Fincar a bandeira no chão e iniciar o trabalho com a terra depois de seis meses de preparação e estudo. É com esse objetivo que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realiza os trabalhos na Vergareña, região no sul da Venezuela com mais de 180 mil hectares para plantio de alimentos com base na agrofloresta, que completam uma semana neste domingo (13). A meta: garantir a soberania alimentar do país.
O Brasil de Fato esteve na Vergareña durante 5 dias e acompanhou a chegada de integrantes tanto do MST quanto da União Comunera, organização que tem maior participação e capilaridade entre as comunas venezuelanas, a . Eles foram até o local para começar a montagem do acampamento a partir dos equipamentos que o governo vai enviar.
Para começar, o MST deixa claro que a terra não foi doada pelo governo venezuelano. Diferente do que jornais brasileiros disseram nas últimas semanas, o movimento será responsável somente pela administração e apoio logístico ao programa Pátria Grande do Sul. O projeto tem como objetivo produzir uma ampla variedade de alimentos em quantidade suficiente para abastecer uma parte considerável do país.
Além de ter um alimento saudável e garantir o acesso da população a produtos de qualidade, uma das intenções do governo é aumentar a oferta para abaixar os preços para os venezuelanos no mercado. Para isso, o presidente Nicolás Maduro pediu a ajuda do MST para coordenar os trabalhos na região. Depois de uma análise minuciosa do território feita pelo Ministério da Agricultura, o MST identificou onde ficarão os lotes para a produção de cada alimento, definiu os espaços em que as famílias vão morar e já começou a preparar a a instalação das pessoas.
Nas últimas semanas, os militantes brasileiros foram chegando pouco a pouco para a estrutura das Forças Armadas na Vergareña. O local fica a 90km de Puerto Ordaz, a cidade referência da região Oriente, no leste da Venezuela. Para chegar a essa estrutura é preciso pegar duas horas de estrada de asfalto e mais duas horas de estrada de terra, ou usar um avião monomotor e pousar em uma pista de terra que fica ao lado das casas.
Essa, inclusive, é uma das principais dificuldades para o projeto. Para a coordenadora da brigada do MST na Venezuela, Rosana Fernandes, os principais desafios para o projeto hoje são de estrutura não só para o acesso, mas também para a comercialização dos alimentos no mercado.
“Uma dificuldade para fazer a comercialização do que será produzido é a infraestrutura. É um desafio ter acesso a Vergareña a partir de Puerto Ordaz ou outras cidades grandes. Mas isso é responsabilidade do governo”, afirmou ao Brasil de Fato.
Governo e movimento entendem que também é necessário ocupar o território, pouco povoado apesar da grande quantidade de terras. Ao todo, menos de 60 mil pessoas vivem no município de Angostura, uma das cidades que incorpora a Vergareña e que tem o tamanho do estado da Paraíba.
Montagem do acampamento
A primeira etapa para iniciar a ocupação do espaço é a montagem do acampamento em que as famílias estarão assentadas. O modelo é parecido com o que o movimento organiza no Brasil, mas tem algumas diferenças importantes em relação à forma como o processo foi feito. A primeira delas diz respeito à conquista da terra.
Diferente do que acontece em território brasileiro, o MST não precisou estudar uma terra improdutiva de um latifúndio ou de um grande produtor. O terreno já era do governo venezuelano e o estudo do espaço foi feito pelo próprio Ministério da Agricultura. Para Gessica Lima dos Santos, técnica em agroecologia e uma das responsáveis pelo projeto na Venezuela, isso adiantou um processo que, no Brasil demandaria não só tempo, mas uma luta para o cumprimento da Constituição.
“Aqui temos uma coisa que no Brasil levaríamos 30, 40 anos para ter. A gente já tem a terra. A gente já conquistou o território e temos todas as ferramentas necessárias para se criar o acampamento disponibilizado pelo próprio governo. E no Brasil não. No Brasil a gente ainda teria que entender o território, estudar e mesmo assim ainda teríamos conflitos com os próprios latifundiários e ia levar um processo muito longo de luta”, afirmou ao Brasil de Fato.
A ideia é ter 300 famílias no acampamento para trabalhar na produção. Para a chegada dessas pessoas, é preciso montar uma estrutura que tenha banheiro, cozinha, quartos e espaços de lazer, como campo de futebol. Além disso, um dos pilares do MST é a formação. Por isso, também será montada uma escola de formação política e de agroecologia. Essa unidade também terá como foco a formação de camponeses que saibam produzir sementes para o plantio.
Para as discussões e decisões coletivas, haverá também um espaço de plenária. Todo este terreno está a cerca de 40km de onde hoje é a base da AgroFANB, a unidade de produção agropecuária das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas. Esse espaço abriga a estrutura militar do governo na região e recebe os equipamentos, mantimentos e as primeiras pessoas que chegam.
