“Feminicídio é o último estágio da violência. Nós não podemos aceitar a volta da barbárie a partir do corpo das mulheres no nosso país. É a nossa vida. São os nossos filhos. (…) Nós precisamos fazer com que os homens estejam com a gente nessa caminhada. A luta contra a violência contra as mulheres, contra o feminicídio, não é um problema das mulheres, é um problema da sociedade, é um problema do Brasil”, afirmou a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, para um auditório lotado, na manhã desta segunda-feira (14), em Porto Alegre.
A ministra participou da solenidade da assinatura de adesão da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul à Campanha Feminicídio Zero. O parlamento gaúcho é o primeiro do país a se juntar à mobilização nacional. O documento foi assinado pelo presidente do poder Legislativo, Pepe Vargas (PT), pela ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, e pela coordenadora da Força-Tarefa contra o Feminicídio, vinculada à Comissão de Segurança, Serviços Públicos e Modernização do Estado, Stela Farias (PT).
Na ocasião também foram assinadas cartas compromisso pelo fim da violência contra as mulheres pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e pelos dois maiores times de futebol do estado, Grêmio e Internacional. Também foi realizado o lançamento da exposição fotográfica Arrancada de Nós, histórias que precisam ser contadas. O evento contou com a presença de movimentos sociais, feministas, entidades da sociedade civil, parlamentares gaúchos, representantes do poder Judiciário, familiares de vítimas de feminicídio, entre outros. Ao final da cerimônia houve apresentação artística.

Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, entre os anos de 2015 e 2024, foram registradas 11.650 ocorrências de feminicídios. Em 2023, foram 1.438 casos de feminicídio. Já em 2024 foram 1.450. Os dados constam no Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam 2025), do Ministério das Mulheres, divulgado no dia 25 de março.
Em outubro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a Lei 14.994/24, que ampliou a pena de reclusão para os crimes de feminicídio, passando de 12 a 30 anos para 20 a 40 anos. Conhecido como “Pacote Antifeminicídio”, o texto incluiu o feminicídio como crime autônomo e hediondo.
A Campanha Nacional “Feminicídio Zero – nenhuma violência contra a mulher deve ser tolerada” tem como objetivo mobilizar a sociedade contra todos os tipos de violência contra as mulheres, para que não se chegue ao feminicídio.

É preciso romper o silêncio
“Como um país do tamanho e com a população do Brasil não escuta o grito desesperado de uma mulher pela vida? Como é que pode um país inteiro não escutar o desespero de uma criança de zero a nove anos sendo violentada? Como é que esse país não escuta? Como não faz nada? Como é que as pessoas ignoram isso? Todo mundo ignora, é um silêncio. É esse silêncio que cada dia mata as mulheres. É esse silêncio que não nos ajuda avançar”, afirmou a ministra.
Segundo apontou Gonçalves, a violência contra as mulheres aumentou porque no país foi colocada uma cultura de ódio, de intolerância e de desrespeito. “Há dez anos, uma mulher era morta com 54 facadas, crime que só o ódio autoriza. Agora, não são só facadas. São seus filhos que são assassinados também ou seus corpos que são queimados vivo.”
Ela destacou também a responsabilidade que os times de futebol têm no combate à violência de gênero. “Depois dos jogos de futebol a violência contra as mulheres aumenta em 26%, independente se o time ganha ou perde. Portanto, os times têm uma responsabilidade fundamental, estratégica, para que nós possamos lutar contra isso. As torcidas são fundamentais em todo o processo de reconstrução do que eu chamo de mudança de comportamento.”
Conforme enfatizou a ministra, a luta contra a violência às mulheres é de toda sociedade. “A denúncia tem que chegar, o Estado tem que saber. Nós precisamos começar a nos envolver nesse processo, fazer a denúncia. Muitas vezes, basta discar três números – 190 ou 180 – para salvar a vida de uma mulher.”

