Nem os lugares mais protegidos estão livres dos impactos do uso extensivo de agrotóxicos no Brasil, que é o maior consumidor de insumos químicos para uso agrícola do mundo. Um estudo que contou com a participação de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) identificou a presença de agrotóxicos em amostras de sedimentos de seis lagos e áreas alagadas de montanhas intocadas em dois parques nacionais brasileiros: o Parque Nacional do Itatiaia e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, ambos localizados no Rio de Janeiro.
Essas áreas estão sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).
Nas amostras, foram encontrados 17 tipos de venenos, incluindo herbicidas, inseticidas, fungicidas e acaricidas. Os produtos mais frequentemente detectados foram carbendazim e carbaryl, seguidos por acetochlor, clorpirifós, diuron, metolachlor e tebuconazole. O clorpirifós foi o que apresentou as maiores concentrações e risco ecológico potencial. Esse inseticida, amplamente utilizado em lavouras, é apontado como altamente tóxico e relacionado a abortos espontâneos e problemas neurológicos em fetos e crianças.
Mas se esses lagos estão localizados em terrenos de altitude elevada, dentro de áreas protegidas e intocadas, onde não há aplicação direta de agrotóxicos, como esses produtos químicos foram parar lá? Cláudio Parente, um dos pesquisadores envolvidos explica.
“O que é mais interessante, e por isso é importante a gente levar para uma ampla discussão, é a capacidade dessas substâncias de percorrerem longas distâncias através de três formas: sendo volatilizadas, então em forma de gás, ou associadas a partículas, que podem ser sólidas ou aerossóis, que são pequenas gotículas. Então a gente tem essas três formas. E o que chama a atenção é isso: de que a gente está numa área de conservação e que está bastante distante de onde se espera que sejam aplicados esses produtos”, afirma o pesquisador.
“O que a gente mostra nesse trabalho é que os agrotóxicos não respeitam fronteiras. Então a gente tem uma fronteira de dois parques nacionais, que são áreas de controle do ICMBio, ou seja, de interesse público, mas os agrotóxicos não respeitam essas fronteiras”, completa.
Para Alan Tygel, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, embora o estudo se concentre nas áreas protegidas e intocadas, os resultados são um alerta para toda a população.
“Esse estudo chama a atenção para o aspecto da poluição ambiental e que, como mostra a pesquisa, não está restrita às áreas diretamente afetadas pelos agrotóxicos, o que também nos leva a crer que a saúde humana e as pessoas estão expostas a esses agrotóxicos em áreas muito distantes de onde o veneno é utilizado”, afirma Tygel. “Às vezes, quem está na cidade, quem está em lugares protegidos, pensa que o problema não está diretamente relacionado consigo, e esse estudo traz essa dimensão universal do uso desses elementos químicos”, completa.
Além do fator distância, Tygel explica que uma das preocupações sobre o uso dessas substâncias é justamente a persistência da contaminação no tempo. “Os agrotóxicos englobam uma gama muito ampla de produtos químicos e cada um, cada grupo químico, vai ter suas próprias dinâmicas. Então, de fato, a gente tem alguns agrotóxicos que não são persistentes, que eventualmente não vão causar dano a longo prazo, mas a gente tem várias substâncias que são persistentes e que, inclusive, se diluem facilmente na água e permanecem na água”, alerta.
“Esse tema da contaminação da água é um tema fundamental porque é por onde chega em todo mundo. Ainda que você consiga, por exemplo, ter acesso a alimentos agroecológicos, não estando tão exposto aos agrotóxicos pela via da alimentação, pela via do consumo da água, realmente todo mundo vai estar exposto a essa contaminação”, disse o ativista, que completa afirmando que segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 25% dos municípios brasileiros têm detecção de agrotóxicos, em muitos casos acima dos níveis encontrados nos alimentos.