O acesso é feito por aviões de pequeno porte que chegam em uma pista de terra ou por carro saindo de Puerto Ordaz, a capital do estado de Bolívar. Mesmo distante das maiores cidades da região, essas 300 famílias estarão trabalhando na Vergareña quando o projeto estiver funcionando. Todo esse contingente de pessoas será mobilizado principalmente pela União Comunera e ficará no acampamento montado pelo MST em conjunto com o Ministério da Agricultura.
Por isso, o espaço do acampamento foi pensado para estar em uma zona estratégica, que tenha não só um acesso mais fácil à estrutura militar da Vergareña, como também a outros pontos da região, além de estar em um terreno alto com boa visibilidade do território.
Agrofloresta na base
Os principais conceitos usados pelo MST para a produção são os da agroecologia e, dentro disso, da agrofloresta. Isso também se aplicará na Vergareña. Essa forma de produção está baseada na preservação o solo e o bioma para garantir alimentos saudáveis suficientes para a subsistência das comunidades locais e para o abastecimento do mercado, sem o uso de agrotóxicos.
Para a coordenadora da brigada do MST na Venezuela, Rosana Fernandes, essa forma de produzir alimentos também muda as próprias relações sociais. Além de uma questão técnica, ela destaca que o uso da agroecologia também representa um posicionamento político.
“Esse modelo enfrenta o capital, as crises climáticas e contribui para soberania alimentar do país. E o MST vendo a agroecologia e a agrofloresta como uma saída para as crises que a gente enfrenta se desafia também a construir junto com o povo venezuelano, partindo também da solidariedade entre os povos e das lutas de classe, da soberania popular. Não só pela produção de alimentos saudáveis, mas também das relações humanas saudáveis. Na construção da emancipação humana partindo desse contexto”, afirmou.
Um dos pontos fundamentais para o MST dentro da mudança da perspectiva de produção que existe no território é mudar a forma de limpar o terreno. Hoje, as comunidades locais usam o fogo entre as safras para poder recomeçar um novo plantio. De acordo com os agrofloresteiros do MST, apesar de aumentar a produtividade em um primeiro momento, a repetição dessa prática prejudica o solo e reduz a capacidade do plantio a cada nova colheita.
A Vergareña também tem uma particularidade geográfica, por ser uma área de transição entre um bioma úmido como o amazônico e um seco como a savana. Por isso, o fogo também prejudica a biodiversidade de um local que mescla especies de diferentes espaços.
Para Gessica Lima, uma das maiores dificuldades na implementação da agrofloresta será justamente a mudança de mentalidade dos produtores que atuam no território. Na avaliação dela, a lógica de produção do agronegócio se fixou como a única alternativa possível e mudar não só as técnicas usadas, como a tradição, será um passo importante para o projeto.
“Construímos o movimento da agroecologia em um sentido mais crítico, e a gente às vezes se frustra com o sistema produtivo de cada lugar. Mas a gente tem que entender que estamos situados no sistema capitalista. Então, as práticas que a gente reproduz são as práticas que são demonstradas para a gente. São anos de degradação, de plantio de forma convencional e um plantio que beneficia esse sistema”, afirmou.
Para Altamir Bastos, há também o componente das condições que estão colocadas para a população. Segundo ele, uma mudança na forma de produção exige equipamentos que otimizem o trabalho dos trabalhadores, algo caro e de difícil acesso para quem está no interior.
“O que a gente observa é que se utiliza o fogo por falta de condições de acesso a equipamentos adequados para produzir. Como não têm condições econômicas de comprar, mesmo de forma coletiva um trator, ou pagar as horas para alguém vir preparar terra, as pessosa utilizam do fogo para poder plantar. É uma uma limpeza do território para poder semear e ainda tem muito o uso do veneno também”, disse.
O governo venezuelano comprou máquinas agrícolas chinesas para auxiliar nessa produção. Roçadeiras elétricas, tratores, motocultivadores e adubadoras já estão sendo comprados e levados à Vergareña.
Organização e produção
A divisão de tarefas do projeto foi definida em grupos de trabalho. Cada um deles será responsável por um setor diferente de acordo com as necessidades do acampamento: saúde, segurança, transporte e limpeza são alguns deles.
Outro ponto fundamental para a organização é a definição dos espaços para a produção de cada alimento. Uma equipe é responsável por escolher algumas áreas chamadas de “vitrines”, para começar um teste da produção em uma escala menor antes de ampliar. O objetivo é testar o solo e a forma como a comunidade lida com essa produção, além de começar a colocar os produtos no mercado, para servir de demonstração.
Tudo isso será coordenado por um núcleo de base que será composto por representantes do MST, da União Comunera e do governo. Haverá uma coordenação executiva, com integrantes desses 3 grupos, e uma coordenação geral, com apenas o coletivo político e técnico do MST
De acordo com Gessica Lima, essa participação do governo compõe uma diferença grande para a organização do acampamento e a estruturação da produção, além de ajudar com a comercialização dos produtos. Ela afirma que um dos intuitos do MST também é aprender sobre essa relação do governo com o povo venezuelano.
