Um dos mais belos textos da literatura brasileira, o livro Os Ratos, de Dyonelio Machado, está completando 90 anos em 2025. Considerado por estrelas das letras do porte de Mário de Andrade e Guimarães Rosa como um dos maiores prosadores da sua geração, o autor da obra também ganhou em 1935 o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
O livro foi escrito em 20 noites depois do seu trabalho como médico. Ele também é lembrado em 2025 pelos seus 130 anos de nascimento e os 40 anos de sua morte. O ano terá muitas comemorações para festejar Dyonelio, principalmente na Feira do Livro, segundo conta seu neto César Machado, além de caminhadas literárias, palestras e cursos.

Natural de Quaraí, onde nasceu em 21 de agosto de 1895 e morto em Porto Alegre em 19 de junho de 1985, Dyonelio era um gigante, mas escreveu pouco: 12 livros na sua trajetória de escritor de 1927 a 1982. Era um cara muito ocupado. Foi escritor, poeta, psiquiatra, jornalista e político, mas principalmente comunista, como não cansava de dizer. Foi preso por esta opção e ficou até dois anos na cadeia nos tempos da ditadura de Getúlio Vargas. Exercia a todas as profissões com uma paixão desmedida, sem controle. O seu outro livro famoso foi O louco do Cati, escrito em 1942.
Com fama tardia, o meio acadêmico e outros parceiros de literatura só o consideraram um fenômeno a partir dos anos 1970 e 80, já nos últimos anos de sua vida. Não se importava com isso. Lendo várias biografias da sua carreira, ele até debochava das pessoas que o elogiavam. “Não me considero realizado em nada. Para mim, tudo que fiz presta ou tudo não presta”, disse em entrevista aos jornalistas Fernando Paixão e Nelson dos Reis, em 1981.
Os Ratos é um romance envolvente. Ele faz a gente viajar pelo mundo de um endividado dos anos 1930. Sempre há endividados, gente falida, mal remunerada, naqueles tempos e hoje também. Gente que apela para todos os santos para se livrar de seus problemas financeiros. Foi o que aconteceu com o personagem do livro, Naziazeno Barbosa, um funcionário público que precisava pagar uma dívida de 53 mil reis com o leiteiro em 24 horas. Caso contrário, ficaria desabastecido e sofreria outras represálias.

Naziazeno
Naquele dia, saiu de casa nervoso, perturbado, e tentou de tudo. Do diretor da repartição, a colegas, agiotas, casas de penhores, amigos, bancos, apelou por empréstimo. Não conseguiu nada. Sofreu, caminhou o dia inteiro, não fez o seu trabalho, tomou dezenas de cafezinhos, o dia ia avançando e nada de dinheiro. O romance, considerado uma das obras mais importantes da segunda geração do modernismo no Brasil, se desenvolve de uma forma cativante para o leitor.
Naziazeno consegue o dinheiro, mas não consegue dormir. Lembra que precisa pagar a quem lhe forneceu o dinheiro. Numa noite onde não pregou o olho no sono, ele começa a ter alucinações de que ratos estão roendo as cédulas que ele usaria para pagar o débito.
Os Ratos tem em 28 capítulos curtos e mostram toda a trajetória de um pobre homem, sem dinheiro, pela provinciana Porto Alegre da época. Um périplo de dor e sofrimento.
Quando escreveu Os Ratos, Dyonélio mostrou os desafios e as agruras de ser um brasileiro pobre em 1935, mas a situação vale perfeitamente para qualquer trabalhador dos dias de hoje. Sempre endividado e com dinheiro curto. O livro tem 192 páginas de pura agonia e deixa o leitor na torcida por um desfecho favorável.
Dyonélio Tubino Machado era filho de Sylvio Rodrigues Machado e de Elvira Tubino Machado. Ainda criança, seu pai foi assassinado, acontecimento que lhe marcaria para sempre. Com apenas oito anos, vendia bilhetes de loteria para ajudar no sustento da família – a mãe e o seu irmão Severino, segundo narram seus biógrafos.
Pobre, mas sempre persistente, ele nunca deixou de estudar. Chegou até a ser professor de colegas seus que estavam atrasados nos estudos, para não pagar o colégio. Foi se virando de um jeito ou outro. Aos 12 anos foi trabalhar no semanário O Quaraí. Se apaixonou pela vida da intelectualidade da cidadezinha e se apaixonou pelo jornalismo. Lá mesmo, em Quaraí, fundou, por volta de 1911, o jornal O Martelo, nome sugestivo e que já demonstrava o seu interesse pelo comunismo. Em 1911, fundou o jornal O Martelo, uma espécie de brincadeira de adolescente.

O médico
Alguns anos depois veio para Porto Alegre, onde estudou Medicina. Se formou em 1929 e fez especialização em psiquiatria no Rio de Janeiro. Foi um dos responsáveis pela introdução da psicanálise no Rio Grande do Sul. A medicina foi sua atividade mais constante e era dali que tirava o seu dinheiro para sobreviver.
Dyonélio foi ainda um dos fundadores da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e, mais tarde, colaborador dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, da capital gaúcha. Em 1946, com Décio Freitas, fundou o jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do Partido Comunista Brasileiro.
O militante
A militância politica tornou-se uma extensão de suas atividades como médico e escritor. Membro do Partido Comunista Brasileiro, foi eleito, em assembleia de fundação no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, presidente da seção regional da Aliança Nacional Libertadora (ANL). Já em 1935 foi acusado de atentar contra a ordem política e social ao trabalhar para a realização de uma greve de gráficos.
Solto mediante sursis, voltou a ser preso no mesmo ano, por ocasião dos Levantes de 1935. As posições ideológicas de Dyonélio Machado custaram-lhe dois anos de sua vida, passados na prisão. Mesmo assim, não mudou suas convicções, elegendo-se deputado estadual nas eleições de 1946, pelo PCB (ainda legalizado). Tornou-se líder da bancada na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Escritor
— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio a um leitor no final dos anos 70, segundo conta um dos seus biógrafos.
O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:
— Foi porque eu morri. Alguns escritores são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma delas me pegou, fazer o quê?
— Uma boa morte, pelo visto.
— Meu filho, não existe morte boa.
“Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho, Os Ratos. Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria Globo, a principal de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo. Ela datilografava o trabalho. Num dia, eu levava umas folhas manuscritas e pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’ Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu descobri que tinha um romance.”
Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa, um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no caos social em que vive.
Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia, de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoievski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e ambos foram presos em meados dos anos 30.
Em 1956, numa entrevista para o jornal A Hora, disse: “Se algum conselho eu tivesse o direito de dar aos jovens, seria de que a vida deve ser vivida com indiferença”. E, pouco antes de morrer, Dyonelio concedeu uma longa entrevista para Julieta de Godoy Ladeira onde fez uma declaração que sempre surpreende os que tem contato com seus bem cuidados textos: “Não releio o que faço. Meu narcisismo nasce e morre à primeira e única revisão”.
Obras do Autor
Um pobre Homem, contos: 1927
Os Ratos, romance: 1935
O Louco do Cati, romance: 1935
Desolação, romance: 1944
Deuses econômicos, romance: 1976
Prodígios, romance: 1980
Endiabrados, romance: 1980
Sol subterrâneo, romance: 1981
Nuanças, romance: 1981
Fada, romance: 1982
Ele vem do fundão, romance: 1982
Passos perdidos, romance: 1982