O estudo
O estudo, intitulado Ocorrência de agrotóxicos de uso atual em sedimentos de lagos e áreas alagadas em áreas montanhosas intocadas de parques nacionais brasileiros (tradução livre do inglês: Occurrence of current-use pesticides in sediment cores from lakes and peatlands in pristine mountain areas of Brazilian national parks), foi realizado em parceria entre o Laboratório de Estudos Ambientais Olaf Malm, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ, e a Faculdade de Ciências da Universidade Masaryk, da República Tcheca.
A pesquisa destaca a grande preocupação em relação ao comportamento dos agrotóxicos, sobretudo por sua “persistência ambiental e tendência de se espalhar além das áreas de aplicação ao longo do tempo”; e afirma objetivar “lançar luz sobre os desafios para a conservação da biodiversidade devido ao transporte de pesticidas ar longa distância para campos de altitude protegidos”.

De acordo com o relatório divulgado, “estudos em regiões montanhosas sugerem que temperaturas mais frias aumentam a precipitação, promovendo a deposição de agrotóxicos em altas altitudes”, ou seja, as substâncias são levadas às áreas mais altas por via aérea e depositados no solo e nas águas a partir das chuvas. “Áreas montanhosas podem servir como zonas de convergência para a dinâmica de agrotóxicos voláteis e semivoláteis”, destaca o estudo, apontando ainda que as montanhas representam mais de 30% da superfície da Terra e abrigam aproximadamente 23% das florestas do mundo.
Sobre o agrotóxico clorpirifós, principal substância identificada no estudo, os pesquisadores afirmam que ele “tem potencial para ser transportado por distâncias de 200 a 400 km através da atmosfera antes que ocorra deposição ou transformação”. Já sobre o acetochlor, o estudo indica que ele apresentou alto risco para a biota aquática e que estudos anteriores indicam que esse agrotóxico é altamente tóxico para peixes, “sendo associado a deformidades, disrupções hormonais, malformações neurológicas e mortalidade”. “Além disso, o acetochlor tem potencial para perturbar interações ecológicas e redes tróficas em ecossistemas de água doce”, diz o texto.
O relatório destaca ainda que que a toxicidade dos pesticidas “pode ser subestimada ao analisar compostos individuais”, sem considerar os efeitos da mistura dessas substâncias.
“Os valores de alto risco quociente observados para clorpirifós, acetochlor e outros compostos demonstram as potenciais ameaças ecológicas que essas substâncias representam aos ecossistemas sensíveis de água doce. As descobertas ressaltam a necessidade de ação urgente para mitigar o impacto da contaminação por pesticidas, particularmente em regiões de alta biodiversidade. Medidas regulatórias aprimoradas, juntamente com práticas agrícolas sustentáveis, são cruciais para proteger esses ecossistemas inestimáveis de maior degradação”, afirmam os pesquisadores na conclusão do estudo.
E o que fazer?
Segundo os pesquisadores envolvidos, esse monitoramento vem sendo realizado há mais de 15 anos, evidenciando a persistência do problema e até o seu agravamento. Para Parente, não há outra alternativa, senão a transição de para um modelo de produção agroalimentar sustentável.
“Não há como evitar que moléculas, ou seja, substâncias químicas, viagem pela massa de ar e cheguem até uma área de conservação. A única coisa que a gente pode fazer, de fato, é uma transição no nosso modo de produção”, diz o pesquisador.
Alan Tygel vai na mesma direção. “Não existe uma convivência possível, não existe um uso seguro possível, não existe usar um pouquinho, usar só quando precisa. Nada disso resolve o problema central que é o modelo de produção, que é essa forma em que o capitalismo se apropria da produção agrícola, dos espaços rurais e ao mesmo tempo, vai expulsando as comunidades, envenenando os locais e tornando o campo um lugar inóspito de se viver e contaminado por tudo que é lado”, avalia o ativista.
No entanto, Tygel destaca que pouco se tem avançado nessa pauta no último período. “Estamos numa situação muito difícil, porque por um lado, a gente vem tentando trazer todas as evidências, mostrar estudos, mostrar possibilidades, criar alternativas. Mas por outro lado, o que a gente vê a partir do governo federal é uma dificuldade muito grande de se encaminhar questões mínimas dentro dessa pauta”, disse Tygel, lembrando que ainda não foi publicado o decreto para a atualização do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), prometido pelo governo.