Ao assinar a adesão, destacou a ministra, o Legislativo gaúcho assume a responsabilidade, junto com o Ministério da Justiça, governo federal, Ministério Público, de fiscalizar e colocar as políticas públicas de enfrentamento à todas as formas de violência, inclusive a desigualdade salarial no debate.
“Feminicídio zero significa um país de amor, de respeito, de solidariedade e justiça social. Significa dizer que nós não vamos aceitar que as mulheres sejam caladas, mortas. Então, sejam bem-vindos à mobilização do feminicídio zero”, finalizou.
Nenhuma violência contra a mulher deve ser tolerada
“Precisamos entender que o feminicídio é o ponto final de uma escalada de violências, patrimoniais, físicas, psicológicas e sexuais. É o resultado direto da falta de educação antissexista nas escolas e da carência absoluta de políticas públicas efetivas. O feminicídio no Brasil tem raiz na cultura patriarcal que transforma os corpos femininos em objetos de posse”, expôs a deputada Stela Farias.
Proponente do evento, a parlamentar discorreu sobre as conquistas no combate à violência de gênero, a partir do assassinato de Ângela Diniz, que gerou o movimento feminista de Quem Ama Não Mata; a Lei Maria da Penha, em 2016; a Lei do Feminicídio, em 2015, e a atualização dela em 2024; e a proibição, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2023, da tese de legítima defesa da honra.

A deputada destacou ainda que o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. “São, em média, quatro feminicídios por dia. Só no Rio Grande do Sul, em 2024, a Secretaria Estadual de Segurança Pública publicou 72 casos. Contudo o trabalho conjunto da Lupa Feminista junto com a Força-Tarefa, chegou a 111 feminicídios no estado. Uma discrepância inaceitável.”
Farias pontuou os retrocessos no governo de Jair Bolsonaro no que tange as políticas públicas para as mulheres, a precarização de atendimento às vítimas, como também a violência de política de gênero. Por outro lado, destacou os avanços do atual governo, entre eles, a recriação do Ministério das Mulheres, e a aprovação da Lei nº 14.192/2021, que alterou o Código Eleitoral e tornou crime a violência política de gênero. “Mas só as leis não bastam. É preciso transformar a cultura como estamos fazendo aqui. Com iniciativas que trabalham com homens agressores para desconstruir masculinidades tóxicas. Seguiremos em frente, até que nenhuma mulher seja mais arrancada de nós.”
Não se fala do feminicídio falando da outra
Relatora da Lei do Feminicídio, a deputada federal Maria do Rosário destacou que é nos parlamentos que têm surgido, se fortalecido, um discurso de ódio contra as mulheres. “A mesma Câmara dos Deputados que aprovou estas leis, é onde, todos os dias, existem discursos de violência política contra as mulheres parlamentares. Estamos sendo desafiados e desafiadas, principalmente, no que diz respeito às instituições que nós representamos.”
Para a parlamentar, a Câmara precisa superar esse momento, pois o sistema não pode apenas contar com leis de dentro para fora das instituições. “O sistema precisa modificar o padrão cultural das instituições para assegurar que, de dentro delas, não surja o mau exemplo, que acaba empoderando dentro de cada casa, de cada relacionamento, tantas e tantas vezes, a repetição de crimes de ódio e da naturalização da violência contra as mulheres. O feminicídio não inicia quando uma arma é apontada para a cabeça, ali se dá a finalização.”

Rosário lembrou do feminicídio da jovem indígena Kaingang Daiane Griá Sales, caso que resultou na primeira classificação de etnofobia do país. Ao falar da jovem, ela lembrou que a cada seis horas uma mulher é morta no país. “É por isso que a ministra nos propõe o feminicídio zero. Porque nós nos importamos. Porque nós precisamos nos antecipar. Há mais seis que serão mortas hoje. Doze amanhã. Dezoito em três dias.”
Conforme frisou a deputada, não se fala do feminicídio falando da outra pessoa, da outra mulher. “É preciso enxergar em nós mesmas cada vítima para conseguirmos transformar essa sociedade e dizer, parem de nos matar, porque nós existimos para viver. E para a Câmara parar de aceitar os discursos de ódio no ambiente parlamentar. Enfrentar o discurso de ódio ali dentro é uma contribuição tão grande quanto as legislações que foram feitas para que todas as mulheres brasileiras sejam respeitadas e livres. Livres para viver sem violência, para viver sem a morte à espreita.”
Para Pepe Vargas, nada nos afasta tanto de um conceito de sociedade civilizada como essa vergonha nacional que é o número de feminicídios que ocorrem em nosso país. “Jamais seremos uma civilização no verdadeiro sentido da palavra enquanto a gente tenha violência contra as mulheres, discriminação de qualquer forma, desigualdades gritantes, enquanto isso persistir.”
Ele também enfatizou a presença das mulheres nos espaços de poder, o que para ele tem sido fundamental para dar visibilidade ao problema da violência de gênero, e por isso a importância da ampliação dessa representação. Para que isso ocorra, apontou, é preciso uma mudança no sistema eleitoral, com a instituição do voto em lista intercalada (um homem e mulher). “Isso pode assustar alguns homens, mas dificilmente iremos avançar na superação de todos os tipos de violência de gênero sem que ocorra um avanço da presença das mulheres nos espaços decisórios.”

