Professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de diversos livros e ensaios que acompanham criticamente a evolução democrática brasileira, Juarez Guimarães defende que os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 não foram um evento isolado, mas uma consequência da fragilização sistemática das instituições brasileiras.
“As pessoas estão sendo penalizadas não por escreverem em uma estátua, mas por participarem, com graus diferenciados de consciência, dessa trama golpista. Estavam todos lá, engajados em reivindicar a ação dos militares contra o governo democraticamente eleito e participando da criação desse caos artificial”, diz o pesquisador.
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Para ele, as lutas em defesa da democracia e pela consolidação de direitos devem andar juntas.
“A luta democrática só tem a crescer com a ampliação dos direitos do povo brasileiro. Se houver conexão entre a firme defesa dos valores democráticos e o atendimento crescente dos direitos do povo brasileiro, eu não tenho dúvida de que Jair Bolsonaro (PL) será derrotado”, continua.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG – O que foi o 8 de janeiro de 2023 e o que esse evento simbolizou para a democracia do nosso país?
A ciência política brasileira tinha uma falsa consciência de estabilidade na democracia brasileira após a Constituição Federal de 1988. Alguns argumentavam, inclusive eu, de modo mais crítico a essa percepção de que as instituições democráticas brasileiras já tinham construído sua estabilidade.
Nos últimos anos, tivemos o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), que foi realizado de modo inconstitucional, uma vez que não ficou definido o crime de responsabilidade em que ela teria infringido a lei. Esse episódio foi, portanto, julgado como antidemocrático pela maioria da ciência política brasileira.
Depois disso, tivemos o processo contra o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), feito de modo arbitrário, sem reconhecer o devido processo legal, que gerou todo um movimento nacional e internacional de denúncia. A própria decisão da operação Lava Jato acabou sendo anulada.
Houve ainda, durante o governo ilegítimo de Michel Temer (MDB), a votação pelo Congresso Nacional da chamada “PEC do Fim do Mundo”, que restringia por 20 anos novos investimentos nas políticas sociais.
Essa Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi chamada por muitos juristas de um “golpe constitucional”, porque ela tornava praticamente nula a responsabilidade do Estado, prevista na Constituição Federal, com um conjunto de políticas públicas necessárias à sobrevivência do povo. Esse foi um terceiro momento que revelou a instabilidade da democracia brasileira.
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As manifestações do 8 de janeiro ocorreram nesse contexto. Como sabemos hoje, houve um plano secreto, que envolvia o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), vários ministros militares e alguns chefes das Forças Armadas, articulado ao movimento nas redes, mobilizado pelo bolsonarismo, que buscava criar um clima artificial de caos no país, para justificar um golpe de Estado.
Um golpe militar que, segundo os planos revelados por meio de confissões, documentos e mensagens gravadas, incluía o plano de matar o presidente eleito, o vice-presidente eleito e também ministros do Superior Tribunal Federal (STF).
É uma conspiração de extrema gravidade contra a democracia brasileira, que só não foi acionada porque não reuniu as condições necessárias para êxito. Não foi fracassado porque os artífices dessa conspiração desistiram de fazer, mas porque eles não conseguiram criar as condições mínimas necessárias, entre elas a adesão do conjunto das Forças Armadas e a anuência do então presidente dos Estados Unidos.
Por que a tentativa de golpe está sendo julgada no STF e qual a importância da atuação da Corte?
O maior papel do STF é defender a Constituição Federal, que foi gravemente ameaçada de violação por parte dessa conspiração golpista. Por isso, esses fatos devem ser julgados na instância superior.
O STF está simplesmente cumprindo o seu papel constitucional. A condição de ele ser o fórum adequado resulta do fato de que as pessoas envolvidas não eram nada mais e nada menos do que o presidente do país, o vice-presidente do país, chefes das Forças Armadas e ministros.
Partindo desse ponto de vista, o julgamento pelo Superior Tribunal Federal está completamente dentro dos marcos democráticos da Constituição Federal de 1988.
É interessante, inclusive, demarcar a diferença do comportamento do STF brasileiro em relação à Suprema Corte norte-americana. Por ter hoje uma composição conservadora, pró-partido republicano, lá, o processo judicial contra a invasão do Capitólio não teve cumprido o rito judicial necessário, o que mostra o grau de crise nas instituições norte-americanas.
Com o andamento dos processos e condenação dos envolvidos, a proporção das penas também tem sido questionada. Em sua avaliação, as penas aplicadas são condizentes com a gravidade dos crimes?
As investigações feitas até agora pela Polícia Federal (PF) preservam todo o rito legal de investigação e, inclusive, o direito dos acusados de se defenderem. Portanto, o processo está seguindo o rito que deve ser seguido. O que foi revelado, até agora, constitui uma narrativa de tentativa de golpe.
Primeiro, aglomeraram-se pequenas multidões na porta dos quarteis, em várias capitais brasileiras, com faixas clamando pela intervenção dos militares, sendo o epicentro dessas manifestações Brasília.