“Nós tivemos no ano passado, se não perdi a conta, seis adiamentos do lançamento do Pronara. E aí tivemos no final do ano, no dia 3 de dezembro, um lançamento que não lançou. Foi feito um seminário, foi feito tudo, mas o decreto mesmo não foi assinado. Nesse momento, o decreto está pronto. Havia uma expectativa de um lançamento agora em março, e também já não foi cumprido”, critica o ativista.
ICMBio critica Lei dos Agrotóxicos e defende restrições
Em resposta aos questionamentos do Brasil de Fato, o ICMBio afirmou que “os estudos da UFRJ sobre poluição foram autorizados e vêm sendo apoiados pelo Parque Nacional da Serra dos Órgãos há mais de 15 anos”. “Além de garantir a proteção física destes espaços e sua biodiversidade é fundamental entender os efeitos que as atividades usos industriais na região têm sobre o parque”, disse o instituto.
“O estudo reforça que a conservação ambiental precisa ir além da fronteira das áreas protegidas. Incentivamos práticas agrícolas sustentáveis no entorno do parque, mas se não houver controle de agrotóxicos e outros poluentes mesmo as paisagens mais intocadas serão contaminadas e ficarão comprometidas”, afirmou, em nota.
Segundo o Instituto Chico Mendes, as medidas necessárias para a garantia da proteção desses parques contra os efeitos do uso de agrotóxicos “não estão relacionados diretamente à gestão dos parques e envolvem a restrição ao uso de agrotóxicos e regulação das atividades industriais de forma a reduzir a liberação destes poluentes para a atmosfera”. “Infelizmente temos visto retrocessos legais, como a Nova Lei dos Agrotóxicos, que facilitou a liberação de produtos tóxicos como os encontrados no estudo”, disse o órgão.
A Lei nº 14785, mencionada pelo ICMBio, foi aprovada pelo Congresso Nacional em novembro de 2023 e sancionada um mês depois pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O novo texto flexibilizou normas para o registro de novos agrotóxicos no Brasil, e retirou das autoridades ambientais e sanitárias o poder de veto sobre essas autorizações, que ficam concentradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Dessa forma, as classificações realizadas pela Anvisa e pelo Ibama passaram a servir apenas para o estabelecimento de protocolos de uso desses produtos.
Em 2024, o Brasil bateu o recorde de liberação de agrotóxicos, segundo informações do próprio Mapa. Foram 663 produtos aprovados, um aumento de 19% em relação a 2023. Desses, apenas 106 produtos de origem biológica, os chamados “bioinsumos”.
Ibama: ‘isso não é comigo’
Já o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmou em nota que “não teve conhecimento prévio do estudo”. De acordo com o comunicado, “os agrotóxicos apenas podem ser prescritos e utilizados nas condições aprovadas pelas autoridades de agricultura, saúde e meio ambiente. Qualquer eventual uso irregular, nos termos do art. 9º da Lei nº 14.785/2023 (Nova Lei de Agrotóxicos), a exemplo do que já era estabelecido no art. 10 da revogada Lei nº 7.802/1989, compete aos estados e ao Distrito Federal”.
O instituto disse que ainda que compete às unidades federativas, nos termos dos artigos 23 e 24 da Constituição Federal, “legislar supletivamente sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos e dos produtos de controle ambiental, de seus componentes e afins, bem como fiscalizar o uso, o consumo, o comércio, o armazenamento e o transporte interno desses”.
Em suma, disse o órgão, “em um primeiro plano, cabe aos estados e ao Distrito Federal normatizar supletivamente e fiscalizar quanto ao uso desses produtos em suas respectivas jurisdições, podendo, com maior propriedade, averiguar in loco se a utilização desses agentes está sendo realizada em fiel cumprimento às condições aprovadas pelas autoridades estatais competentes, devendo a União prestar o apoio necessário”, finaliza.
O MMA não respondeu os questionamentos enviados pela reportagem.