“É uma estrutura governamental, uma estrutura sistemática. Tem essa ligação com o governo, mas ainda assim precisa lutar e manter uma certa resistência para que as coisas aconteçam. Uma delas são as políticas de comercialização desses produtores. Então o MST vem para contribuir nessa organização e, claro, também para aprender como é esse vínculo do governo com a com o povo”, afirmou.
Em um primeiro momento, o trabalho será feito em apenas 4.200 hectares como transição da forma de produzir que é feita hoje para um sistema agroecológico. Atualmente, o território da Vergareña está ocupado por comunidades indígenas, 5 conselhos comunais, além das Forças Armadas.
Os principais alimentos produzidos na região são inhame, mamão, mandioca, banana, abóbora e cana de açúcar. Desses, o produto que tem maior escala de produção é a banana, com 1.125 toneladas por ano. Eles também têm uma produção animal, com 42 toneladas por ano de queijo e 42 de carne. A meta é ampliar essa produção não só em quantidade, mas também em variedade.
Para o ciclo de inverno de 2025, a meta é passar para 30 mil toneladas de milho, 1.500 toneladas de feijão e 1.000 de frango. Tudo isso a partir de uma produção agroflorestal.
Além de uma produção suficiente, governo e MST definiram outros objetivos para a o projeto. A contribuição para a implementação de um plano produtivo para a safra de 2025, ampliar o acampamento de forma gradual com novas famílias e contribuir com a definição de formas de organização de comercialização coletiva, a partir de políticas públicas.
Entre as linhas de ação, também estão a criação de uma linha de crédito e um fundo de contratação pública para os produtos, além da construção de agroindústrias locais com processos de cooperação, tendo como perspectiva a organização coletiva do trabalho e a autogestão das famílias. A realização de um censo agrícola também está no horizonte do projeto Pátria Grande do Sul.
O governo espera ter como impacto direto o desenvolvimento econômico da região, uma sustentabilidade ambiental, a melhora na qualidade de vida das pessoas e o fortalecimento da identidade regional. Tudo isso envolvendo também uma educação técnica e formação política que serão levadas a cabo pela escola que será montada pelo MST na região.
Há, no entanto, uma diferença entre o que o MST faz no Brasil e o que faz na Venezuela. Se de um lado a luta é pela reforma agrária, no outro, a ideia é colaborar com a produção e transmitir os conhecimentos técnicos.
“A gente não vem para intervir diretamente nessas questões de como produzir. A gente vem para criar possibilidades para que elas aconteçam. Uma ferramenta de luta no Brasil com essas questões é bem mais difícil porque a gente não tem uma boa relação com o governo. Aqui é diferente. O povo venezuelano tem uma boa relação com o governo”, disse Lima.
Parceria União Comunera
Apesar de encabeçar o projeto, o MST vai passar sua adminstração será transferida longo do tempo para a União Comunera. O movimento brasileiro parte do pressuposto que domina a técnica e o conhecimento da agroecologia, mas que a União Comunera tem a capacidade de organizar as famílias venezuelanas e sistematizar a produção.
“Não queremos ser protagonistas dessa história. O protagonismo dessa história cabe à União Comunera, porque a União Comunera é quem deve estar à frente, organizando as bases, as comunas. E, claro, fortalecendo ainda mais o movimento. Criando, cativando e construindo em conjunto”, afirmou Gessica Lima.
No último final de semana, militantes da organização venezuelana foram até o espaço para montar a estrutura do acampamento junto com o MST e aprender as técnicas usadas pelo movimento para o início dos trabalhos. A relação entre os dois grupos começou na fundação da instituição venezuelana, da qual o MST participou ativamente.
História da Vergareña
O Hato da Vergareña foi fundado em 1953 pelo então governador do estado Bolívar, Horacio Cabrera. O local tinha como foco a produção de gado e foi vendido depois ao empresário estadunidense Daniel Keith Ludwig. A ideia dele era tornar a Vergareña um importante ponto de produção no estado. Para isso, levou 18 mil cabeças de gado para a região.
O ex-presidente Hugo Chávez mudou a configuração da Vergareña em 2005, quando passou a discutir reforma agrária e falar sobre as terras ociosas e propriedades que não tinham documentos legais. Esse movimento foi parte de uma mudança na postura do governo com a produção mineira, que passou a tentar recuperar para o Estado os territórios utilizados pela mineração ilegal.
Chávez comprou o território da Vergareña em 2006, com 187 mil hectares. A partir daí, o governo venezuelano desenvolve uma série de projetos florestais e agrícolas, usando o sistema de cooperação agrícola Fundos Zamorano. A AgroFANB também foi um projeto militar que passou a ser desenvolvido na área da Vergareña com alianças comerciais e uma revitalização agricola na região.