O evento “Abril Indígena em Santo André – Marco Temporal, Direitos Indígenas e Emergência Climática” reuniu, neste sábado (12), cerca de 150 pessoas na Câmara Municipal de Santo André. A atividade contou com a presença de representantes dos povos Pataxó, Pankará, Pankararu e Guarani Mbya, oriundos de aldeias como Brilho do Sol, Guyrapaju e Nhamandu Mirim, localizadas em São Bernardo do Campo.
Carlos César Buono, chefe de gabinete do vereador Ricardo Alvarez, explicou que a escolha da Câmara, “no centro do plenário, onde ficam os vereadores” — foi proposital: “Queremos que eles ocupem os espaços de poder”, afirmou.
A programação incluiu a exibição do documentário Reconstruindo a História, de Flávio Marin, que retrata a trajetória da cacica Jaqueline Haywã Pataxó, liderança indígena residente em Ribeirão Pires. Sua família foi expulsa de suas terras no sul da Bahia antes de seu nascimento, migrando para o ABC paulista em busca de melhores condições de vida.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Jaqueline contou que descobriu pertencer ao povo Pataxó Hã Hã Hãe, da etnia Kariri-Sapuyá, em 1997, após o assassinato de Galdino Jesus dos Santos em Brasília — queimado por cinco adolescentes enquanto dormia em uma praça. “Foi nesse ano que descobri que eu era Pataxó ‘de verdade’, porque a gente não tinha denominação. Minha avó dizia que a gente era ‘povo do mato’. Não sabia que éramos indígenas, achava que éramos pobres”, relata.
Jaqueline explica que seu pai reconheceu familiares durante o velório de Galdino. Até então, o assunto era quase proibido na família, por medo de retaliações associadas à violência histórica na Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguassu. “Até hoje, no sul da Bahia, ser indígena é sinal de perigo. Então as pessoas escondem isso.”
Foi durante a pandemia que Jaqueline decidiu protagonizar a luta pelo reconhecimento indígena na região metropolitana. “Vi uma reportagem com o prefeito de Ribeirão Pires dizendo que não havia recebido doses de vacina para indígenas porque não havia indígenas na cidade. Fui até o posto de saúde com meu documento que atesta minha origem e me disseram que eu não era indígena porque não estava nua.” A partir daí, ela percorreu os sete municípios do ABC, liderando um processo de cadastramento que resultou em 308 pataxós registrados, a fim de combater o preconceito no sistema de saúde. Segundo dados do Censo do IBGE, vivem atualmente 3.012 indígenas na região.
De acordo com o procurador da República Steven Shuniti Zwicker, presente no evento, os indígenas em contexto urbano de Santo André têm priorizado a pauta da saúde. Ele explica que a Lei 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) estabelece um subsistema de saúde indígena que precisa ser garantido. “Isso significa oferecer um ambiente mais aberto para compreender as causas do adoecimento na cultura indígena, que são muito diferentes da cultura não indígena. O profissional de saúde precisa estar preparado para esse atendimento e é fundamental capacitar os profissionais já inseridos na rede.”
O vereador Ricardo Alvarez destacou que o ambulatório indígena na Clínica da Família São Jorge, inaugurado em 6 de abril de 2024, em Santo André, é um motivo de orgulho para seu mandato, que tem se colocado à disposição da organização e mobilização indígena na região. “Temos realizado diversas atividades aqui na Câmara, incluindo reuniões com a Procuradoria da República. É importante falar, sair da invisibilidade — e o mandato tem sido um veículo para isso acontecer.”
Durante a mesa de debate que antecedeu a exibição do documentário, Lavínia Oliveira, integrante do projeto Xingu, destacou a importância do modelo de saúde indígena, reconhecido pela campanha One Health, da Organização Mundial da Saúde (OMS). A abordagem propõe a integração entre saúde humana, animal, vegetal e ambiental. “No mundo ocidental, predomina uma hegemonia que chamamos de modelo biomédico, centrado no médico e nos fármacos, sem abertura para outras práticas culturais, como as medicinas indígenas. O One Health entende que saúde vem da integração com a natureza — de uma água limpa, ar puro, da calma e da espiritualidade. Nesse sentido, o pensamento indígena está muito à frente. Saúde é estar conectado com sua terra, com seu chão e com sua ancestralidade.”
O evento contou também com a presença do deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que iniciou sua fala pedindo uma salva de palmas às mulheres indígenas. Ele relembrou que, durante a ditadura militar, milhares de indígenas Waimiri Atroari foram dizimados, inclusive com práticas genocidas como o envio de roupas contaminadas por sarampo.
Valente destacou que as terras indígenas são hoje as mais preservadas do planeta e os povos originários são os verdadeiros guardiões da natureza. Criticou a contradição entre o tratamento dado às lideranças indígenas no Brasil e no exterior: “Enquanto no último Acampamento Terra Livre (ATL) foram recebidos com bombas, na COP-15 o cacique Raoni foi aplaudido de pé.”
Para ele, é motivo de orgulho que, em tempos de crise climática, o Brasil ainda conte com territórios tão preservados. “As terras são da União, mas quem as preserva são os indígenas, e por isso precisam ser respeitados.” O deputado também criticou o agronegócio brasileiro, apontando-o como o principal inimigo dos povos originários. “Talvez só percebam a importância da natureza quando a seca durar cinco ou seis anos e a exportação colapsar.”
Valente alertou ainda para as tentativas de desmontar o artigo 231 da Constituição Federal, que garante os direitos indígenas. Defendeu que é dever do Estado demarcar e proteger essas terras. Em sua fala, também lembrou o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, quando 21 camponeses foram assassinados a sangue-frio, destacando a luta do MST e o Abril Vermelho.
“Os movimentos precisam se levantar. Estamos aqui para informar e mobilizar a opinião pública. A luta indígena é uma luta contra a exploração e contra a miséria. Todos os dias, indígenas, camponeses e quilombolas são assassinados por milícias no campo”, denunciou. O parlamentar encerrou sua fala pedindo solidariedade à deputada Célia Xakriabá e reforçando a necessidade de ampliar a demarcação de terras indígenas no Brasil.
Além da mesa de debate e da exibição do documentário, o evento também contou com o “Espaço Curumim”, dedicado às crianças, e com a presença de artesãos indígenas que compartilharam saberes e expressões culturais de seus povos. O encontro foi encerrado com a Toré, dança circular sagrada que reuniu os diversos povos presentes em um momento de celebração, conexão e reafirmação da identidade indígena.