Essas manifestações tinham o objetivo de criar uma situação de caos social em Brasília que justificasse a instauração de uma garantia da lei e da ordem (GLO) — pedido excepcional às Forças Armadas para garantirem a ordem. A partir daí, as Forças Armadas não devolveriam o poder aos civis.
Bolsonaristas são pessoas de precaríssima qualificação democrática
Até a viagem do Bolsonaro para os Estados Unidos fez parte de um plano já revelado. Assim, o argumento de que as pessoas estavam lá simplesmente manifestando a sua liberdade de expressão faz parte de uma característica desse movimento político de contar muitas mentiras, assim como faz o presidente norte-americano Donald Trump. Chegaram a argumentar, na época, que aquela manifestação foi organizada pelos petistas.
Nós estamos lidando com pessoas profissionais na arte de mentir, de criar fatos ilusórios, de enganar os outros, seguindo o padrão norte-americano, profissionalizado nas redes sociais.
As pessoas estão sendo penalizadas não por escreverem em uma estátua, mas por participarem, com graus diferenciados de consciência, dessa trama golpista. Estavam todos lá, engajados em reivindicar a ação dos militares contra o governo democraticamente eleito e participando da criação desse caos artificial.
Vamos nos lembrar que houve tentativa de terrorismo no aeroporto de Brasília, também para criar um caos na capital federal que justificasse uma convocação extraordinária das Forças Armadas.
A base de apoio político do bolsonarismo se mantém coesa?
Sobre a força do Bolsonaro, as pesquisas têm revelado que a maioria da população é favorável à condenação daqueles que tentaram o golpe, uma maioria muito forte, de mais de 60%. Uma maioria muito importante também é favorável à prisão do ex-presidente.
Ou seja, o bolsonarismo já não movimenta, como fez em um determinado momento da conjuntura nacional, o apoio de grande parte dos brasileiros. Mas, de fato, conserva uma força resiliente.
Seria incorreto para um analista político dizer que o bolsonarismo chegou ao fim, ou que não tem uma expressão na população brasileira, ou mesmo que não tem força institucional. Tanto tem, que o último ato bolsonarista em São Paulo contou, por exemplo, com o apoio decisivo do governador do estado, que mobilizou toda a máquina de governo.
Ao todo, sete governadores participaram da manifestação em São Paulo. Como você avalia essa movimentação?
É uma posição ambígua o apoio desses sete governadores, muitos deles pré-candidatos — assumidos ou não — que buscam ocupar o lugar de Bolsonaro, que está inelegível e provavelmente estará preso nas eleições de 2026.
Eles dependem do bolsonarismo, enquanto uma força política organizada. Mas, ao mesmo tempo, no fundo, torcem para que o ex-presidente não possa ser candidato. O ato político marca essa ambiguidade, que é característica desse momento da conjuntura brasileira.
As forças de extrema direita sabem que, se não concorrerem unificadamente, serão derrotadas. Portanto, sabem que têm que se manter unidas, mas experimentam graves lutas internas.
É um quadro de lideranças que não têm uma cultura democrática. Mesmo o governador de São Paulo, que veio do Rio de Janeiro por meio das mãos de Bolsonaro, é um governante truculento, com uma das polícias mais violentas do Brasil, e um homem de precaríssima qualificação democrática.
Nós estamos lidando com profissionais na arte de mentir, de criar fatos ilusórios, de enganar os outros
O bolsonarismo, desde o início, representou o que nós chamamos na ciência política de um movimento faccioso, que se reúne em torno de uma família e de seus interesses e, a partir desse núcleo, vai se alargando. A substituição de um líder faccioso carismático, na análise política, é sempre muito problemática, uma vez que, aquele que se apresentar como traidor desse líder carismático, perde credibilidade junto a uma parte importante das bases.
Estamos vendo esse movimento carregado de ambiguidade por parte dos governadores, que apoiam Bolsonaro, mas torcem para que ele não seja candidato elegível em 2026.
Está em tramitação no Congresso Nacional um projeto de anistia a todos os envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro. Há chances de o projeto ser aprovado?
Devemos interpretar qual é a composição política majoritária da Câmara Federal e do Senado hoje. Certamente, não é uma composição democrática, de lideranças que têm fundamentos e compromissos profundos com a ordem democrática.
Mas eu diria que o bolsonarismo também não é majoritário nas duas Casas Legislativas. Nunca controlou completamente o Senado e já não controla, como quando estava no governo, a Câmara Federal.
Então, é forte o suficiente para pressionar em função de um projeto que lhe atenda os interesses, mas não tem uma maioria qualificada para aprová-lo. Portanto, entendo que isso vai depender do andamento da conjuntura e de vários fatores importantes, inclusive o andamento da popularidade do governo Lula e a sua capacidade de polarizar forças no interior do Congresso Nacional.