Luta em campo e na universidade
“Temos a responsabilidade de usar a força do esporte para abraçar causas sociais. Estamos totalmente à disposição para vestir essa luta dentro e fora de campo”, afirmou o presidente do Grêmio, Alberto Guerra.
Na mesma linha a diretora feminina do Internacional, Tamarisa Lopes, destacou a importância da luta contra o feminicídio dentro do futebol. “Somos o clube com maior número de sócias no Brasil. Não poderíamos ficar de fora dessa causa. Feminicídio zero é uma pauta de todos, inclusive do futebol, que também é espaço de luta e acolhimento.”

A reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Márcia Barbosa, começou sua fala perguntando aos presentes quando foi a última vez que sentiram medo. “Tenho certeza que as mulheres vão ter tido medo ao andar em uma rua escura, ao entrar em um elevador tarde da noite. Há coisas que o homem nem pensaria como uma ocasião de ter medo. O medo nos acompanha cotidianamente. Os homens têm medo de que as mulheres riam deles, as mulheres têm medo de ser mortas, e é um medo todos os dias.”
A reitora citou também que anos atrás a universidade fez um estudo que mostrou que, dentro da universidade, 50% da comunidade já tinha sofrido assédio moral e 10% sexual. “Reconhecendo isso essa gestão estabeleceu compromisso de trabalhar, e estamos fazendo formação de gestores para entender essa situação de assédio.”

A dor que fica
O Brasil de Fato RS conversou com a mãe de uma vítima de feminicídio de 2023, Mariana Canofe Marques, morta pelo ex-companheiro, um policial militar, com o qual teve um relacionamento de dois anos.
“Ela estava de aniversário no dia 11, então vem tudo de novo. Claro que todos os dias é doloroso, mas desses dias pra cá tem sido bem mais complicado”, desabafa Viviane Canofe. A filha dela tinha 21 anos.
Segundo relata a mãe, a relação do casal foi permeada de agressões físicas, psicológicas. “Ela já tinha botado Maria da Penha. Só que, por ser policial, ele ia lá e conversava e ela tirava o processo. E aí eles voltavam, e aí ele agredia ela de novo. Torturava mentalmente, que se ela contasse ele ia nos matar. Eu e o pai dela. E ela por ser filha única, muito apegada em nós, não contava para a família. Ela contava pra uma amiga do serviço.”

Foi essa amiga que avisou a família que a filha vinha sofrendo mais violência, com marcas no corpo, embaixo da roupa. Ele também teria matado dois cachorros que a vítima tinha adotado, o terceiro ela conseguiu entregar para a família. “Fez isso para machucar ela mentalmente”, afirma a mãe.
O ex-companheiro foi preso e morreu na prisão.
“Fica a dor também, pra gente, pra família. Eu sou uma pessoa que eu não ligo mais a televisão, eu não olho mais, porque todos os dias aparece dois, três, quatro casos. Então eu procuro não ligar mais a televisão. A minha vida, depois que eu perdi ela, é só assistir YouTube, só música.”
Viviane Canofe foi acompanhada do marido e familiares, todos com a camiseta estampada com a foto de Mariana, que também é uma das vítimas de feminicídio que compõe a exposição.
