maior celebração e maior mobilização dos povos originários do Brasil.
O cacique xavante do Mato Grosso, José Xavante, destaca a importância da participação de não indígenas de todas as regiões do Brasil no evento. “Esse acampamento demonstra que ainda vivemos e vamos viver. Que sejamos respeitados e reconhecidos por não indígenas. [Que possamos] viver juntos pacificamente, construir um país solidário, coeso. Muitos não reconhecem a diversidade étnica dos povos indígenas, embora que a nossa constituição não permite o racismo, é um crime inafiançável, mesmo assim membros do nosso povo, nossos caciques estão sendo perseguidos”, desabafa.
Morador de Brasília há 4 décadas, o comerciante Melo Guilherme vê o ATL acontecer há 21 anos. Esta foi a primeira vez que ele decidiu entrar no acampamento. Guilherme andou pelo espaço, ouviu alguns debates nas plenárias, e saiu com uma nova visão sobre a articulação dos povos indígenas. “Eu fiquei muito curioso, e hoje eu arrumei um tempo pra vir conhecer e não me decepcionei. Muito interessante. A preservação da nossa cultura, do nosso país, é uma coisa que a gente precisa ficar sempre atento. Respeitar também, não as vontades, mas as conquistas desse povo, que não venha ter retrocesso, e é uma questão até de conscientização do povo, de que o povo indígena faz parte da nossa vida, da nossa sociedade.”