Há um campo de indefinição, mas eu acho improvável que seja aprovado um projeto que atenda completamente aos interesses do bolsonarismo. A possibilidade depende, então, de vários fatores condicionantes, já que nós não temos uma maioria democrática consolidada nesses espaços institucionais.
Com Donald Trump na presidência dos EUA, o bolsonarismo tem buscado apoio externo para descredibilizar as instituições brasileiras. É possível que aconteça alguma interferência externa no julgamento da tentativa de golpe?
Faz parte da política do governo Trump derrotar completamente as forças de esquerda e de centro-esquerda na América Latina e, como disse um dos seus ministros, voltar à situação em que sejamos um “quintal” dos Estados Unidos. Há, claramente, um vetor imperialista na ação do governo Trump.
O bolsonarismo, desde o início, é uma replicação no Brasil, com fortes apelos americanistas, daquela extrema direita norte-americana, inclusive no plano religioso, que levou o Trump ao seu primeiro governo.
Agora, entre a intenção do governo Trump de interferir nas decisões do STF e a sua capacidade de interferir, há alguns fatores. Qual será o grau de estabilidade e de popularidade do governo Trump no fim de 2026? Essa é uma questão em aberto e algumas pesquisas recentes já indicam uma maioria da população crítica ao governo.
Além disso, o governo Trump, pelas características de sua política internacional imperialista e unilateralista, vem se isolando internacionalmente em relação à Europa, que sempre foi, em geral, muito parceira dos Estados Unidos. Os norte-americanos também estão enfrentando uma potência ascendente como a China.
Outra questão seria a evolução da conjuntura latino-americana, onde tem havido iniciativas importantes, como uma reunião da Comunidade de Estados Latino Americanos e Caribenhos (Celac) recentemente, no sentido de tentar reorganizar um posicionamento comum dos países, frente ao governo Trump.
Nós temos visto respostas muito incisivas e importantes da presidenta do México, Cláudia Scheimbau, por exemplo. O caso do Brasil, o crescimento da oposição ao governo da Argentina, o governo da Frente Ampla no Uruguai e os posicionamentos, mesmo que mais simples, do governo chileno também merecem destaque.
Por fim, o cenário depende sobretudo da correlação de forças políticas no Brasil. É claro que, se há uma maioria da população apoiando a condenação de Bolsonaro e se houver um fortalecimento da popularidade das iniciativas do governo Lula, o espaço de interferência diminui muito.
Eu não creio na possibilidade de uma intervenção militar direta norte-americana aqui. Mas nós sabemos que a geopolítica norte-americana tem adotado diferentes estratégias de desestabilização de governos democráticos no período recente. Inclusive, em alguns casos, utilizando meios judiciais para desestabilizar governos.
De que forma o campo democrático deve se posicionar frente a esse cenário?
Tenho insistido, no campo amplo da esquerda democrática brasileira, que nós não deveríamos simplesmente adotar uma palavra contraposta à palavra de ordem que a extrema direita adotou. Eles estão propondo anistia e nós propomos “não anistia”, por exemplo.
Ora, a anistia é uma palavra muito cara no vocabulário democrático. Segundo os termos da Justiça de Transição, ela representa a possibilidade de cancelar julgamentos feitos em relação àqueles que, de alguma forma, defenderam a democracia. Foi assim que, inclusive, a esquerda lutou pela anistia ampla, geral e restrita.
Nós não deveríamos essa bandeira ao bolsonarismo. Uma coisa é reivindicar a anistia àqueles que lutaram em favor da democracia e outra coisa é estabelecer o perdão àqueles que conspiraram, de maneira tão evidente e de forma tão violenta, contra a própria democracia.
O que nós deveríamos dizer? Nós deveríamos dizer que aqueles que praticaram uma tentativa de golpe contra a democracia deveriam ser julgados com a garantia do devido processo legal — com direito de defesa, com a documentação das provas e de forma independente. E, assim, que sejam justamente condenados pelo crime que cometeram.
Não é simplesmente dizer “não à anistia”. É clamar pela condenação democrática daqueles que atentaram contra a democracia, que organizaram o crime maior contra a democracia, que é, pela violência, a sua dissolução.
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Também tenho insistido muito que o povo brasileiro, assim como o povo de qualquer país, compreende a democracia não apenas pelo exercício das liberdades, mas pela efetiva conquista dos seus direitos.
Então, se o povo não tem garantida uma boa qualidade de vida e os seus direitos fundamentais, ele fica reticente ou não tem o mesmo ardor em apoiar a democracia, se a democracia se distanciar da efetivação dos direitos fundamentais do trabalho, da saúde, da educação, da moradia digna, etc.
A luta democrática só tem a crescer com a ampliação dos direitos do povo brasileiro. Se houver conexão entre a firme defesa dos valores democráticos e o atendimento crescente dos direitos do povo brasileiro, eu não tenho dúvida de que Jair Bolsonaro (PL) será derrotado.