Por Luciano Mendes*
Outro dia, enquanto caminhava pela praia de Boa Viagem, no Recife, me pus a observar os trabalhadores e trabalhadoras do mar. Era final de uma tarde de domingo. Havia chovido quase todo o dia e o sol se abrira à tarde. O momento que cheguei era o da desmontagem do comércio da praia, que, como sempre, funcionara o dia inteiro, apesar das intempéries do tempo. Havia, ali pelas 17h30 ou 18 horas, uma profusão de pessoas indo e vindo, num frenesi de cadeiras, sombrinhas, mercadorias e carroças.
Quem conhece Boa Viagem sabe que o comércio de praia (vamos chamá-lo assim) e, logo, os trabalhadores e as trabalhadoras do mar, se distribuem desigualmente pela orla. Enquanto os quiosques de alvenaria e os ambulantes ficam ao longo da enorme orla que vai do Pina a Jaboatão, as pessoas que têm barracas fixas para a venda comidas e bebidas na beira da praia, inclusive com aluguel de mesas e cadeiras, se concentram sobretudo lá onde os arrecifes supostamente impedem os ataques dos famosos tubarões. Era justamente por ali que eu caminhava.
Enquanto os últimos banhistas – últimos é sempre uma figura de linguagem – se retiravam e as primeiras pessoas vestidas para o passeio noturno do calçadão chegavam, os trabalhadores e as trabalhadoras juntavam e embalavam seus instrumentos de trabalho. Trabalhavam em turmas ou, no mínimo, duplas. Não vi nenhuma pessoa trabalhando solitariamente. Homens e mulheres, em sua maioria jovens, se revezam, ainda que quem “mande”, ao que parece, sejam as pessoas mais velhas.
Observo que, enquanto trabalham, brincam, mesmo depois de um longo dia de trampo. Mas há vigilância também: num canto, alguém faz a conta, anota o que foi vendido e o que sobrou. A contabilidade é a alma do negócio!
Parece haver uma estratificação na distribuição das barracas ao longo da orla. Há também entre as pessoas que trabalham. Em algumas, turmas organizam as cadeiras, as sombrinhas e as bebidas que sobraram, colocando tudo em carroças de mão. Outras organizam em veículos que, aparentemente, estão muito rodados, por assim dizer. Já algumas poucas pessoas, contam com modernas picapes com carretinhas especialmente construídas para aquele tipo de transporte.
Observava aquele frenesi, aqueles corpos diversos – mas quase todos negros – trabalhando, e pensava sobre como haviam chegado até ali. Que trânsitos, no tecido urbano e na tessitura da vida, haviam feito para estarem ali, justamente naquele momento. Com estas interrogações na cabeça pensava no mar como lugar de trabalho para tanta gente.
A praia, o mar, lugar de tantos encontros, ainda que em meio a tantos desencontros, lembrando também o poeta, é quase sempre vista como lugar de recreação ou, mais contemporaneamente, de lazer – este espaço-tempo fundado sob o império do capital que a tudo submete aos seus desígnios, inclusive o tempo de não-trabalho. Mas não-trabalho para quem, cara pálida?
Antes que eu pensasse duas vezes, lá estavam outros trabalhadores do mar, homens, todos homens, negros, da Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife, a Emlurb. De apetrechos na mão, recolhiam o lixo, corriam e, enquanto trabalhavam, brincavam também. Uns com os outros, outros com o um, com as pessoas que passavam, com as dificuldades da lida, brincavam e sorriam.
Ao final da minha caminhada, já quase no final dos arrecifes protetores, me deparo com uma roda de trabalhadores do mar. Estão em volta de um vendedor de caldinhos que, pacientemente, os atende e anota, numa caderneta, o que parece ser o consumo de cada um. Era outro trabalhador que chegava para um novo turno de trabalho e, ao fazê-lo, em seus instrumentos e modos, atualizava antiguíssimas tradições.
Tradições. Passados recompostos, descompostos, bem ali. E minhas memórias vêm ao meu socorro, ou perdição, e me lembro de Vitor Hugo e seu Os Trabalhadores do Mar. E me vi perguntando com o que sonham e a quem amam os trabalhadores e as trabalhadoras do mar do Recife. Terminei minha caminhada com a nítida impressão de que há mais coisas ali, naquela complexidade, que eu, nem de longe, conseguia perceber. Mas não é sempre assim?
*Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele assina a coluna Cidade das Letras: literatura e educação, do Brasil de Fato MG.
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